3 - MARCELO, UM NOVO ALUNO

  Nas aulas seguintes correu tudo bem. Até que um dia entrou um novo aluno em nossa turma: Marcelo. Era um rapaz magro, cabelo curto e castanho, assim como seus olhos que pareciam muito sério.

Havia sofrido um atropelamento, ficando impossibilitado de se locomover com suas próprias pernas, motivo pelo qual estava em sua cadeira de rodas.

Comecei a minha aula:

- Bem, pessoal, vamos estudar um pouco de gramática.

- Eu não quero estudar - disse Marcelo, num ar de revolta.

A adolescência certamente é uma fase fascinante em nossas vidas, embora seja de difícil transição. Nela temos mil planos, ideias revolucionárias, chocantes, a vontade de reformar o universo, de estudar, formar-se, constituir uma família, ter filhos, posição social, viagens, fama, fortuna, sonhos, utopias... Porém, se tudo isso for interrompido por aquisição de algum tipo de deficiência, torna-se inicialmente traumático e muitas vezes revoltante, o que estava acontecendo com Marcelo. A pessoa vê seus sonhos e utopias "destruídos" (pelo menos por enquanto), sente diz coisas como "a vida acabou para mim", "era melhor ter morrido", ou mesmo "agora não sirvo para mais nada ".

Mas a reabilitação é preciso, embora muitas vezes difícil, por isso toda a experiência, aventura e conhecimento acumulados até naquele momento por Marcelo, referia-se a sua vida anterior ao acidente. É como se ele tivesse que passar uma borracha sobre tudo e começar, adaptando o seu cotidiano a sua nova realidade.

Há casos como que, devido ao trauma, no íntimo da pessoa passam a explodir violentas vontades de vingança (principalmente se ainda for criança), como se toda a sociedade tivesse que pagar por sua tragédia. Mas isso sempre pode ser resolvido com um bom acompanhamento de um psicólogo.  Aliás, sempre acreditei e defendi a importância de um bom acompanhamento psicológico não só para as pessoas com deficiência, mas para qualquer ser humano. Chega daquele velho mito que "psicólogo é coisa só para louco". Louco hoje em dia, na conjuntura atual dos acontecimentos, é quem não tem um psicólogo.

A partir de um acompanhamento psicológico, a pessoa aprenderá a si conhecer e a lidar com suas limitações. Poderá se libertar de um bloqueio, ou até mesmo um autopreconceito, se permitindo descobrir as suas reais potencialidades. Tão importante ainda está a necessidade de recuperarmos a nossa autoestima, a vivência de sermos apropriados à vida e às exigências que o cotidiano nos coloca; desenvolver a confiança em nossa capacidade de pensar e encarar os desafios corriqueiros do dia-a-dia. Darmos o direito de ser felizes, sabermos que cada um, independente de sua realidade, tem o seu valor, com direito de expressar nossas vontades, necessidades e desejos; sabendo ainda que temos direito de desfrutar os resultados de todos os nossos esforços. Sonhar e ter as nossas ilusões é algo necessário e um direito que ninguém pode nos negar; mas caminhar com os pés na realidade é importante, pois uma vez que a autoestima resulta quase sempre de uma imagem que temos de nós mesmos, muitas vezes apagar essa imagem construindo ou buscando uma falsa pode gerar uma decepção, uma abstração por não autodesafiarmos nas coisas mais normais da vida.

Voltamos a nossa história.

-Está pensando o que, cara? Que aqui você vai fazer o que quer? - Retrucou Tereza. 

Então acalmei o ambiente.

- Calma, não vamos nos desentender. Nas minhas aulas ninguém será obrigado a nada. E além do mais, o único prejudicado aqui será ele mesmo.

Um profundo silêncio.

Segundo Vânia e Celinha, o trabalho com Marcelo seria a longo prazo, até que se conseguisse torná-lo uma pessoa consciente e preparada para aceitar a sua nova situação, sendo preparado para novamente ter uma convivência plena na sociedade. Por isso me pediram, para de início, não forçá-lo à nada. Assim, eu disse à classe:

- Já sei, vamos estudar através de música. Alguém toca algum instrumento aqui?

-A Márcia toca violão - disse Isaura.

- Mas não estou com vontade - respondeu direto.

- Poxa, é difícil chegar num acordo com vocês, não? - Exclamei com um ar de gozação.

- Isto está ficando monótono! - murmurou Marcelo.

Percebi que ele tinha razão. Fui até a janela pensar um pouco.

- Gente que tal largar a monotonia dessa classe e ir todos para o jardim?

Todos concordaram com o convite. No caminho muita animação. Roberto ajudando Márcia com sua cadeira de rodas. Isaura caminhava sozinha, pois conhecia o Centro inteiro. Os demais foram conversando e rindo.

O jardim era um lugar amplo e todo gramado onde de vez em quando o pessoal jogava futebol. Ao fundo, vimos a grade de ferro pintada de verde que dava para uma rua movimentada. À direita, havia uma piscina cercada, uma quadra de futebol de salão, aonde também se jogava basquete em cadeiras de rodas. Ao centro do pátio, estava o play-ground, onde a professora Rosemeire brincava com seus alunos menores. E à esquerda, beirando a cerca, havia algumas plantas bem cuidadas, uma horta formada pelos próprios alunos do Centro e muitas árvores em vários pontos, oferecendo gostosa sombra.

Estava um dia ensolarado, motivo pelo qual resolvemos sentar em alguns bancos debaixo de uma grande figueira.

A turma passou a conversar sobre os mais variados assuntos e rir das piadas de José.  Resolvi perguntar-lhes:

- Amanhã é sábado posso saber o que vocês irão fazer?

- Eu irei encontrar a minha turma e fazer dar um passeio - respondeu Tereza.

- Acho que irei a uma festa - Isaura toda sorridente.

Gesticulei para o Edson, que me respondeu que iria jogar bola e à noite encontrar com alguns amigos e ir a um barzinho.

- Ficarei aqui mesmo no Centro assistindo a televisão - respondeu José.

Dirigi a pergunta àquela que estava sempre calada.

- E você, Márcia, por que novamente ficou quieta?

- Por não ter nada a falar, Vítor. Novamente ficarei em casa sem fazer nada, observando tudo de longe sem poder participar.

Vi uma tristeza em seu rosto. Diante disso, não sabia se o que queria propor era válido. Mesmo porque já estava sendo uma ousadia minha tirá-los da sala levando-os para o jardim. Mas fui além:

- Tive uma ideia. Na escola onde lecionei haverá amanhã uma festa. Que tal formarmos um grupinho e irmos todos?

Tereza e Isaura toparam logo de início, assim como José e Edson.

Márcia questionou o problema de sua locomoção. Então ofereci-me:

- Eu tenho carro, posso passar para te pegar, assim como José e mais alguém que precisar.

- Eu não vou. - Exclamou Marcelo, como sempre.

- E por que não? - indagou Celinha, a psicóloga que chegou por trás e ouviu a conversa. - Acho ótima a ideia do professor Vítor e se eu for convidada, posso ir com vocês.

- Claro, vem com a gente, Celinha - convidou Isaura.

- Só não vale ser mais paquerada que nós - brincou Tereza e todos acharam graça.

- Agora, Marcelo, gostaria de bater um papo com você. Posso levá-lo, professor?

- Logico, e não precisa devolver...

Todos riram, inclusive Marcelo. Comecei a soltar o meu lado de gozador, graças à intimidade e confiança que o grupo passou a me transmitir.

Celinha teve uma conversa com Marcelo no sentido de sacudi-lo para que voltasse à realidade, conforme relatou-nos mais tarde em uma reunião de equipe, que realizávamos mensalmente para avaliar o desenvolvimento de cada um. Segundo ela, o diálogo foi mais ou menos assim. 

- Por que você disse não querer ir, Marcelo?

- Não estou com vontade.

- E por que não? Você não quer ver gente da sua idade? Divertir-se?

- De que adianta? Estou preso nessa cadeira maldita. Não posso mais dançar, transitar pelo salão, fazer o que fazia antes do acidente. Meus amigos continuam vivendo normalmente, num mundo que não mais me pertence. E eu? Estou jogado no meio desse monte de deficientes, que não se interessa por programas melhores, estão aceitando sempre tudo com muita naturalidade. O que você quer que eu faça?

Segundo Celinha nos explicou, o que mais um deficiente sente é o desaparecimento dos amigos ou até de alguns parentes. A convivência com outros deficientes também pode ser um problema. Se antes ele tinha sentimentos valorizados pelas pessoas com deficiência (tais como piedade, dó, repulsa, etc.), aos vê-los, é como sentar-se em frente a um espelho, onde todos esses sentimentos passam a se refletir em si mesmo, podendo ainda acarretar uma "autonegação''...

Para uns, basta uma conversa com alguns jovens com deficiência que já superam todos esses problemas, possuindo uma enorme vontade de viver, para que aceitem a sua realidade. Mas, para outros, essas convivências podem se tornar um martírio, devido ao espelho da realidade.

- Quero que seja você mesmo! Esses deficientes a que você se referiu serão todos vencedores na vida. Sabe porquê? Eles aceitam as suas próprias realidades e estão lutando por dias melhores e o mais importante é que cada um acredita em si mesmo e lutam mesmo tendo uma deficiência. Você não pode e nem deve passar a vida culpando e se martirizando por esse acidente. A vida está aí. É preciso viver. Você irá ao baile conosco?

- Não sei, vou pensar, Celinha...

- Isto, pense...

O simples fato dele dizer que iria pensar, já era um ponto positivo, segundo Celinha. Começava a querer ceder. Mas, na minha opinião, apesar de não ser um psicólogo e sim um professor, faltava talvez um incentivo que o reanimasse a viver.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem