14 - DIAS FINAIS

  Marcelo tomou uma decisão:

- Vou até a casa de Roseli bater um papo com o pai dela.

- Posso ir com você?

- Não é preciso, Vítor.

- Mas quero ir, Marcelo. Por favor... -Insisti, pois fiquei com medo do que poderia acontecer.

- Tudo bem, vamos...

Lá no momento em que o pai dela ia saindo para o trabalho, aproximamo-nos.

- Seu Guimarães, posso conversar um instante com o senhor?

- Não temos nada para conversar, rapazinho.

-Acho que temos sim...

- Bem, já que você insiste, vamos lá. Quem sabe eu consiga fazê-lo esquecer de minha filha...

“Ou o Marcelo consiga o contrário”, pensei comigo mesmo.

Dentro de casa, na sala de estar, Marcelo foi direto ao assunto:

- Parece que o senhor não quer que eu e Roseli namoremos?

- Não é bem isso. Roseli é muito nova ainda e eu quero que ela estude primeiro para depois namorar.

Ele conseguiu uma boa saída de início.

- Não me parece que o motivo seja bem esse...

- Onde você quer chegar, Marcelo?

- Ela me contou o verdadeiro motivo.

- Bem, tente entender, meu rapaz. Quando a gente cria uma filha, espera o melhor para ela. Nunca imaginamos que...

- ...que ela queira namorar um cara com deficiência assim como eu, não é? Desculpe ter interrompido o senhor. Posso entender a sua posição, pois eu também já fui uma pessoa sem limitação física. Naquela época nem se quer olhava para eles e muito menos para as moças “deficientes”. Depois que passei a integrar e conviver com essa turma, descobri o mundo maravilhoso que os cercam, assim como também os seus problemas. Só que o importante foi descobrir que, apesar de possuírem algumas limitações, são potencialmente dotadas e normais como outra pessoa qualquer e lutam por dias melhores.

Seu Guimarães tirou o lenço do bolso, enxugou a testa e disse a Marcelo:

- Sim, tudo bem, mas voltando ao que eu estava dizendo, nós pais também nos preocupamos com o futuro de nossos filhos...

O que ele estava tentando explicar era que o problema envolve a questão econômica. Infelizmente, nossa sociedade tem certos conceitos errados a respeito das pessoas com deficiência. E naquela época era pior ainda! Muitos eram considerados como pessoas sem condições para trabalhar e produzir. Isto, porque o mercado de trabalho brasileiro não lhes davam oportunidades para competir de igual por igual. E assim, acreditava-se que eles não teriam capacidades de ser independentes financeiramente e muito menos sustentar e manter uma família. 

Mesmo com essa insinuação, seu Guimarães perguntou: 

- E você, Marcelo, o que espera da vida?

- Estou no primeiro colegial. Daqui a dois anos quero estar ingressando numa Faculdade de Direito e vou lutar por isso. Acredito que, mesmo em uma cadeira de rodas, poderei ser um advogado.

- Acredito que sim, Marcelo. Torcerei por você...

- Obrigado. Mas agora tente me entender, seu Guimarães. O senhor acha que se eu realmente não gostasse de sua filha, estaria aqui, pedindo permissão para namorá-la. Eu gosto dela. Vou respeitá-la e fazê-la feliz acima de tudo.

Depois de uma longa e franca conversa entre eles, Seu Guimarães deu o seu parecer final:

- É, muitas vezes a gente erra por julgar uma pessoa só pela aparência. Achei você um rapaz muito legal, educado e sincero. Mas minha resposta ainda é não. Como já disse, anteriormente, quero que Roseli estude. Um namoro agora, seja com você ou com qualquer outro rapaz, só iria atrapalhar os planos que tracei para ela.

- Desculpe-me, o senhor está tentando decidir a sua própria vida!!! - Exclamou Marcelo meio desesperado, ouvindo o apelo.

- Por favor, Marcelo, não insista. Eu sei o que é melhor para minha filha. Inclusive ela não está nem mais morando aqui em casa. Mandei-a estudar e morar com a sua avó no Rio Grande do Sul. Será melhor para todos.

Marcelo tentou por meio de uma conversa aberta. Porém a aceitação nesses casos não é tão simples, não chega fácil, ou às vezes nem chega... Ele certamente iria sofrer um pouco com aquela separação. Poderia até voltar a ser aquela pessoa revoltada, até encontrar uma nova razão de viver. Mas, acredito que pelo menos alguma coisa restou e ele aprendeu com aquela experiência: o dom da esperança!

Naquela semana, Isaura iria prestar vestibular. Conseguimos, na Secretaria de Educação, uma autorização especial para ela fazer algumas provas orais, onde a mesma indicaria uma pessoa para acompanhá-la como escrevente. Esse tipo de prova, na minha opinião, é mais difícil que a escrita, pois assim que o professor pergunta, a gente tem que responder, sem tempo para pensar ou voltar à questão mais tarde, o que acontece na prova convencional.

- Estou tão nervosa, Vítor.

- Calma, você vai se sair muito bem, Isaura.

Aquele esquema tinha tudo para dar certo. Só que, infelizmente o destino nos aprontou mais uma. Sexta-feira, na última hora - pois as provas seriam no sábado e domingo -, a Secretaria nos informou que não teria condições de indicar tal representante. Não daria mais tempo de entrarmos com uma liminar, motivo de tristeza e revolta para nós, que trabalhamos e a incentivamos tanto para que ela chegasse até ali. Nós que a conhecíamos e sabíamos que ela era capaz. Aliás, aproveitando o gancho, vou fazer aqui aquele comentário com relação a colocação de alunos com deficiência em escolas normais, conforme prometi fazer em um capítulo anterior.

Durante muitos anos o conceito de Educação Especial teve uma forte aceitação em nosso país. Hoje em dia, muitos especialistas dizem com segurança que, por trás das chamadas Classes Especiais e dos altos custos para mantê-las, ao isolarmos tais alunos dos demais, estávamos realmente promovendo a discriminação dos mesmos. Sem se falar ainda dos muitos mantidos em instituições (Centros de Reabilitação totalmente fechados), criados somente para eles, sem qualquer contato social. Mas nas últimas duas décadas esse quadro começou a mudar, pois passamos a perceber que grande parte dos alunos com algum tipo de deficiência não necessitavam necessariamente desse tipo de educação, podendo perfeitamente estudar em escolas de ensino comum. A partir daí passou-se a buscar alternativas para que essa inclusão escolar acontecesse...

Estamos começando a desenvolver uma nova mentalidade com relação a isso, baseados em nossa experiência pessoal e observações profissionais. É comum se dizer que a Educação é o processo formador e libertador do ser humano. A pessoa quanto mais informada e estudada, mais consciência terá de si e do mundo que o cerca. E a partir do conhecimento a conquista de sua cidadania estará em suas próprias mãos.

No caso de uma pessoa com deficiência, é fundamental e até mais importante se o seu processo educador ocorrer nas escolas regulares de ensino. Isso porque, ao mesmo tempo em que se está adquirindo o conhecimento, estará ocorrendo o processo de inclusão de maneira natural, onde as pessoas com ou sem deficiências aprenderão a conviver umas com as outras sem qualquer restrição ou medo. 

Voltando ao nosso assunto principal, todos lamentaram. Eu não acreditava no que estava sentindo. Mais uma vez, Isaura estava sendo vítima de discriminação que, infelizmente existe no ensino brasileiro ainda hoje. Porém, foi a mesma que nos deu força nessa hora, com o seu sorriso sempre alegre e otimista, dizendo-nos:

- Calma gente, o ano que vem está logo aí. Tentarei de novo...

Ela não estava fingindo; pois era consciente de sua capacidade e conhecia bem os problemas e as dificuldades que a cercava. Novamente tentaria e seria aprovada, pois além de tomarmos cuidado para não acontecer outros problemas como este, a sua vontade era maior que qualquer barreira.


Quando já estávamos consolados com o ocorrido, Márcia chegou, pedindo a palavra para dar uma notícia que nos alegrou:

- Tenho um bom motivo para deixá-los felizes. Não contei para ninguém antes, mas prestei exames em um conservatório de música e hoje fiquei sabendo que fui aprovada. No próximo ano irei estudar música e violão.

Mais uma vitória tinha sido alcançada...

* * *

No dia seguinte, José estava no jardim do Centro.

- Chateado, José? - Perguntei-lhe aproximando, juntamente com a Vânia.

- É, estou pensando no que vou fazer da minha vida daqui prá frente...

E Vânia lhe disse:

- Pois é bom não pensar muito. Temos uma boa notícia para lhe dar. Conseguimos uma oficina profissionalizante para você aprender um ofício. Assim, será mais fácil depois conseguir um serviço, não acha?

- Jura? - Perguntou-nos com o rosto alegre.

- Verdade. E se quiser, podemos ir lá conhecê-la agora.

- Lógico que quero, Vânia.

Fomos até lá. Havia muitas pessoas com deficiência aprendendo vários ofícios. José poderia escolher um que lhe agradasse. 

Naquela oficina várias pessoas utilizavam-se de cadeiras de rodas. Foi quando parei para analisar o que significa realmente isto. Geralmente, ao vermos pessoas em cadeiras de rodas, temos a impressão que elas são “condenadas”, “confinadas” ou “presas” às mesmas. Porém é totalmente o contrário. As cadeiras de rodas surgiram para suprir as dificuldades de locomoção. Assim a partir daquele momento, passei a ver as cadeiras de rodas com instrumento de independência, libertação e inclusão à vida.

* * *

Naquela semana também houve a formatura da turma de Rosemeire. No próximo ano seriam uma nova turma no ginásio especial do Centro, deixando a infância e entrando para uma nova fase na vida: a adolescência! Começariam a descobrir o mundo, o seu próprio corpo e lutar por suas paixões, sejam elas amorosas ou existenciais. Seriam novos casos, outras histórias e novos desafios a serem enfrentados...

CAPÍTULO FINAL


Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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