TEM DIA QUE A NOITE É ASSIM!

VENTOS DE PRIMAVERA – Emílio Figueira / Jan. de 2001 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 0,40 x 0,60

Como é bom recordar! Nelzir arruma suas coisas na estante da sala, momento que reencontra seu velho diário e começa a ler uma passagem de sua vida.

Voltava da escola com algumas amigas, abraçada ao seu material. Passando em frente a uma casa, viu um moço sentado na varanda que despertou a sua atenção pelo seu belo rosto. Seus olhares se cruzaram, mas ela continuou sua caminhada.

– Que gato! – exclamou Nelzir a uma amiga.

– Ele é novo na cidade – afirmou a mesma amiga, pois não era difícil identificar as pessoas naquela pequena cidade de interior.

No outro dia, fizeram o mesmo caminho. O moço estava no portão e segurava uma linda flor com uma das mãos. Não estava sozinho, como não tinha a perna direita, fazia-se acompanhar por duas muletas. Mas isso não abalou Nelzir, que o cumprimentou e iniciou o diálogo: 

– Oi, como vai?

– Bem, e você?

– Estou ótima, meu nome é Nelzir.

– Prazer, Nelzir, meu nome é Sílvio. Sou novo aqui na cidade.

– É, estou sabendo. Bonita essa flor em sua mão.

– Tome, ela é sua!

– Obrigada – agradeceu quando pegou a flor da mão de Lúcio. Olha, amanhã é sábado, iremos sair e, se você quiser, pode vir com a gente. Assim você vai se enturmando.

Sílvio aceitou o convite, agradecendo. Antes de Nelzir partir, os olhares de ambos se fixaram por mais alguns instantes. 

Sábado à noite. Foram todos para a lanchonete, o papo corria descontraidamente. Sílvio contou para o pessoal um pouco de sua vida.

– Na maior parte de minha vida, estudei em escolas especializadas. Tive uma infância programada, pois tinha hora certa para tudo. Dividia as brincadeiras com as terapias, foi uma época feliz. Mas as crianças correm, o tempo passa e hoje estou aqui. Um cidadão grande e equilibrado, segundo o conceito da psicologia moderna!

Nelzir era uma garota muito bonita e, como tanto, muito paquerada e observada pelos rapazes da lanchonete. Porém, não estava nem aí. O bate-papo com Sílvio era mais interessante. O rapaz despertava cada vez mais a sua atenção! 

Sílvio, vendo os casais de namorados numa boa pelas mesas, sentiu um ciúme, mas guardou-o somente para si. Sempre quis ter alguém ao seu lado para acariciar e trocar juras de amor.

– Você nunca teve namorada, Sílvio?

– Não, nunca.

– Mas você deve estar de olho em alguém, não é?

– Sim, tem uma moça aqui na cidade... ¬– e começou a descrevê-la.

– Ah, deve ser a Renata – comentou um dos componentes da mesa.

De repente, como num passe de mágica da novela das oito horas, a própria citada chegou. Foram apresentados, enquanto ela se sentava à mesa com eles. O papo continuava quando um rapaz sentado ao lado de Sílvio sugeriu em seu ouvido:

– Por que você não se confessa à Renata? Ela é legal, vai lhe dar atenção. 

O mesmo rapaz deu um jeito e retirou todos dali, deixando-os a sós. Ele começou a se declarar. Talvez por timidez ou falta de experiência, Sílvio foi direto ao assunto:

– Estou a fim de você, Renata. E não é coisa de momento. Não quero ser apenas um livro que você lê e põe na estante e o esquece. Quero ser o livro que marcará a sua vida.

Ele percebeu que, de longe, Nelzir não parava de olhar para eles na mesa.

– Bem, Sílvio, achei muito bonito o que me disse e, apesar de eu ter acabado de conhecer você, já o considero um cara legal. Mas já há outro livro muito importante em minha vida, me desculpe.

Renata nem tentou disfarçar que estava dispensando o rapaz pela sua particularidade física. Ele percebeu isso, mas deixou o silêncio falar por eles.

– Bem, acho melhor chamar o pessoal de volta – ela sugeriu.

Ao voltarem, os amigos decidem ir ao clube dançar, menos Sílvio que preferiu continuar ali.

– Se vocês não se importarem, prefiro ficar aqui fazendo companhia para o Sílvio – Nelzir declarou.

– Pode ir com eles...

– Não, prefiro ficar com você.

Nesse momento, todos saíram, deixando Nelzir em companhia do rapaz.

– Decepcionado, Sílvio?

– É sempre assim. Sempre tomo “fora” e por isso me limito tanto no amor. Acho tão difícil me relacionar com outra pessoa, pois elas sempre me olham com indiferença. Quer saber de uma coisa? Estou com vontade de chorar.  Desculpe-me.

Nelzir ofereceu o ombro amigo e passou a confortá-lo.

– Chore, meu amigo, chorar faz bem.

Enquanto isso, ela notou os outros rapazes vendo aquela cena. Era como se eles dissessem: “Olha que gata servindo de babá para aquele pobre deficiente só por piedade”. 

Nelzir, que já vinha sentindo algo a mais por ele, deixando o amor falar mais forte, não teve dúvidas. Numa impulsão, virou para Sílvio, segurou o seu rosto com ternura, dando-lhe um profundo beijo à boca. Todos ficaram boquiabertos.

– Esse beijo foi por acaso? ¬– Sílvio perguntou estando ainda meio zonzo pelo que aconteceu.

– Não... É por acaso que as pessoas surgem em nossas vidas, mas não é por acaso que permitimos que elas fiquem. Quero que seja meu namorado, acima de qualquer barreira que teremos de enfrentar juntos.

– Engraçado, há pouco sofria por uma garota e me martirizava por não dar nada certo e agora, no fim da noite, estou com a moça mais paquerada da cidade.

– Tem dia que a noite é assim, cheia de surpresas! Enquanto o mundo tem preconceito, agora eu tenho você... – e se beijaram outra vez.

De volta ao presente, Nelzir fecha o diário e, num alegre suspiro, diz a si mesma:

– E hoje, esse moço é meu marido. 


Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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