MEMÓRIAS DE UMA MENINA SAPECA


Uma história verdadeira

Durante muito tempo, por muitas gerações, a vovó tem sido uma figura marcante em nossas famílias. 

Principalmente por gostar de contar muitas histórias e dar ensinamentos de bom comportamento aos netinhos e netinhas.

Mas hoje vamos fazer diferente. Deixaremos a vovó sentada em sua cadeira e vamos nós contarmos a história da infância dela. 

À minha vovó, Lourdes Pereira da Silva!

Era uma vez...

...uma menina que iremos chamá-la de Sapeca. Tinha oito anos de idade e morava no interior, numa casa de barro junto com seus pais e irmãos. Imaginação e disposição para fazer traquinagens eram o que não lhe faltava! 

A noite corria tranquila, mas no outro dia, certamente uma nova arte ela iria aprontar.

Por falta de opção do que fazer, ela criava travessuras como essas...

Sua casa ficava no meio do pasto, cercada de seis fios de arames farpados de altura, cercando o gado bravo. A Sapeca era tão danada que, quando nascia um bezerrinho, ela ia para o meio do pasto insultar a vaca brava. 

Quando a vaca corria atrás dela, passava por baixo da cerca que era tão baixinha e ninguém sabe explicar até hoje como conseguia passar nos arames sem se cortar toda.

Outras vezes, a Sapeca ia ao mangueirão e soltava os porcos que lá estavam presos para engorda. Era uma verdadeira correria de todo o pessoal da fazenda para trazer os porcos de volta. 

A danada da Sapeca, ficando de longe só rindo, nunca deixava ninguém saber que era ela que tinha feito mais aquela arte.

Dura vida de sítio

Um dia, a mãe de Sapeca estava muito doente e não podia realizar as tarefas de casa e muito menos lavar a roupa, mas teve que levar o almoço para o seu marido na roça. 

A Sapeca, na intenção de ajudar, aprontou mais uma. Foi ao quarto e pegou toda a roupa de cama, esvaziou os colchões que eram feitos de palhas-de-milho e todas as roupas que eram poucas - ela era muito pobre - e pensou em lavar tudo sozinha.

Seu pai tinha feito uma caixa grande de madeira e estava cheia de água. Ela jogou tudo dentro daquela água. Quando tudo molhado, ela precisava de mais água para enxaguar. Só que não podia tirar água do poço por não alcançar o cabo da manivela que trazia o balde de água do fundo. 

Sua mãe, ao voltar, teve um choque ao ver aquela cena. Inclusive os colchões... Tudo molhado. E, mesmo doente, sua mãe foi terminar de lavar a roupa, senão não daria tempo de enxugar tudo para todos dormirem à noite. 

A Sapeca levou uma coça, mas não ligou... Foi procurar outra arte para fazer.

Piolho no chapéu

Como era comum no meio rural, sua mãe criava muitas galinhas e porcos. Seu pai, colono da fazenda que trabalhava na roça e cuidava do café, sempre quando podia, vinha em casa para o almoço. 

Por várias vezes, enquanto descansava, a Sapeca pegava o chapéu dele escondida. Ia até o galinheiro e o colocava no ninho da galinha choca onde tinha muitos piolhinhos.

Depois trazia o chapéu para dentro de casa, colocando-o no mesmo lugar. 

O pai, sem perceber nada, colocava o chapéu na cabeça para voltar ao trabalho. 

Quando ele começava a caminhar debaixo daquele sol muito quente, os piolhos desciam pelo pescoço e pelo seu corpo. A coceira era tão grande, que ele era obrigado a voltar correndo para casa e tomar banho.

As quermesses

O mês de junho sempre era muito esperado. Era quando a Sapeca ia às quermesses com o pai e ficava toda vaidosa. Corria de um lado para o outro, sempre muito engraçadinha, chamando a atenção de todos.

As pessoas, achando gracioso o seu jeitinho de menina inocente, perguntava-lhe:

- Onde você mora menina? 

Ela respondia assim:

- No meio dos coqueiros...

Todos achavam muito engraçado, mas não entendiam nada. Coqueiros eram as árvores que cercavam a sua casa.

Seu pai arrematava prendas nessas quermesses. Eram umas caixinhas surpresas, todas enfeitadas com papel crepom e sempre havia a mesma coisa dentro delas: um ovo de galinha! 

A Sapeca, curiosa com o conteúdo das caixinhas, balançava tanto o embrulho, que o ovo virava uma omelete. E assim ela não trazia nada para casa. Só que vinha com o pai toda contente pelo caminho de volta e tinha assunto para o mês todo.

A desobediência

A Sapeca tinha nessa época três irmãos mais novos. Certo dia, sua mãe disse para ela:

- Você fica aqui com seus irmãos que eu vou cortar um cacho de banana para madurar. É aqui perto de casa e eu volto já...

Mas a desobediência não deixou a menina obedecer àquela ordem. Assim que sua mãe saiu, a Sapeca foi na ponta do pé atrás dela.

De repente, em frente à bananeira, quando sua mãe levou a foice às costas para cortar o cacho, a Sapeca estava bem atrás dela e um acidente foi inevitável. O fio da foice pegou bem em cima do olho da menina, que deu um grito. 

Sua mãe levou um susto muito grande. Ao olhar para trás, a Sapeca estava com o rosto que era só sangue. 

Ainda bem que a foice pegou só de raspão. A mãe largou tudo e foi fazer curativo. Só que, devido a sua desobediência, depois a Sapeca levou umas boas varadas em suas pernas, mas não deixou de ser teimosa. 

Outra arte da Sapeca

Quando na época de colheita, a mãe da Sapeca tinha que ajudar o seu marido na lavoura. Fazia o almoço deixava a Sapeca tomando conta dos irmãos menores para ir levar o almoço e trabalhar umas horas. 

Nunca se poderia imaginar qual a próxima travessura que a Sapeca iria aprontar...

Um dia, quando sua mãe chegou em casa por volta das 15 horas, estava a Sapeca e seus irmãos todos deitados no chão, largados. 

A menina, muito danada que achava tudo, tinha encontrado uma garrafa de pinga que o pai costumava esconder bem. 

Colocou bastante açúcar e pinga numa caneca e foi dando uma colherada para cada um de seus irmãos. 

A mãe, assustada de ver aquela cena, cheirou a boca de cada um e logo percebeu que estavam todos bêbados. 

Depois de todos curados a Sapeca levou outra bronca, mas...

Brincadeiras de jogar boi n'água

 O tempo foi passando e seu pai terminou a colheita. Com o fim do serviço, resolveu mudar com a família para outra fazenda também de café.

Lá tudo era diferente... Tinha mais criança para a Sapeca brincar. Muitas brincadeiras entre as mangueiras e laranjeiras. 

A mãe de Sapeca fazia balanço no pé de manga para as crianças balançar debaixo da mangueira, um lugar limpo, mas em volta era cheio de carrapicho. 

Sabem o que a Sapeca fazia?  Sentava no balanço e falava para uma das crianças:

- Você fica na minha frente que eu dou impulso com o balanço com minhas pernas.

A danada ia bem lá atrás, soltava o balanço com suas pernas e empurrava a criança lá no meio do carrapicho. Gostando do malfeito, caia na risada sem parar.  


Depois, como se não tivesse culpa de nada, ia ajudar a catar os carrapichos da roupa de sua amiguinha. 

Sua mãe, ao ver essas cenas, sempre usava um termo bem conhecido no interior, dizendo:

- Você só tem brincadeiras de jogar boi n'água!

Outras travessuras

Um dia a Sapeca enfiou uma batata inteira na boca. Só que a batata era maior que a boca, ficando entalhada. Deu o que fazer para sua mãe conseguir tirar a batata de dentro da boca. 

só que a Sapeca a não dava sossego, era uma arte atrás da outra. E sempre de mau gosto...

Sua família era muito pobre, mas o que não faltava era filho. Nasceu mais uma irmãzinha e a Sapeca tinha que tomar conta para mãe trabalhar. Quando ia fazer a criança dormir, se demorava muito, ela passava cuspe no olho da criança para o bebê dormir logo.

Sua mãe saia para ir à roça. A Sapeca, às vezes, colocava uma ratoeira armada dentro da lata de açúcar. Mais tarde, quando a mãe enfiava a mão na lata para pegar o açúcar ficava com a mão presa. Já sabendo quem foi, chamava a Sapeca e outra varada nas pernas. 

O bode dos japoneses

Na fazenda onde Sapeca vivia, moravam bastante japoneses que criavam porcos e cabritos. 

Certa vez, a Sapeca pegou seu irmãozinho de quatro anos de idade e o amarrou em cima de um bodinho.  Esse bodinho começou a pular com a criança amarrada. Corria para todos os lados, passando no meio dos bananais, do colonião... 

A criança gritava e chorava... A criança gritava, chorava. 

Os japoneses começaram a sair de suas casas e a gritar na língua deles sem entender o que estava acontecendo. Ela com medo deles, correu e se escondeu dentro de casa. 

O bodinho pulou até começar perder as forças. Aí a Sapeca veio devagarinho e desamarrou o irmão, que coitado... Estava roxo de tanto medo. 

Ela lhe deu água com açúcar e tudo voltou ao normal.

A época escolar

Sua família morava em um lugar muito difícil para ir à escola. Era muito longe, uns cinco quilômetros de distância da casa de Sapeca.

Essa escola ficava em um sítio, onde lecionava uma professora que vinha de uma cidade distante. 

Vinha de jardineira, o transporte da época, sendo muito dificultoso pela estrada de terra. E quando, chovia não dava nem para a professora e nem as crianças chegarem à escola.

Muitas crianças, assim como a Sapeca, tinham que passar no meio do pasto com gado bravo ou no meio do mato. 

Estudar em uma escola rural naquela época era muito difícil e muito sacrificado. Por outro lado, muitos pais não queriam que os filhos estudassem para ajudá-los na roça.  

A Sapeca, por exemplo, estudava no segundo ano primário por insistência da mãe porque o pai também não queria. Ela já estava com 10 anos de idade, quando entrou na escola ficando muito contente com um novo marco em sua vida.

Esperteza e solidariedade

Sendo muito boa de matemática, a Sapeca usava isso com esperteza... 

Muitas crianças atrasadas pediam à ela ajuda em matemática. Como era muito entendida, perguntava-lhe:

- O que você me dá em troca?

- Eu lhe dou o pão do meu lanche - respondiam seus colegas.

Havia vários filhos de italianos que levavam fartos lanches para comer no recreio. E a Sapeca, por ser muito pobre, não tinha farinha de trigo em sua casa para fazer pão para sua família.

Assim, todas as crianças que ela ajudava, davam-lhe um pedaço de pão, mas ela não comia. Levava para a casa pensando nos irmãozinhos. Quando ela ia chegando, todos corriam para encontrá-la e comiam o pão. Isso era uma rotina. 

E a infância passou...

O tempo foi passando. Ela fez o primeiro ano, fez o segundo e depois teve que sair da escola. 

O pai ficou doente e morreu por falta de recursos em uma época tão difícil. 

A mãe mandou um filho para casa da avó, outros para casa dos tios e foi trabalhar. A Sapeca foi enfrentar a dureza do mundo, cresceu e amadureceu para a vida. 

Mas essa é outra história que fica para outra vez. 

Por enquanto, um beijão da Sapeca!

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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