CONTO EM LETRAS GARRAFAIS

FIM DE TARDE – Emílio Figueira / Primeiro semestre de 2000 - Técnica: Guache sobre cartolina - Med.: 0,25 x 0,34

Todos os dias, aquele homem esvaziava uma garrafa no gargalho em grandes goles. Colocava dentro dela uma folha de papel com algumas linhas mal escritas e a entregava ao mar. Nunca recebia resposta. Tornou-se um alcoolista. Dias, semanas, meses foram passando sem nenhum retorno... 

Mas que resposta ele esperava?

Certa manhã voltou o seu olhar para a garrafa em sua mão que o convocava à tarefa diária de esvaziá-la. Aquele homem de porte médio, cabelos curtos, sempre de camisa sem mangas e de bermuda, personalidade rude, casado, com vários filhos pequenos. Era morador de uma pequena vila de pescadores.

A garrafa em sua mão, brilhando diante do forte sol na praia, continuava esperando para ser esvaziada, lançada ao mar e partir em busca de uma questão que ainda não havia sido elaborada claramente.

Lembrou-se de quando não bebia. Dos companheiros de pesca que faziam desse ofício uma festa diária. Da esposa que, mesmo naquela vidinha simples, o recebia com um sorriso no final de cada tarefa cumprida. Dos abraços de seus filhinhos ao reencontrá-lo. Do respeito e admiração conquistada entre todos os moradores da vila.

Em um passado não muito distante, amiúde o primeiro gole. Depois um copo. Em seguida, as garrafas passaram a exigir todo seu tempo sentado à praia para ser esvaziadas. Imitando a cena de um velho filme, achava graça em escrever coisas em folhas de papéis, colocar nessas garrafas vazias, fechando com rolhas, atirando-as ao mar. Porém, diante de seus devaneios alcoolizados, nunca sabia ao certo o que havia escrito. A velha batalha entre o álcool e a memória!

Não havia mais tempo e forças para o seu ofício de pescador. Os companheiros se afastaram, continuando a se lançarem ao mar todos os dias para cumprirem suas tarefas. O olhar de alegria da esposa deu lugar a um olhar de tristeza e necessidades dentro de casa. Os filhos passaram o olhar com medo para a figura daquele homem embriagado. Homem que se tornou motivo de chacota na vila.

Justamente naquele dia, diante daquela garrafa não consumida, por ainda não dar os primeiros goles, conseguiu se lembrar qual a indagação que sempre colocava nas garrafas: 

“POR QUE TODA ESSA MINHA DECADÊNCIA?” 

Frases escritas diárias e repetidamente em pedacinhos de papéis.

Dessa vez, a resposta veio rápida. Não trazida pelo mar, mas do seu próprio subconsciente. Analisou suas perdas e ganhos. Seus conflitos existenciais projetaram-se em sua mente como se fosse a tela de um cinema mudo. A garrafa cheia continuava em sua mão. Ela precisava ser esvaziada para cumprir a tarefa de levar mais um papelzinho ao mar. Veio a figura da esposa e dos filhos em sua consciência.

Olhou os pescadores que, à beira da praia, preparavam os barcos para pescarem. Uma angústia tomou-lhe, fazendo aflorar forças desconhecidas. Os antigos companheiros começaram a empurrar o barco para dentro das águas. Num repente, ele se levantou com a garrafa na mão totalmente cheia e lacrada. Correu, lançou-a ao mar como a força de quem buscava uma libertação e gritou aos velhos colegas como se fosse em letras garrafais:

- ESPEREM, HOJE VOU COM VOCÊS...

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem