DESENHO GRÁFICO SEM TÍTULO – Emílio Figueira / 1990
A noite que se aproxima tem tudo para ser inesquecível à jovem universitária... E será! Após uma semana de muitas atividades, enfim a sexta-feira e dois ingressos para uma peça no teatro da universidade em que cursa psicologia, sendo que seu namorado vem como bagagem de mão. Aliás, aquela ocasião parece um encontro marcado da classe, no qual todos os alunos e professores de todas as turmas estão presentes naquela fila de espera, todos numa ansiedade para entrar e absorver os dizeres cênicos que emergirão daquele palco. Muitos acompanhados por namorados, namoradas, parentes, amigos. Essas pessoas trazem para passear roupas que não usam no cotidiano. O acontecimento só não é mais marcante porque se esqueceram de enviar convites aos cronistas sociais.
Todos já acomodados nas poltronas, a moça, não resistindo ao impulso feminino de retocar sua aparência, não tem dúvida: saca de sua bolsa (esse objeto que toda mulher carrega pendurado no ombro e nós homens nunca sabemos o que tem dentro, qual arma que elas poderão sacar contra nós!) um batom tal como num parto normal, como se fosse algo que está nascendo para salvar a humanidade... Naquele caso, contudo, salvar dois lábios que clamam por retoques.
Em sua distração, de repente o batom, como num grito de liberdade, salta de sua mão, rolando pelo piso inclinado do teatro, desaparecendo entre as poltronas. E agora? O que fazer sem ele? Sua primeira atitude é consultar o casal da frente sobre a possibilidade de o batom estar debaixo de seus assentos. A moça chega até ajoelhar-se para procurar o meliante, sem sucesso nessa primeira busca. Num desespero e sem solicitar licença, a dona do batom tem um estalo e sai à procura de seu pertence, mesmo sem ter nenhuma pista de seu paradeiro. Chega a levantar-se quase no meio do recinto e aproxima-se do palco, vendo se em suas rolanças o batom havia chegado por lá, mas não... O teatro continua enchendo e o batom desaparecido.
– Como pode isso? – pensa a dona – Eu tive o trabalho de ir à loja, escolhê-lo, comprá-lo, trouxe para casa, cuidei dele com carinho, hospedei-o em minha bolsa, levava-o para todo canto e nunca o deixei sozinho. Agora, esse ingrato foge assim de mim, nem sequer se despediu, não deixou eu lhe desejar boa sorte. Será que não fui uma boa dona? Magoei-o em algum momento, passando-o com muita força em meus lábios?
As luzes, após os três toques universais do teatro, são apagadas e começa o espetáculo. Ela mantém sua consciência no batom. “Onde será que ele está refugiado? Talvez ele tenha se refugiado atrás de alguma perna de poltrona.” Lembra que seu namorado está ao seu lado. O que ele dirá se vê-la sem os lábios devidamente retocados? Poderá ser o fim do encanto, achando-a um monstro, pensar que ela está relaxada porque não o ama mais? E se ele sair dali correndo em busca de uma boca devidamente pintada? E suas colegas de faculdade? O que dirão ao vê-la assim? Poderão achar que o seu desleixo pode ter fatores psicológicos. Poderão até mesmo convocar teóricos da psicologia naquele tradicional “segundo fulano” e classificá-la numa depressão, crise existencial, falta de autoestima, tornando-se mais uma que ficará para sempre lembrada como a moça da faculdade que não retocava o batom... É, coisas dessa natureza podem gerar estigmas. Dúvida? Pergunta ao Goffman.
Por uns relâmpagos de instantes, a moça chega a ter raiva do Caymi pela aquela tradicional canção em que ele recrimina Marina por ter se pintado... A peça continua. Do escuro da plateia, levanta-se um moço que a atriz chama ao palco. O coração da moça dispara. “Meu Deus, e se meu batom já chegou lá na frente e esse moço, caminhando no escuro sem enxergar, pisar nele, esmagando-o sem direito de defesa?”
A raiva pela fuga de seu batom passou a dar lugar a outro sentimento: “E se ele se arrependeu de ter fugido e está querendo voltar para mim, mas não acha o caminho? Neste momento, ele pode estar perambulando pelo teatro, pelos escuros e errantes caminhos que se formam embaixo de nossos assentos na esperança de me reencontrar, sentir novamente o calor protetor de minha mão e acariciar-se em meus lábios. E se em sua pouca força ele não estiver conseguindo escalar esse piso rampado para chegar até aqui? Tola, eu devia ter deixado o número do meu celular com ele... Mas também, como ele iria escalar os altos telefones públicos? Nem sequer dei dinheiro para ele comprar cartão telefônico. Tenho que fazer algo!”.
A moça pensa em sair correndo dali no meio do espetáculo rumo ao laboratório de informática e elaborar um cartaz do tipo “procura-se um batom, quem o encontrar será bem recompensado” e espalhá-lo por toda a universidade, mas não, ela se conteve em ficar sentada, embora não estava com nenhuma concentração no enredo. Em sua cabeça, jorra inúmeras interrogações. Chega até ter uma brilhante ideia de fundar uma Ong de proteção aos batons perdidos ou, até mesmo, algo ainda maior do tipo “Os batons sem fronteiras”.
Termina o espetáculo, todos aplaudem de pé e, num anunciar, todos já se vão. O teatro será esvaziado e o seu batom condenado a ficar na solidão escura ao fechar das portas. Ainda dá uma última olhada de baixo das poltronas à sua volta, sem sucesso. Começa a caminhar ao lado de seu namorado como quem está saindo do sepultamento de alguém querido. “Adeus, batom que autrora fora tão íntimo de meus lábios”, chora o seu coração.
Chorar ali não fica bem. Se pelo menos a peça fosse um drama para disfarçar, mas não, era uma comédia e ninguém sai chorando de uma comédia. Metade do público já havia saído quando uma voz ressoa lá das primeiras fileiras: “Achei um batom, a dona ainda está por aí?” Rapidamente, a moça larga o braço de seu namorado, vira-se para trás e, no seu mais belo sorriso, corre em direção daquele que no decorrer dos últimos sessenta minutos foi a grande causa de seus conflitos existenciais.