2 - PRIMEIROS DIAS DE AULAS

 Ao entrar na Sala dos Professores, Jéssica deu boa tarde e todos responderam de forma coletiva. Menos a rodinha de professoras amigas da Aparecida que retribuíram o cumprimento com descaso. Uma delas até comentou entre os dentes:

- Chegou a novata...

Na outra ponta da mesa havia uma moça loira de cabelos cumpridos, olhos azuis, sentada em sua cadeira de rodas. Folheava a sua caderneta escolar quando Jéssica se aproximou, dizendo:

- Olá, você deve ser a professora Paula do quarto ano.

- Sou sim. Você é a Jéssica, professora volante. Muito prazer!

Cumprimentam-se com três beijinhos e sentadas frente a frente batem um papo como se já fossem velhas conhecidas. A conversa só foi interrompida com o soar de um sino lá do lado de fora. Jéssica fez cara de curiosa.

- É a dona Kottyna chamando a garotada para formar fila e entrar – disse Paula: - É uma tradição que ela mantém a mais de 30 anos. Eu era pequena, aluna da primeira série nesta escola e ela já fazia isso. Vá lá fora ver.

Ao sair, a professora volante ficou admirada. Kottyna percorria todo o pátio coberto tocando um sininho de mão. Na outra ela tinha uma varinha de bambu. Cada classe ia formando uma fila sempre começando do menor aluno e os maiores para o final da fila. E quando algum aluno bagunçava, Kottyna dava umas varadas quase que simbólica.

Depois uma a uma das filas foram entrando pela porta lateral no meio do prédio rumo às suas classes sem muito barulho.

Jéssica aproximou-se da inspetora:

- Que máximo dona Kottyna, nunca vi uma organização desse jeito. E essa varinha, ninguém nunca reclamou?

- Que nada menina. Essa varinha chama-se “educar os meninos” – deu a sua gargalhada espontânea: - No fundo é tudo uma brincadeira. E eles gostam, porque quando a minha varinha quebra ou fica velha, eles mesmos trazem outra para mim. E quem traz geralmente são os mais bagunceiros.

Voltando para a Sala dos Professores, Jéssica viu de longe alguns de seus colegas ajudar a descer a cadeira de rodas da professora Paula na saída por causa de um degrau. Todos se encaminharam às suas salas. E como não houve nenhuma falta e necessidade de substituição, a volante permaneceu lendo na sala dos professores à disposição da direção.

Leitura que só foi interrompida com o som do sino de Kottyna anunciando a hora do recreio. 

Jéssica levantou-se e foi observar. Lá no refeitório haviam mesas cumpridas. De um lado os banheiros masculino e feminino. Do outro os bebedouros na altura dos pequenos alunos. Na outra ponta ficava o balcão da cozinha, onde as crianças eram servidas pelas merendeiras e se dirigiam às mesas.

Nesses momentos elas ficavam com as atendentes e seus professores iam tomar café e descansar no intervalo. De repente, um menino aparentando uns oitos anos começou a fazer birra e a jogar o prato azul de plástico no chão. As atendentes tentavam acalmá-lo, mas ele ficava mais irritado ainda.

A professora volante em um impulso foi até ele, agachou-se à sua altura, olhou dentro dos seus olhos e falou com autoridade:

- Escuta aqui, pare já com isto. Você é um menino bonito, não tem necessidade de fazer isso perante seus amiguinhos. Olha, todos estão comendo direitinho sem dar escândalo...

O menino parou de chorar, ficou olhando-a por alguns instantes e levantou a mão ameaçando bater nela. Ela também levantou a mão para fazer uma encenação, dizendo-lhe:

- Eu também sei bater. Se você me bater eu vou devolver...

O garoto pensou um pouco, abaixou a mão e foi se sentar na mesa comportado com as outras crianças. Nesse momento, a professora Aparecida surgiu com tudo e com seu jeito espalhafatoso, exclamando em voz alta:

- Mocinha, esse garoto é problema meu. Não é porque você chegou ontem que já pode ir se metendo assim!!!

- Desculpe-me, eu só quis ajudar – disse Jéssica sem jeito, pedindo licença, indo para o banheiro das professoras.

Lá ela se olhava no espelho sentindo-se culpada. Kottyna entrou e foi até ela, confessando:

- Foi a primeira vez que alguém nesta escola teve voz ativa sobre o Henrique. Ele é um aluno inclusivo, com diagnóstico de autismo.

- Eu não deveria ter me metido onde não era chamada. Eu só quis ajudar, aplicando uma técnica que aprendi na minha especialização.

- Relaxa menina, você fez a coisa certa.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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