6 - UM ALMOÇO DE DOMINGO

Domingo à tarde. Um novo encontro tradicional entre amigos na Associação. E outro bate-papo entre os dois amigos...

- E aí, como você está, Henrique? - Pergunta Marcos Antônio.

- Do mesmo jeito, cara. Amando secretamente uma pessoa que sei que não terei a mínima chance.

- Henrique, também não é por aí. Nós lutamos aqui na Associação para termos o direito de igualdade como todo mundo e agora você quer nadar contra a maré!? Você precisa se libertar desse autopreconceito, permitindo-se descobrir suas reais potencialidades como qualquer um. Tão importante ainda, está a necessidade de recuperarmos a nossa autoestima, a vivência de sermos apropriados à vida e às exigências que o cotidiano nos coloca; desenvolver a confiança em nossa capacidade de pensar e encarar os desafios corriqueiros do dia-a-dia.

- Eu sei, mas parece tudo tão difícil, Marcos Antônio...

- Meu amigo, temos que nos dar o direito de sermos felizes, sabermos que cada um, independente de sua realidade, tem o seu valor, com direito de expressar vontades, necessidades e desejos; sabendo ainda que temos direito de desfrutar os resultados de todos os nossos esforços.

- Tudo bem. Só que nesse caso é diferente. Não vejo saída. É melhor eu ficar mesmo só na ilusão. Será melhor assim.

- Sonhar e ter ilusões é algo necessário, é um direito que ninguém pode nos negar. Mas caminhar com os pés na realidade é importante. Nossa autoestima resulta quase sempre de uma imagem que temos de nós mesmos. Muitas vezes, apagar essa imagem construindo e buscando uma falsa barreira que não existe, pode gerar uma decepção, uma abstração por não autodesafiarmos nas coisas mais normais da vida.

- É, tudo isso que você disse meu amigo, é muito bonito. Só que não vejo possibilidade de uma moça daquele nível vir a gostar de um rapaz simples assim como eu! Além do mais, não posso lhe contar, mas há uma outra barreira entre nós... A classe social!

- E desde quando classes ou posições sociais são barreiras para o amor?

Henrique permanece calado, sem tentar esboçar uma resposta. O amigo toma coragem e lhe pergunta.

- Já que há algum tempo você está se abrindo comigo, sinto-me no direito de lhe perguntar. Essa moça que você está gostando, é minha irmã, não é?

- Como você sabe? - Indaga o rapaz, surpreso.

- Pelo que você descreve dela e pela reação, o brilho em seus olhos e convivência que vocês tiveram naquela festa. Só duas pessoas que já têm certa amizade, poderiam se divertir tanto daquele jeito.

- É, realmente é Murielli a minha paixão, Marcos. E a barreira é você. Eu tinha muito medo da sua reação ao saber que gosto de sua irmã e que isto poderia abalar a nossa amizade.

- Deixa de ser bobo, cara. Pelo contrário. Fico até feliz em saber que uma pessoa como você está gostando da minha irmã. Agora, quanto a ela, só vejo uma saída.

- Qual?

- Você não pode continuar desse jeito. Precisa se confessar à ela.

- Você está ficando louco, Marcos Antônio!?

- E por que não? Conhecendo a Murielli como a conheço, tenho certeza que, independente de qualquer resultado, ela lhe dará a maior atenção e carinho. E depois você se sentirá aliviado por ter tirado um sofrimento oculto dentro de você.

- Mas aonde e como vou fazer essa confissão? Lá na empresa não tem jeito. E não fico à vontade para convidá-la para sair comigo.

Marcos Antônio pensa um pouco, achando uma solução:

- Já sei... Nós vamos marcar um almoço no domingo lá em casa. Vou arrumar um jeito de vocês ficarem a sós. Aí você entra em cena. Está disposto a tentar?

- Pensando bem, você mais uma vez tem razão. Preciso tirar esse peso de dentro de mim. Estou disposto. Vamos encarar a coisa de frente!!!

- É assim que se fala... Eu tinha um saudoso amigo que dizia: "Grandes são os seres, que conhecedores de seus limites, tornam infinitas as suas possibilidades"! Pense nisto, Henrique.

* * *

A semana começa tensa para o moço, só de pensar que no próximo domingo haverá de fazer a confissão. Mas por outro lado, a velha esperança que tudo dará certo, equilibra esse estado. Afinal, Henrique necessita retirar de dentro de si, o sentimento que tudo está ruim. A dificuldade de se levantar pela manhã para trabalhar, realizando as tarefas do dia a dia com sacrifício, sem ânimo para estudar o seu programa, ou ler livros técnicos de informática. Os problemas parecem surgir todos de uma só vez, e as soluções se escondem em algum lugar misterioso, desaparecendo por completo do seu mundo. Enfim, viver tornou-lhe mais um exercício de resistência física e mental do que um ato natural.

* * *

Fica acertado que Murielli vá buscar Henrique e sua mãe. No horário combinado, a moça buzina em frente à casa deles. Ele é o primeiro a sair. A alegria invade o seu coração ao vê-la, mas o medo também se apresenta ao lembrar a sua meta para àquele dia. Não pode recuar agora; já é insuportável viver com aquele sentimento dentro de si, sufocando-o há cada dia, há cada instante.

Sua mãe aparece com uma travessa de sobremesa para levar ao almoço. Tudo muito animado no trajeto, embora ele tente disfarçar sua apreensão. Chegam à residência do amigo Marcos Antônio, fachada de uma casa de classe média numa rua sem saída, e ao fundo se vê uma pracinha.

- Entrem, fiquem à vontade - pede a moça.

Sua mãe aparece com um belo sorriso para recebê-los.

- Que bom que vocês chegaram. O Marcos Antônio está lá no quintal cuidando da churrasqueira. Pode ir lá Henrique. Passa aqui pela cozinha.

No quintal, cumprimenta o amigo. Como estão sozinhos, entram rapidamente no assunto.

- E aí, como você está?

- Um pouco impaciente, com medo.

- Calma, vai dar tudo certo. Tente disfarçar, mas lembre. Agora o fundamental é a confissão, independente de qualquer resultado.

- E aí Henrique, gostou da minha casa? - Pergunta Murielli, entrando no quintal.

- Muito simpática, aconchegante.

- Obrigada. Mas e aí Marcos Antônio, como vai a carne?

- Quase no ponto.

- Ótimo, já vamos servir o almoço.

E assim é feito. Aquele gostoso bate-papo de família na mesa. Conversas e trocas de favores ao prepararem os pratos. Só uma coisa está saindo fora do normal. Henrique, treme muito, tem dificuldades com os talheres e até soa um pouco.

- Por favor, sinta-se em casa - pede a moça, percebendo o seu jeito: - Se precisar de algum auxílio, é só falar.

Todos continuam animados. Menos o rapaz, que permanece calado. Após a refeição, vão tomar o café na sala. A certa altura, a mãe de Murielli diz a mãe de Henrique:

- A senhora ainda não conhece o meu jardim. Vamos lá ver? Assim, aproveito e também lhe mostro os meus bordados.

E, pedindo licença, deixam a sala. Marcos Antônio, tem uma ideia para ajudar o amigo:

- Se vocês não se importarem, acho que vou tirar uma sonequinha. O Henrique é da casa mesmo. E por falar nisso, hoje está calor e um dia tão lindo. Murielli, por que você não aproveita e leva o nosso amigo para sentar lá na pracinha?

- Boa ideia, Marcos Antônio - concorda a moça num sorriso, levantando-se e pegando na mão do rapaz: - Vem, você vai gostar.

Ao chegarem lá, estavam sozinhos, apenas as plantas lhes recebem, balançando ao vento. Alguns pássaros voando e pulando entre os canteiros. Um clima de tranquilidade, uma árvore faz sombra em um dos bancos, onde o casal se senta. Tudo parece em paz, exceto o jeito apreensível do rapaz, o qual continua mudo.

- O que está acontecendo, Henrique?

- Como assim?

- Hoje você está inquieto, mudo, impaciente. Tem alguma coisa lhe incomodando.

- Você percebeu?

- Sim, percebi. E se quiser se abrir comigo, pode ficar à vontade.

- É, realmente estou com problemas - começa o rapaz, dando uma pequena pausa: - Eu estou apaixonado...

- E o quem tem de mal nisso, Henrique? - Indaga a moça num sorriso: - Todos nós nos apaixonamos.

- Mas é tão difícil, Murielli. Nunca senti isso antes, um sentimento tão forte...

- Ela sabe?

- Acho que não. É uma pessoa tão especial, meiga, inteligente, atenciosa. Nunca conheci ninguém assim. Ao mesmo tempo que gosto dela, tenho medo de contar.

- Se ela é realmente tudo isso que você acabou de descrever, deve sim contar. Ela vai entender e lhe dar a maior atenção. Quem sabe até possa dar certo. Estou torcendo por você!

“Tem que ser agora!!!” Henrique pensa, busca forças bem lá no fundo, confessando:

- Murielli, essa pessoa é você...!

A moça toma um grande choque, mas reage perguntando:

- Você tem certeza do seu sentimento, Henrique?

- Sim, tenho. Eu não queria, mas infelizmente, apaixonei-me por você.

Ele lhe relata tudo desde quando esse sentimento começou, o que se passa dentro de si, as noites mal dormidas, o ciúme dos outros rapazes, enfim, tudo, tudo, tudo... Eles permanecem mudos por alguns instantes de cabeças baixas, até que ela rompe o silêncio:

- Olha, você é uma pessoa maravilhosa, nem tenho palavras para descrevê-lo. Mas eu não posso lhe prometer nada, Henrique. Eu tenho algumas cicatrizes do passado e também outros planos para o futuro. E tudo isso me traz uma insegurança e medo de assumir um compromisso com qualquer pessoa. E, como você já sabe, tenho meus projetos de vida, como por exemplo, voltar aos Estados Unidos. Realizar-me como uma bem-sucedida profissional me levou há tomar a decisão de não deixar nenhuma outra pessoa entrar em minha vida, pelo menos, por enquanto. Por favor, entenda a minha posição.

- Tudo bem, Murielli. Entendo perfeitamente. Desculpe-me de alguma coisa.

- O que é isso, Henrique. Essas coisas acontecem. Só que tem um detalhe. A nossa amizade continuará a mesma. Nada vai mudar, certo!?

À tarde vai acabando e Murielli os leva de volta para casa. Sua mãe agradece a moça, descendo na frente. Quando Henrique vai descendo, ela o chama, dizendo:

- Não se esqueça. A nossa amizade continuará a mesma...

- Sim, pode deixar... - Responde ele com um sorriso!

* * *

Murielli chega à sua residência, colocando seu carro na garagem. Ao entrar, seu irmão lhe espera na sala, desejando-lhe indagar:

- O Henrique conversou com você?

- Sim Marcos Antônio... Você já sabia, não é?

- Não só sabia, como também o incentivei à contar para você. Os sentimentos precisam ser declarados em todas as circunstâncias, independente de qualquer resultado.

- Concordo, mas nesse caso nem sei o que dizer...

- Dê tempo ao tempo. O que tiver que acontecer vai acontecer, minha irmã.

Ela dá apenas um sorriso e sobe para o seu quarto. Já deitada, lembra da declaração que recebeu. Do simples rapaz que é Henrique. O oposto daqueles rapazes bem vestidos, estudados que trabalham ao seu redor. Vários deles sempre lhe cortejam, mas com segundas intenções, nunca sentiu em nem um o desejo sincero de algo sério. Henrique, pelo contrário, quis apenas expor algo que realmente estava em seu coração de uma maneira pura. E, entre idas e vindas de comparações, Murielli adormece.

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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