12 - DIAS ROTINEIROS

 Na tarde de sábado, Eduardo e Jéssica passeavam pela praça municipal quando deram de encontro com Linda em sua cadeira de rodas e seus pais. Um jovem casal, a menina era sua primeira filha. Após os cumprimentos, Jéssica se abaixou para dar um beijo gostoso em sua face.

- Como vai a minha florzinha mais bela?

A menina se mexeu toda com os seus movimentos descoordenados para demonstrar a sua alegria. Sua mãe contou:

- Sabe professora, hoje a Linda está um pouco brava por não ter aula, ter que ficar em casa.

- Não fique assim fofa – disse Jéssica com ternura: - Todos nós precisamos do final de semana para descansar, brincar, passear com os amigos, com a família...

- Com o namorado – brincou Eduardo.

- A Linda adora ir à escola, ficar com os amiguinhos dela, com a professora Ione, aprender as coisas – revelou seu pai: - Ela se sente muito acolhida e participante lá.

- É tão bom ouvir isto! – Exclamou Jéssica levantando-se.

Eduardo não se conteve em falar:

- A história de Linda é muito parecida com a minha. E como eu venci e continuo vencendo, ela também será uma vencedora em tudo!!!

Os pais agradeceram emocionados e disseram:

- Bem, agora vamos lá para o estádio municipal para a Linda se divertir um pouco nos brinquedos adaptados para crianças com deficiência.

- Sério??? Eu não sabia que tinha isto aqui na cidade – comentou Jéssica feliz em saber.

E os pais de Linda lhe contaram:

- Uma vez eu estava lá no parque com a Linda e percebi que ela observava as outras crianças, mas não podia fazer muita coisa por falta de acessibilidade do local. Imediatamente adaptei a brincadeira no parque. Retirei as almofadas da cadeira de rodas, adaptei em um balanço, coloquei a minha filha e a empurrei. Foi a primeira vez que ouvi uma gargalhada de Linda. Foi muito emocionante!

- A partir de então, começamos a pesquisar sobre brinquedos adaptados para parques públicos, que permitem interação total de crianças com deficiência com seus amigos. O prefeito amou a ideia e conseguimos esses brinquedos adaptados para o município.

- As crianças com mobilidade reduzida ou com alterações sensoriais e intelectuais também precisam de brinquedos seguros. É preciso estrutura e travas para sustentar a cadeira de roda, assim como brinquedos que ampliem as experiências motoras, cognitivas e sensoriais, que gerem sensações prazerosas que favoreçam a melhora da autoestima.

- O principal objetivo da organização é reforçar a necessidade de as crianças com e sem deficiência brincarem juntas, caminho que conduz a uma sociedade sem preconceitos – disse-lhe Eduardo: - A iniciativa mostra que o acesso e a inclusão não se faz apenas nas escolas e no direito à saúde, mas também no ato de brincar. Mostra para a sociedade que todas as crianças têm direito ao lazer e a se divertirem juntas. Além de mobilizar a atenção da sociedade e do poder público sobre a necessidade da inclusão da criança com deficiência também no lazer, é de suma importância.

Após esse encontro, o casal se sentou em um banco à sombra de uma árvore. Jéssica tinha algo a contar para Eduardo:

- Meu amor, ontem eu recebi um e-mail da minha ex-orientadora da pós-graduação. Ela assumiu uma cadeira em uma universidade em São Paulo. Lembrou-se de mim e do trabalho de pesquisa que iniciei com ela. E me convidou para tentar uma bolsa de mestrado em Psicologia da Educação.

- E como é isto, gata?

- Segundo o calendário no próximo mês, vou ter que ir fazer a prova escrita, depois de uns dias fazer a entrevista com a banca examinadora, apresentar o projeto de pesquisa por escrito e aguardar o resultado dos selecionados.

- E você vai tentar?

- Eu sempre quis crescer em minha carreira. Sinto que ainda posso contribuir muito para a Educação. Acho que vou sim. Você me apoia, lindo?

- Claro fofa. Eu só quero o seu bem e vê-la realizada. Mudando de assunto, vamos no baile hoje?

- Se você não se importa lindo, prefiro ficar em casa. Preciso começar a pensar no tema e estruturar o meu projeto de pesquisa.

Eduardo ficou com uma expressão triste. Jéssica completou em um sorriso:

- Mas bem que você poderia ficar comigo e me ajudar na redação. Faço pipoca para nós!

* * *

Em um dos intervalos a professora Alcione foi até a Sala de AEE. Seu objetivo era relatar como estava caminhando o seu trabalho com o aluno Marcelo.

- Então Jéssica, quando o Marcelo chegou para mim com o quadro de TDAH, primeiro fui ganhando a confiança dele e investigando o que lhe afligia. Descobri que na outra escola ele era obrigado a ficar na sala de aula sem dialogar. Era ridicularizado em seus sentimentos. A professora usava chantagens e subornos, ignorava seus medos para ver se ele os esquecia.

- Isso é muito grave, Alcione.

- Eu quis mudar isso. Fui pesquisar todas as possibilidades de se trabalhar com alunos com TDAH. Mudei a organização da sala de aula uma rotina diária, com recursos visuais e auditivos. Dividi as atividades em unidades menores. Início as aulas pelas atividades que requerem atenção, deixando para o final àquelas que são mais agradáveis e estimulantes. Utilizo música ao fundo, proporcionando um clima agradável, harmônico e tranquilo. Adotei uma atitude positiva, com elogios e “recompensas” por comportamentos adequados. Isto criou um equilíbrio em relação às chamadas para quando ele fazer algo errado. E o resultado foi surpreendente. Marcelo está integrado e florindo como os demais alunos.

- Fico muito feliz em ouvir isto, professora Alcione. O que a Educação Inclusiva realmente precisa é de professores que tenham iniciativas próprias de pesquisar, estudar e criar seus próprios métodos para trabalhar e desenvolver todo o potencial de cada aluno.

* * *

Chegou o dia de Jéssica ir para São Paulo fazer as provas do mestrado. Sua família e Eduardo a acompanharam até a pequena rodoviária da cidade. Por coincidência o professor Maroca também estava por lá e desejou-lhe toda a sorte do mundo. 

Após a partida do ônibus, Eduardo e o professor caminharam um quarteirão até a praça municipal, onde Maroca morava bem em frente. Como estava uma noite quente, os dois se sentaram em um banco para papear.

- Eduardo, hoje lá na despedida eu percebi um pouco de tristeza em seu olhar. O que foi? – Perguntou o professor diretamente, pois entre aquela antiga relação de admiração entre aluno e professor nunca houve cerimônia.

- Não é nada não, professor – tentou disfarçar.

- É sim, eu lhe conheço desde menino...

- Realmente o senhor me conhece. Sabe, essa ideia da Jéssica querer fazer mestrado. É um direito dela. Tem mais que fazer mesmo, ela tem muito talento, gosta do que faz. Tem muito que crescer na profissão. Mas e se ela tiver que embora da cidade?

- Ela lhe disse que pretende ir embora?

- Não...

- Então Eduardo, você está sofrendo por antecipação. A Jéssica ainda vai fazer a prova de mestrado. Se passar, terá no mínimo dois anos para cursar as disciplinas obrigatórias, viajando semanal ou quinzenalmente entre aqui e São Paulo. Depois terá que preparar e defender sua dissertação.

- Eu sei Maroca. E depois? Ela não vai fazer todo esse sacrifício e estudo para ficar em uma cidadezinha desta...

- Depois é depois, Eduardo. Viva o momento com ela. As coisas vão se encaixando e acontecendo naturalmente. A vida é sábia e sempre nos surpreende positivamente. Viva o momento!

- É, mais uma vez o senhor tem razão, professor! – Eduardo abriu um sorriso.

- Bem, agora vou me deitar, porque é hora de velho estar na cama – brincou Maroca.

* * *

Em São Paulo, durante a semana de provas e entrevistas para o mestrado, uma noite a professora orientadora Deise convidou Jéssica para jantar. Elas eram amigas desde a época da pós-graduação. Batiam um papo descontraidamente à mesa do restaurante, quando uma senhora fina, bem vestida aproximou-se reconhecendo a professora. Após os cumprimentos, foi apresentada:

- Jéssica, esta é a Helena, professora e psicanalista do nosso Departamento lá na Universidade. Helena, janta com a gente?

- Se não for incomodo...

- Imagina professora Helena, será um prazer a sua companhia – disse Jéssica.

Após se acomodarem, Deise comentou:

- A Helena está realizando uma pesquisa diferente cujo foco principal são os professores que se colocam contra a Educação Inclusiva e ter alunos com deficiência. 

- Verdade. Ao longo dos anos em minhas pesquisas e viagens, fui percebendo que muitos deles agem assim por uma questão de ego, talvez uma fuga psicanalítica consciente ou inconsciente para esconder suas Inseguranças, medos de não conseguir, lembranças, acomodação. 

Jéssica foi se envolvendo pelo assunto:

- Lá na minha escola vejo alguns professores ainda muito contra a inclusão escolar, defendendo com unhas e dentes que esses alunos deveriam continuar em escolas especiais, como propõe esse tal de “Decreto da Exclusão” do governo federal.

- Aí que tá... Pierre Fédida dizia que, ainda, que todas as formas de assistencialismo, de compaixão, ou de piedade que manifestamos no cuidado com pessoas com deficiência podem, muito facilmente, tratarem-se, no fundo, de defesas contra o que sentimos como pulsões violentamente destruidoras despertadas pela imagem da deficiência. 

- Sim professora Helena, o meu namorado já citou esse Pierre Fédida. Segundo ele a imagem da pessoa com deficiência muitas vezes é como um “espelho perturbador” na sociedade, incomodando por trazer à tona medos inconscientes, a impotência em reconhecermos nossas próprias deficiências, nossas próprias debilidades. Essa imagem perturbadora derruba falsos conceitos que somos perfeitos, sensações de beleza. E muitos querem evitar ficar de fronte a uma pessoa com deficiência justamente para não perturbá-los em seus egos fragilizados e inseguranças mais secretas.

- Exatamente Jéssica. O professor e filósofo Mário Sérgio Cortela diz que “Deficiência, na origem, significa ‘presença da falta’, isto é, ausência de alguma condição ou capacidade que deveria ou poderia estar presente em alguém. Como nenhum e nenhuma de nós é possuidor de todas as condições e capacidades, cada pessoa tem deficiências e, portanto, ninguém é ‘feito por completo’, sentido etimológico da palavra perfeito”.

- Conscientes que somos também limitados e com deficiências, teríamos um ponto de partida importante para autorreflexão sobre quem somos e enquanto professores seria determinante na tomada de decisões na nossa prática pedagógica em relação a inclusão dos cidadãos. 

- Verdade, Jéssica. E completando o pensamento de Helena, evidenciar as dificuldades de reconhecimento frente a realidade é desafiador, sobretudo, quando não desenvolvemos a capacidade de ver o outro numa perspectiva de superação. Entendo como fundamental conhecer os tipos de deficiências, entender aspectos e características inerentes a cada tipo de deficiência, analisar o que é possível fazer e dar mais atenção as potencialidades do que mesmo as dificuldades – concluiu Deise em um sorriso.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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