13 - AS FLORES VOLTARAM À CALÇADA

 

Na manhã de sábado, Jéssica chegou de ônibus à sua cidade. Eduardo a esperava na rodoviária. E no encontro deram um beijo bem apaixonado. Foram até uma padaria ali perto tomar o café da manhã. E ela contou toda empolgada o que se passou em São Paulo.

* * *

Na segunda-feira, Jéssica estava em sua sala na escola, quando Aparecida entrou, dizendo:

- Sábado eu a vi na padaria com o seu namoradinho...

- Ele é um gato, né? – Brincou Jéssica para desmontar o jeito irônico dela.

- Só podia ser você mesma. É tão fissurada nesse papo de inclusão, que até arrumou um namorado deficiente...!

- Por falar nisto Aparecida, você é casada?

- Não, sou separada.

“Logo imaginei”, pensou Jéssica.

Aparecida diz cinicamente:

-  Sabe Jéssica, logo esse assunto de educação inclusiva vai acabar, graças ao decreto presidencial. Temos o exemplo de um movimento de estudantes de ensino médio surdos que reivindicam o direito de escola especial, integralmente em Libras, para que sejam melhor preparados para o Exame Nacional do Ensino Médio e para os vestibulares das instituições de ensino superior. Eles argumentam que, na escola comum, apenas com reforço em Libras no contraturno, demoram muito mais para dominar todos os conteúdos, em comparação com os demais alunos. E que, com professores especializados e ambiente adequado, teriam um aprendizado melhor e poderiam se preparar melhor para o vestibular, por exemplo.

- Aparecida, eu nunca fui contra a educação especial. Pelo contrário, ao longo de quase cento e cinquenta anos, essas entidades prestaram um trabalho importantíssimo. Mas as coisas evoluem. E graças a Deus, pra melhor! Só que exstem mecanismos de pressão que são muito injustos. Precisamos também considerar que muitas famílias, sobre o pretexto de proteger, ainda dialogam com um pensamento capacitista: 'Meu filho não vai dar conta, vai sofrer bullying'. Como se isso não acontecesse em escolas especiais. Essas famílias, novamente, no intuito de proteger os seus filhos, são facilmente levadas pelo discurso de que a qualidade e a capacidade de enfrentamento das escolas especiais seriam melhores, mas na prática elas não são.

* * *

As reuniões de quinta-feira realizadas entre Jéssica e os professores com alunos inclusivos voltaram. E nessa havia dois convidados especiais. Rosa, a Secretária Municipal de Ensino, o professor Maroca e a diretora Lígia Ester, a qual levantou a questão da diversidade e autonomia:

- Com a entrada da aluna Linda em nossa escola, nós providenciamos uma cuidadora para ela, o que está na lei. Mas como foi sendo notado pelas professoras Ione e a Jéssica, da sala de AEE, que a aluna se tornou totalmente dependente da cuidadora. E esse não é o objetivo da nossa política de inclusão. Torna-se necessário um olhar atento a esses cuidadores para que não haja o risco dessa dependência. Para a equipe da escola, promover a autonomia dos estudantes faz parte do projeto pedagógico.

A Secretária se manifestou:

- Esse não é um fato isolado. Muitas escolas que visito, percebo a necessidade de autonomia e diversidade andam juntas. Não é possível valorizar uma sem respeitar a outra e vice-versa! Promover a autonomia, em poucas palavras, relaciona-se com valorizar o uso das capacidades e possibilidades pessoais na solução de problemas. 

- Mas cada pessoa desenvolve técnicas próprias para utilizar suas capacidades e superar barreiras, o que significa que respeitar as capacidades individuais é respeitar a forma com que cada estudante desenvolve suas soluções – completou a professora Paula.

Maroca não se conteve em dar suas impressões:

- Se me permitem dar a opinião de alguém com mais de trinta anos de aula, o professor que, em sala de aula, quer trabalhar com a autonomia e a diversidade precisa abrir mão do desejo de controlar a sala de aula, nos padrões tradicionais. Há diversos casos onde as professoras, com ajuda da classe, conseguiram respeitar as necessidades específicas de determinados educandos. Estar aberto ao diálogo e as propostas em conjunto nos traz muitas possibilidades pedagógicas. Só professores inseguros precisam manter a turma nos padrões tradicionais, prejudicando assim o desenvolvimento de todos.

A Secretária relatou que, quando ela era professora em outra escola, propôs uma mudança radical em sua turma por ter um estudante autista que necessitava levantar-se durante a aula e movimentar-se pela sala:

- Eu abri mão da obrigação de os estudantes assistirem à aula sentados. Realmente, o aluno nunca sentava-se. Mas isso é um problema? Não, é uma característica do aluno. Então está bem relacionado com o jeito de ver o aluno e respeitá-lo, pois lá no projeto pedagógico a gente sempre escreve. Respeitar as individualidades do aluno. Mas o que é respeitar as individualidades do aluno? Se o aluno tem isso como característica até orgânica dele, ficar em pé, por que eu, como professora, tenho de constantemente querer que ele fique sentado? Ele não me atrapalha, nem atrapalha os colegas. “Ah, mas se os outros virem ele em pé vão querer ficar em pé também…” Pois que fiquem! Não tem problema, se eles estiverem produzindo, aprendendo, comunicando-se…

Chegando ao término da reunião, pediram para que o professor Maroca fizessem algumas considerações finais:

- Bem, minhas colegas de trabalho. Umas há mais tempo, outras começando no magistério agora e ainda vão ter muitas descobertas e desafios pela frente. Mas de tudo que foi falado aqui, quero destacar na fala de Rosa, nossa Secretária Municipal de Educação, a relação entre autonomia para guiar-me enquanto professor por meus próprios parâmetros e o respeito à diversidade. Caso a professora tivesse ficado apegada aos valores tradicionais da educação, que pregam que os estudantes devem ficar sentados e atentos apenas ao professor, aquele aluno, independente da deficiência que tivesse, poderia se tornar um problema de disciplina e não se sentiria aceito na escola. E isso sim, seria uma exclusão. E como eu sempre digo, incluir não tem segredo. Basta receber um aluno, seja ele quem for. Acolher com amor, ter a sensibilidade de perceber e pesquisar o que ele realmente precisa de apoio para se desenvolver em todos os sentidos. Um bom professor precisa ser um suporte seguro que lança seus alunos rumo às infinitas possibilidades.

* * *

Chegou o mês do aniversário da cidade. E com ele o tradicional baile de casais. Pela primeira vez Eduardo teria uma companheira naquela data. Ele e Jéssica estavam vestidos elegantes. Encontraram amigos no salão do clube lotado. Dançaram algumas seleções de músicas tocadas por uma banda ao vivo.

Em um dos intervalos o rapaz deixou sua namorada com uma amiga e foi ao banheiro. Na volta, ao passar por um corredor lotado de pessoas, esbarrou em alguém. Ao virar-se para pedir desculpas, era uma moça alta, loira, cabelo chanel, fina que logo lhe reconheceu:

- Eduardo, é você...?

Ele a olhou por alguns instantes, mas logo a moça lhe veio à memória e ele abriu um sorriso:

- Lidiane, não acredito. Que bom lhe rever.

Trocaram um caloroso abraço. 

- Aproveitei o feriado para visitar meus pais. Sabe, eu não tive mais contato com você, mas eu recebo o jornal da cidade. Gosto muito do seu jornalismo e do modo que você escreve.

- Eu também acompanho a sua coluna e o seu blog diário no Correio Paulista, Lidiane. Tenho muito orgulho de saber que hoje você é uma das principais jornalista de política do país.

Jéssica vinha caminhando a procura de Eduardo que demorava a voltar. Ao vê-lo abraçado com aquela loira, sentiu uma pontada de ciúmes. Controlou-se e foi até eles. Eduardo, ao percebê-la, largou a amiga e pegou a mão de Jéssica, apresentando-a com muita alegria:

- Lidiane, esta é a minha namorada, a grande alegria da minha vida.

A moça abriu os braços e exclamou sorrindo:

- Que linda namorada você tem, Eduardo. Aposto que você é uma mulher muito feliz ao lado deste meu querido amigo.

Ficaram por alguns instantes ali no papo descontraído, até que um homem de terno e cabelos grisalhos aproximou-se. Lidiane pegou em seu braço, apresentando-o:

- Pessoal, agora é minha vez de apresentar. Este é Jorge, o meu marido.

Eduardo o reconheceu, dizendo ao apertar sua mão:

- Eu lhe conheço, você é o chefe de redação do jornal onde a Lidiane trabalha.

- Isto mesmo, sou o chefe da minha mulher – brincou Jorge: - A Lidiane sempre me falou de você, já li alguns de seus textos. Eu já era admirador do seu trabalho mesmo antes de conhecê-lo pessoalmente.

Os dois casais se sentaram à uma mesa de canto e conversaram por quase uma hora. Ao ter que ir embora, Jorge tirou do bolso o seu cartão e o ofereceu a Eduardo:

- Tome, fique com os meus contatos. Como eu lhe disse, sou seu admirador e do seu trabalho. Se algum dia Eduardo, você quiser dar um salto maior em sua carreira jornalística, por favor, procure-me.

* * *

Naqueles dias a professora Aparecida precisou de uma licença médica. A diretora Lígia Ester achou que seria uma boa oportunidade para Jéssica assumir a sala, observar Henrique, traçar uma linha de trabalho, atividades. Só que a professora conseguiu observar muito mais em termos de relações entre ele e toda a turma. Teve um momento que uma colega de Henrique lhe contou:

- Sabe professora, quando nós conhecemos o Henrique, não sabíamos o que era autismo. Fomos pesquisar na internet e conversar com outros professores da escola sem ser a professora Aparecida para entender os principais sintomas do transtorno.

Jéssica percebeu que as crianças aprendiam muito com o Henrique nessa questão social de perceber o outro, de entender o que o outro está passando. O Henrique não verbalizava e isso fazia com que a sala desenvolvesse a sensibilidade de perceber o outro sem que ele se expressasse verbalmente.

Era um aprendizado eterno. Os ganhos não ocorriam somente na socialização, abrangem também a aprendizagem. Em todas as aulas, os colegas de Henrique prestavam auxílio a ele, ajudavam a desenhar, a explicar o conteúdo, a prestar atenção, a aprender a pronunciar novas palavras, a usar o computador e a entregar as lições, por exemplo. 

Como em qualquer turma, cada aluno da sala estava em um nível de desenvolvimento diferente, a troca entre todos beneficia que aprendam ainda mais. Quando ensinavam algo para o Henrique, a autoestima da turma melhorava, porque percebiam que estavam ajudando alguém. E também iam relembrando a matéria para passar para ao amigo, o que é ótimo para estudar.

* * *

Naquela semana a Secretaria Municipal de Educação promoveu um Seminário sobre recursos pedagógicos para alunos com deficiências visuais. E a Paula foi convidada para palestrar. À vontade no palco, ela mesma se apresentou:

- Para quem ainda não me conhece, sou a professora primária Paula, cadeirante, casada, mãe do garoto mais lindo do mundo. Em minha turma há um aluno cego chamado João. Vocês podem até achar esquisito uma professora cadeirante lecionar para um aluno cego. Mas não. Nossas deficiências são apenas particularidades nossas. Fora isso, somos professora e aluno como os demais. Claro que contamos com algumas adequações pedagógicas. E com os programas de orientação e mobilidade e as atividades de vida diária, AVDs, são complementações curriculares que devem ser desenvolvidas em outro período em sala de aula de recurso ou em centros especializados, para que o aluno não tenha prejuízos no seu processo de construção de conhecimento na classe comum. 

- Houve alguma mudança curricular? – Perguntou uma professora da plateia.

- O aluno com deficiência visual não precisa de um currículo diferente dos demais. Apenas de adaptações e complementações curriculares, tais como adequação de recursos específicos, tempo, espaço, modificação do meio, procedimentos metodológicos e didáticos e processos de avaliação adequados às suas necessidades. Hoje a nossa escola conta com uma sala de Atendimento Educacional Especializado, AEE, e uma professora especializada em Educação Inclusiva. O aluno João, assim como os demais alunos inclusivos, evoluem pedagogicamente de acordo com suas idades e capacidades individuais. Estão todos integrados. Digo integrados, porque incluir não é apenas colocá-los na escola comum. Eles também precisam participar de todas as atividades e espaços da vida escolar, tornando lindas flores no jardim da Educação!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem