5 - TEMPO AO TEMPO

Os dias vão passando e, com eles, chega mais um fim de semana. Hora de ir à Associação. Lá, certamente, Henrique encontrará o seu amigo Marcos Antônio para uma conversa reservada. Abre o seu coração, narrando o seu sentimento, ciúmes e inseguranças. 

Com um pouco mais de experiência, seu amigo percebe o que está acontecendo com ele. E lhe aconselha:

- Continuo batendo na mesma tecla, Henrique. Você precisa se definir e ter certeza de seus sentimentos. Pode ser que você esteja vivendo uma espécie de amor platônico. Um sentimento repentino, que surge de forma intensa, mas poderá acabar da mesma maneira.

- Eu sei que preciso ter certeza de meu sentimento. Mas como? Tudo é tão difícil... Sentimentos novos que não estou conseguindo administrar. Por enquanto prefiro me manter em silêncio, convivendo com minhas ilusões...

Henrique começa a revelar o seu lado tímido, de quem não possui muitos amigos, não acumulou nenhuma experiência amorosa anterior e passa a maior parte do tempo isolado. Características de muitos que, não conseguindo obter carinho e atenção suficientes, buscam nas fantasias consolo para suas necessidades afetivas, procurando, diante de uma realidade insatisfatória, preencher o vazio interior através do delírio. 

- Vá com calma. Dê tempo ao tempo. Pois só com o amadurecimento de nossos sentimentos é que entendemos muitas coisas e descobrimos as melhores saídas.

- É o que vou fazer, Marcos. Mas mudando de assunto, como vão os preparativos da nossa festa de confraternização para reunir as nossas famílias numa grande reunião? Estou curioso para conhecer a sua família...

- É o que iremos discutir hoje...  E eu também quero conhecer a sua mãe.

* * *

Quinze dias depois...

Àquela tarde de domingo já está sendo esperada há muito tempo por todos os membros da Associação. Uma confraternização entre todo o pessoal e seus familiares, realizada em um clube de campo. Um almoço, muita música e diversões estão programadas. 

Henrique chega com sua mãe, cumprimentando um a um de seus companheiros, até chegar em Marcos Antônio. Apresenta sua mãe, perguntando:

- E a sua família, não veio?

- Veio sim. Minha mãe e minha irmã estão ajudando lá na cozinha. Daqui à pouco elas aparecem.

- Acho que também vou ajudar - comenta sua mãe.

- Vai sim... Eu fico aqui papeando com o Marcão.

Ela pede licença, afastando-se. O amigo, aproveitando aquele momento a sós, pergunta-lhe:

- E aí, como você está?

- Mais ou menos. Não consigo desviar o pensamento daquela pessoa. Ela fica 24 horas martelando em minha mente.

- É assim mesmo. Quando estamos interessados em alguém, ela parece um fantasma a nos perseguir. Mas mudando de assunto, minha família vem vindo aí - e aponta com a mão.

Ao se virar, num sorriso, Henrique toma um choque. Seu sorriso dá lugar a um sentimento de surpresa ao ver Murielli se aproximando com uma senhora.

- Henrique, estas são minha mãe e irmã.

- Nós já nos conhecemos - diz a moça o abraçando com afeto: - Trabalhamos na mesma empresa. Como passou de sexta-feira pra cá, Henrique?

- Bem, e você? Mas que surpresa agradável, Murielli.

Marcos Antônio soa frio. Ao saber que Henrique e sua irmã trabalham na mesma empresa, faz a ligação dos fatos, percebendo quem é a moça tão comentada pelo rapaz. Mas se mantém firme, não deixando ninguém perceber sua surpresa!

Todos se confraternizam. A tarde promete ser inesquecível. As duas famílias almoçam juntas. Muita conversa, animação. Murielli sorri muito e se diverte, brinca. Henrique também se sente muito bem por estar ali convivendo com ela, sem nenhum rapaz da empresa representando ameaça. Pela primeira vez ele está lhe vendo com cabelo solto, descontraída. Como o rapaz deseja em seu íntimo ter o direito de afagar aquele cabelo, acariciá-la, mas não. É preciso manter o disfarce.

Após o almoço, participam da gincana e de todas as outras brincadeiras. Àquela moça séria e comportada da empresa vai se revelando uma meninona alegre e com muito ânimo, convivendo e auxiliando as pessoas simples. Depois, senta sozinha em um banco de cimento perto da quadra de esportes.

- Acho que nunca me diverti tanto - comenta ao amigo: - Estou tão cansada. 

- Eu também, Murielli. 

- Pena, que esses bons momentos possam terminar em breve. Pelo menos, durante algum tempo.

- Do que você está falando?

- Sabe, Henrique, vou lhe confiar um segredo. Estou pensando em terminar o meu NBA e voltar para os Estados Unidos. Aperfeiçoar-me mais, treinar o meu inglês. O que você acha?

- Eu acho uma boa - responde o rapaz, sentindo uma pontada no coração, como se fosse uma ameaça de perder a companhia de uma pessoa tão desejada. Não querendo dar continuidade à conversa, já sentindo uma dor antecipada de perda, olha para o relógio, dizendo: - Já está ficando tarde. Acho que vou chamar minha mãe para irmos embora. Ainda temos que pegar ônibus. 

- Acho que também vou embora. Espera aí, que eu vou levar vocês - oferece a moça, saindo para chamar seu irmão e mãe.

Pelo caminho, os cinco continuam a conversa animada dentro do carro. Ao se despedirem, a mãe de Marcos Antônio comenta:

- Vamos combinar qualquer domingo para vocês irem almoçar em casa.

- Pode deixar - responde a mãe de Henrique.

Ao partir, ele fica de pé no portão olhando o carro se afastar. Uma tristeza bate em seu coração. Como ele desejou que ela ficasse ao seu lado depois de um dia tão feliz. "Será que algum dia, ela ficará ao meu lado, sem precisar partir?" - pensa. Mas o fantasma da inferioridade volta lhe atormentar, dizendo-lhe que a realidade é outra. Nem se quer ela imagina o sentimento dele. Nunca será possível àquela moça vir a gostar dele. São mundos e realidades diferentes. Pelo menos, em sua mente neste instante. 

Henrique manifesta um complexo de inferioridade. Tal sentimento pode emergir de uma inferioridade imaginada por parte da pessoa afligida. Mas de forma inconsciente. Muitas vezes, esse complexo pode levar os indivíduos atingidos à supercompensação, o que resulta em realizações espetaculares, comportamento anti-social, ou ambos. Diferentemente de um sentimento normal de inferioridade, que pode atuar como um incentivo para o progresso pessoal, um complexo de inferioridade é um estágio avançado de desalento, frequentemente resultando numa fuga das dificuldades. Sentimentos muito comuns em pessoas com deficiências físicas – tais como ser manco, características faciais desproporcionais, problemas na e visão subnormal causam reações emocionais e se conectam a experiências desagradáveis anteriores; ou limitações intelectuais – provoca sentimentos de inferioridade quando comparações desfavoráveis são feitas com as realizações superiores de outrem, e quando a performance satisfatória é esperada, mesmo quando as instruções não possam ser compreendidas. 

Há também as desvantagens sociais – família, raça, sexo ou status econômico. Talvez isso explique o comportamento de Henrique ser tão reservado; uma desistência de contatos sociais. Sintoma que pode ser vencido quando se traz o complexo ao nível consciente, superando sua incapacidade e aceitando suas consequências. 

* * *

Henrique no campo sentimental sempre viveu em solidão. Um encontro com alguém que a pessoa não pode evitar: ele mesmo. Há um fator a mais que acentua sua dificuldade de se relacionar sentimental: a sua própria deficiência motora. E ele é consciente disto. Mesmo sem nunca dizer à ninguém, isso dói muito mais nesses momentos que se depara gostando de alguém. E esse alguém atualmente chama-se Murielli! Em suas fantasias, ele deseja tê-la ao seu lado, dar-lhe carinho, ter muito diálogo nos momentos alegres ou nas dificuldades, compreendê-la e ser compreendido, aceitar e nunca cobrá-la em suas limitações e defeitos; sair juntos, cinemas, teatros, passeios, restaurantes, mostrar um para o outro os programas que gostam de fazer; sem inseguranças, incentivar e criar meios para que cada um cresça em sua profissão. 

Acomodá-la no coração e, ao mesmo tempo, ser acomodado no coração dela. Construir um relacionamento maduro, um lar de paz e prazer de ser restar juntos. Tudo isto que ele tem sentido por Murielli, uma pessoa tão especial que apareceu em sua vida devolvendo-lhe a esperança de ainda ser feliz! 

Só que seus sentimentos são bipolares. Ao mesmo tempo em que está otimista, sua realidade bate à porta. E em um desses momentos de angústia, deitado, em sua cama num sábado à noite, desabafa em voz alta: 

“No fundo, eu só quero ser feliz como qualquer pessoa; mas sei que por ter nascido com um padrão digamos “desviado da normalidade”, pago um preço muito alto por isto. O meu sentimento, mesmo que eu lute contra isto, é de estar pagando por um crime que nunca cometi. E minha punição é nunca ser um homem realizado por completo. Apenas alguém que foi enviado a esse mundo para servir, ajudar, ser um "exemplo de vida admirado como super-homem que faz coisas incríveis", mas nunca terei o direito de realmente ser um homem capaz de dar e receber afeto - mesmo que eu tenha consciência que sou capaz disto, de ser um companheiro para alguém”.

PRÓXIMO CAPÍTULO 


Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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