11 - DUAS VISÕES

 No último final de semana antes de voltarem às aulas, no sábado à noite Jéssica e Eduardo foram jantar na casa de Paula. Esses encontros entre amigos eram muito comum em cidades pequenas. E como quase uma tradição, foram todos para a varanda dos fundos fazer churrasco.  

A casa da professora era toda adaptada com total acessibilidade. Jéssica se encantou com o seu filho de três anos. O marido de Paula era amigo de infância de Eduardo. Logo começaram uma longa conversa. 

À certa altura, Paula comentou:

- Sabe Jéssica, foi uma benção você ter vindo para nossa cidade e escola. Nos últimos meses avançamos muito em termos de inclusão.

- Verdade Paula. Mas foi porque temos uma diretora aberta a todo tipo de mudanças, acolhedora a todo tipo de alunado, muitos professores e todos os funcionários envolvidos e de coração aberto. Eu sei que ainda temos muito por caminhar. O mérito é de todos, sou apenas mais uma colaboradora lutando por aquilo que acredito...  

- Esse muito por caminhar que você cita, é principalmente em mudar a visão que um grupo de professores que ainda não assimilaram o que é Educação Inclusiva. Há duas visões. A visão tradicionalista do ensino, é por isto eles não veem como encaixar os alunos inclusivos nela e declaram que não conseguem lidar com a inclusão. E existe a visão dos professores abertos as mudanças, ao novo e diante de alunos inclusivos, ou de qualquer outro, vão se informar, conviver, descobrir e buscar todas as potencialidades de corações abertos.

- Isto mesmo Paula. Educação Inclusiva é a busca das possibilidades de qualquer aluno sem distinção!

* * *

Primeiro intervalo de aula após o recesso escolar. Lígia Ester foi até a sala dos professores onde Aparecida conversava com Jucinéia. Após os rápidos cumprimentos, foi enfática na pergunta:

- Posso saber por que professora você planejou àquela viagem bem no dia do nosso Encontro?

- Desculpe-me dona Lígia Ester, mas nós já havíamos planejado antes mesmo do encerramento das aulas. E viajar durante as férias é um direito nosso.

- Concordo professora Aparecida, viajar durante as férias é um direito de todos. Só que julho não é férias e sim um recesso escolar onde os professores ficam à disposição da escola. E a convocação do Encontro foi autorizado pela Secretaria Municipal da Educação contando como um dia letivo. E segundo apurei e não preciso citar as fontes, vocês organizaram essa viagem após eu ter enviado a circular.

Aparecida ficou completamente sem o que dizer, sem graça e suando. A diretora continuou:

- Bem, como contava como um dia letivo e o Encontro foi todo filmado, a Secretária concordou com a minha sugestão que todos os professores faltantes assistam em dia a ser programado as gravações de todas as palestras. Senão terão os seus pontos descontados...

Enquanto isto no pátio, Jéssica e Kotty conversavam quando presenciaram algo diferente. Alunos de outra turma derrubaram biscoitos no chão. Henrique tentou pegá-los para comer e foi impedido pelo amigo. Os colegas da outra turma não entenderam, questionando: 

- Mas ele é autista, qual o problema de comer algo do chão?

E seu amigo explicou a eles: 

- Não é porque o Henrique é autista que vai ser tratado dessa forma. Vocês não comeriam o biscoito sujo, então ele também não vai comer.

- Nossa, que coisa linda que vi agora! – Exclamou Kotty emocionada: - Veja, tudo é natural e espontâneo. As crianças que, como esse amiguinho de Henrique, conhecem uma pessoa com autismo tendem a combater o preconceito das demais. 

- E isso pode ter um efeito em cadeia, Kotty. As famílias das crianças, inclusive, são transformadas. Existe um medo de que o filho seja prejudicado por ter um colega com autismo. É uma desinformação. É preciso que a escola olhe para essa resistência e informe e tranquilize os pais sobre as suas principais dúvidas.

- Mas esse foi um cuidado que a dona Lígia Ester teve desde que Henrique veio para esta escola. Ela fez um trabalho de conscientização com os pais das crianças da turma dele e explicou a eles sobre o autismo. Atualmente, todos colaboram para a inclusão. Isto nos levará à uma sociedade melhor. As pessoas com deficiência estão aparecendo, tendo seu espaço, e com isso todos aprendem a ter respeito, solidariedade e empatia!

* * *

No segundo dia, Marta marcou com Jéssica para conversar sobre a aluna Joelma e foi até a sala de Atendimento Educacional Especializado. Iniciou com um pequeno relato:

- Sabe Jéssica, no semestre passado percebi que a Joelma apresenta um déficit na concentração. Por exemplo, ela sente dificuldade em realizar duas tarefas de uma única vez como copiar o assunto no quadro e ouvir a minha explicação ao mesmo tempo. Por conta disso, o nível de concentração fica prejudicado.

- Então Marta, o mais importante é reconhecer essas dificuldades naqueles que possuem a Síndrome de Down para que assim os recursos necessários para melhorar o aprendizado sejam colocados em prática o quanto antes.  Para o desenvolvimento integral dos alunos com Síndrome de Down, é necessário que eles convivam em ambientes favoráveis. Espaços acolhedores, estimulantes e desafiantes, adequado às suas necessidades, vão permitir que seu desenvolvimento venha em seu próprio tempo, sem nenhum tipo de pressão externa negativa, ajudando-os a superar os próprios limites.

- Jéssica, eu nem sei como lhe agradecer por todas essas orientações.

- Você não precisa me agradecer em nada, Marta. Estou aqui para isto. E lhe orientarei e lhe acompanharei em todas essas atividades. O mais importante de tudo é manter a Joelma sempre inserida dentro de um grupo e com brincadeiras que prendam a sua atenção e sejam de acordo com a idade. Enquanto professora, você pode, gradualmente, aumentar a quantidade de participantes e também o grau de dificuldade das atividades e dos jogos para estimular concentração e memória dela de forma simples e criativa!

- Essas crianças Jéssica, são lindas flores que vieram embelezar ainda mais o jardim da Educação!


Na porta da sala, Marta se despediu de Jéssica com um abraço e saiu caminhando pelo pátio, indo de encontro com a professora Jucinéia que lhe disse indignada:

- Não acredito no que acabo de ver. Você abraçando aquelazinha!

- Aquelazinha é a professora Jéssica e está me ajudando com a minha aluna Joelma. Aliás, muito competente por sinal.

- Eu não estou acreditando no que acabo de ouvir...

- Mas é isso mesmo. Agora eu passei acreditar na Educação Inclusiva. Ou melhor, passei a acreditar em mim mesma enquanto professora e na minha capacidade de promover o desenvolvimento de cada aluno, tenha ele uma deficiência ou não.

- Pois eu acho um saco esse papo de inclusão. Esses alunos não eram para estarem aqui nesta escola e sim, em uma escola que seja para deficientes. Não vão aprender, não são iguais aos outros. 

- E por que você pensa assim, Jucinéia?

- Porque a Aparecida sempre diz isto.

- Está vendo? Nem opinião própria você tem. Prefere ficar na sombra de outra pessoa como se fosse uma rocha para não ter que pensar, formar opiniões próprias, ou ter atitudes. Professores que se colocam contra a inclusão são acomodados como rochas estáticas, ou tem uma baixa autoestima. Eles não acreditam nos seus potenciais e capacidade de dar resposta às questões e desafios educacionais. Tem uma estrutura emocional pouco sólida que origina o pessimismo e a negatividade. Sem senso básico de respeito por si mesmo, desvalorizam-se enquanto educadores.

- Credo Marta, você está parecendo uma psicóloga. Não é a toa que você fica lendo esses livrinhos de autoajuda.

- Não sou uma psicóloga, mas como sua amiga só quero lhe dar um chacoalhão para que você tenha opiniões e vontades próprias. A autoestima só pode ser construída dentro de você. Mesmo tendo pessoas que te amam e lhe dizem todos os dias o quanto você é bacana, uma pessoa bonita, interessante, se você não se amar não vai nem perceber o amor dessas pessoas. Quanto mais considerar que elas estão certas. Pode ser admirada pelos seus colegas, mas, se não admirar a si mesma, aquelas palavras parecerão vazias.

Jucinéia continuou ouvindo de forma estática e sem qualquer reação. Marta continuou a expor o seu pensamento:

- Com uma boa autoestima você terá uma vida e uma carreira satisfatória, legal, gostosa de ser vivida. Mudará o julgamento que você faz de si mesmo. Terá autoconfiança, autorrespeito e autoaceitação. Será uma boa autoestima que determinará se você será capaz de dominar os problemas do dia a dia, como também determinará sua capacidade de se respeitar e fazer valer os seus direitos e suas necessidades, sem ficar se escondendo atrás de outra pessoa para camuflar seus medos e inseguranças profissionais. Deixará de viver sob a referência do outro, do que o outro aprova ou não. Para quem tem boa autoestima a aprovação do outro é apenas consequência. Você se sentirá uma pessoa competente e merecedora.

- Poxa Marta, nunca ninguém falou essas coisas assim. Foi como ter me colocado diante de um espelho...!

- Eu só lhe falei porque quero o seu bem, Jucinéia. E voltando a falar de Educação Inclusiva, muitos são os incômodos, tudo que nos faz mudar ou pensar nos traz incômodos! Alguém tem que dar os primeiros passos, que sejam os nossos que um dia abraçamos a carreira do magistério!!! Abraços, fui...!

PRÓXIMO CAPÍTULO 


Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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