OS PASSAGEIROS DA CAIXA METÁLICA

 

PINTURA GEOMÉTRICA SEM TÍTULO – Emílio Figueira / novembro de 1999

O rapaz entrou naquele edifício público, foi direto aos elevadores e apertou o botão para chamá-lo. Um senhor moreno, já com cabelos grisalhos, chegou e parou ao seu lado. Durante os próximos instantes, várias pessoas foram chegando e também apertando o botão. Num sorriso, o rapaz comentou com o senhor:

– Engraçado, se alguém está esperando o elevador, ele já foi chamado. Por que todos têm que apertar o botão também?

– É, meu rapaz, essa caixa metálica iluminada, com painel de botões e, em alguns casos, um espelho, proporciona o deslocamento vertical de forma muito simples e eficaz, mas explicita modos de interagir entre seus passageiros.

– Como assim, senhor?

– Fui assessor de elevador por quase trinta anos. Hoje, estou aposentado, mas tenho muito a contar.

– Veja bem, meu senhor. Por uma feliz coincidência, sou aluno do último ano de psicologia. Estou fazendo um trabalho de conclusão de curso sobre observação de comportamento em elevadores. Se não for pedir muito, o senhor pode me dar umas dicas para minha pesquisa?

  – Sim, rapaz, será um prazer. Estou indo tomar a minha cervejinha de aposentado lá na lanchonete do terraço. Se quiser me acompanhar…

Subiram e, já na mesa da lanchonete e com a bebida à mesa, o rapaz pergunta:

– O senhor certamente reparava no comportamento de seus passageiros. O que pode me contar?

– Interessante, moço. Sabe, agora pensando, não é que reparei mesmo? Por exemplo: A posição preferida de quase a metade das pessoas, principalmente do sexo masculino, é aquela próxima à parede oposta à porta ou, no máximo, ao centro. Talvez por ser uma localização que permite manter sob controle todo o espaço visual.

– E deve ser mesmo – interrompe o rapaz: – Na prática, uma posição de poder. Segundo tenho lido, isso é confirmado pelo fato de que oito em cada dez pessoas das que ficam diante da parede posterior assumem duas posturas típicas de comando: braços cruzados, sinalizando a interdição à aproximação alheia ou, então, as mãos apoiadas na cintura.

– É verdade, eles faziam isso mesmo – diz o senhor empolgando-se com a conversa: – Quando eu estava de plantão durante a noite, como era muito pequeno o movimento, eu era relocado para a sala de vídeo e ficava só monitorando as câmeras, principalmente a de dentro do elevador. Dava até para dar uma cochilada. - Rindo para o moço, prosseguiu: – Nesses dias, eu via outro tipo de comportamento. Um terço dos passageiros solitários, com predomínio também do sexo masculino, colocam-se diante da porta. Eles manifestavam certa impaciência e pareciam não ver a hora de sair.

– Esses são aqueles que os ingleses chamam de front runners. Costumam manter o nariz a menos de 20 centímetros da porta, de forma que possam sair assim que ela se abrir.

– Exato, rapaz. Há pessoas que se posicionam mais ou menos igualmente à esquerda ou à direita da porta, com ligeira preferência pelo lado em que se encontra o painel, mas as coisas mudam quando se trata de elevador já ocupado por um ou mais passageiros. Se a pessoa que já está dentro se posicionou no fundo, os recém-chegados colocam-se no lado da porta, à direita ou à esquerda. Também se comportam dessa forma aqueles predispostos a ocupar a posição do fundo quando estão sozinhos.

  – Sim, senhor, mas voltando um pouco atrás e falando novamente dos fronr runners, que ficam com o nariz perto da porta, li que não mudam muito seu comportamento quando encontram alguém no fundo. Colocam-se sempre na proximidade da saída, mas ligeiramente de lado, de modo a deixar espaço para quem está atrás sair rapidamente, possivelmente como eles mesmos fariam. Se, no entanto, a pessoa que já está dentro escolheu um dos ângulos, a que entra tende a manter a mesma atitude, ocupando o espaço que lhe é mais adequado. Geralmente, os front runners não querem se comunicar e tendem a dar as costas até aos que entram depois.

– Nossa, estou gostando desse papo, rapaz, nem eu sabia que havia observado tantas coisas. E tem mais: a coisa se complica um pouco se o elevador está cheio. Em geral, pode-se afirmar que a pessoa que entra ocupará o espaço livre disponível, dando preferência à sua própria inclinação quando está “solitária”.

– Meu senhor, começo a concluir que o indivíduo que entra primeiro em um local fechado, como o elevador, considera inconscientemente que conquistou uma espécie de direito de precedência, enquanto o recém-chegado assume um comportamento de ligeira subordinação psicológica em relação aos que já conquistaram o terreno. O indivíduo que entra primeiro no elevador posiciona-se, geralmente, no fundo, dando as costas à parede, como se usasse a linguagem corporal para expressar, até inconscientemente, uma mensagem do tipo: “Este território é meu e você é um intruso”. As paredes oferecem sensação de segurança e, por isso, sem se dar conta a pessoa se posiciona com as costas protegidas.

– E você, enquanto um futuro psicólogo, diga-me: A psicologia explica isto?

– Sim, se vermos pela ótica da psicologia evolutiva, ela nos dirá que o comportamento de nossos ancestrais pode ajudar a compreender as atitudes adotadas hoje nos elevadores. Os primitivos necessitavam de um vasto território para assegurar a subsistência do grupo. Ainda que o homem moderno seja, pelo menos na aparência, mais evoluído e não marque o território com as próprias secreções, ele usa sinais subliminares, dos quais nem sequer se dá conta, para delimitar seu território.

– Muito interessante, rapaz! – exclama o senhor, tomando um gole de cerveja.

– Senhor, para fugir do desconforto da convivência forçada, é comum que as pessoas adotem diferentes posturas, nem sempre condizentes com seu comportamento usual. O amigo se arriscaria a descrever alguns?

– Vamos tentar… Tipos que surgem entre um andar e outro. Posso começar falando do Intrometido, sujeito falador, geralmente indiscreto, sente-se no dever de conversar com todos, falando interminavelmente até o elevador se esvaziar. Muitos deles me cansavam, sabe?

– Certo. Há outros?

– O Observador, esse tipo olhava os outros da cabeça aos pés, observando detalhes da roupa ou características físicas. Esses não falavam, não exprimiam nenhuma emoção e ficavam atentos mesmo se o elevador estivesse vazio. Tinha ainda o Arrogante que, na maioria das vezes, estava vestido de forma impecável, olhava os outros com desprezo ou autossuficiência e, em geral, era esse tal de front runner.

– Esse tipo de pessoa, senhor, não raramente assume tal atitude por puro mal-estar causado pela proximidade alheia. Costuma sacar o celular assim que a porta abre.

– Sim, rapaz, mas pior do que eles eram o tipo Intratável. Faziam de tudo para evitar qualquer contato físico ou verbal. Se o elevador estivesse ocupado, hesitava entrar, usava a escada ou esperava a próxima viagem. Se alguém tentasse romper o silêncio, ficava quieto, olhando para frente.

– Os intratáveis são insuportáveis em qualquer lugar. Conte-me mais, amigo…

– Há um tipo curioso: o Vaidoso. Quando esse tipo de pessoa entrava no elevador, buscava imediatamente um espelho e, na falta deste, usava a superfície metálica que refletia sua imagem para ajeitar roupas, cabelos e sobrancelhas. E, por fim, temos o Inseguro, mostrava-se hesitante, atrapalhava-se com o andar, solicitava as mais diversas informações.

– Legal essa tipologia que o senhor acabou de me traçar. Valeu mesmo para minha pesquisa.

– Também tem outro ponto, rapaz – tomou um gole da cerveja, deu um sorriso e completou: – Nos momentos que eu estava monitorando as câmeras, principalmente nas madrugadas, eu via muita sacanagem nos elevadores.

– Eu já esperava por isto, senhor. Algumas pessoas têm preferência por locais pouco convencionais para as práticas sexuais. A fantasia dos amantes não tem limites, mas o sexo no elevador, que não raro, as filmadoras registram, tem algo específico. Em banheiros de restaurantes ou aviões, no escritório ou no carro, por exemplo, é possível fechar a porta à chave e não ser descoberto. Já no elevador, há sempre o risco de a porta se abrir e aparecer um estranho. Há, ainda, a possibilidade de que exista uma câmera escondida e de que alguém assista a tudo do início ao fim. Tais comportamentos podem ser considerados extravagantes, o termo também pode ser libertário, pode ser compreendido como uma forma de fugir da pressão do trabalho, da ansiedade social e da monotonia da relação conjugal.

– Isso pode ser a opinião da psicologia, mas para mim é sacanagem mesmo! – exclama o senhor rindo.

– Tudo bem, o senhor me ajudou bastante, mas agora tenho que voltar para a faculdade.

O rapaz até se ofereceu para pagar a conta, mas o senhor não quis. Despediram-se e o moço foi ao elevador e embarcou sozinho na caixa metálica. No andar de baixo, entrou uma linda moça, loira, vestido de ombros à mostra, meia-calça, toda de preto, combinando com assessórios coloridos, ficando de costas para ele. O rapaz, encostado no fundo, discretamente a olhou de cima a baixo e pensou: “Pena que a psicologia do elevador ainda não ensina como conquistar uma gata desta!”

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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