3 - O CONVITE

 Dois dias depois, ao chegar à escola, Jéssica foi comunicada que a professora Paula do quarto ano tirou três dias de licença e ela assumiria a sala. E lá foi ela feliz. Entrou na classe, apresentou-se aos quase vinte alunos e iniciou um bate-papo descontraído com eles para conhecer um a um.

Entre eles estava um garoto que se apresentou muito risonho e falante:

- Meu nome é João, eu não enxergo. Esse é o meu segundo ano aqui nesta escola e eu amo muito os meus amigos.

- E todo mundo aqui ama o João, ele é o nosso companheiro! – Exclamou uma menina loira em um belo sorriso.

A professora percebeu um bom gancho para iniciar uma discussão em torno da temática:

- Muito bem meninada. Vocês perceberam que cada vez mais coleguinhas com algum tipo de deficiência estão chegando à nossa escola? Eles são iguais a todos. Apenas têm algumas características ou dificuldades mais acentuadas, como não ouvir, não enxergar como no caso do João... Alguns usam cadeiras de rodas, muletas e bengalas para se locomoverem. Alguns têm um pouco mais dificuldade para aprender. Mas todos são crianças e merecem estar todos juntos na aula, nas brincadeiras e em todas as situações. Concordam?

Todos deram um sonoro sim. Um dos meninos comentou:

- O João, por exemplo professora, faz tudo o que a gente faz.

- Muito bem. Que tal agora a cada um fazer uma pequena redação contando de outras crianças ou adultos com algum tipo de deficiência, tanto na escola como fora dela. Depois vocês podem fazer uma pesquisa na internet e trazer tudo amanhã. E podem escrever todas as dúvidas e curiosidades que leremos e esclareceremos todas juntas, ok?

A tarefa tornou-se uma empolgação para todos. No dia seguinte, os alunos apresentaram as pesquisas feitas, a leitura da redação e as discussões descontraída com a professora.

* * *

No terceiro dia de substituição, Jéssica veio fazendo o mesmo caminho. Na calçada da escola, em meio ao cimento frio e duro, parou alguns instantes para observar novamente nas pequenas rachaduras surgiam algumas minúsculas flores. Elas ainda estavam lá, quase imperceptíveis aos olhos de todos. Os cabos e as folhinhas em um verde claro e vivo. Sua flor do tamanho de uma unha, mas de um rosa clara, transmitindo beleza e paz.

De volta à sala do quarto ano, ela passava a matéria normalmente, quando uma menina ruiva a questionou:

- Professora, será que nossa escola está preparada com acessibilidade? Eu li sobre isso na internet...

Ela lembrou-se da cena dos seus colegas ajudando a professora Paula descer a sua cadeira de rodas no degrau da Sala dos Professores. Uma ideia acendeu-se em sua mente:

- Pessoal, que tal nós sairmos juntos pela escola e verificar isto?

A turma saiu da sala animada. Ela percebeu que os colegas guiavam o João de forma espontânea por todos os espaços. E assim foi. Com cadernos nas mãos, foram observando tudo. Degraus, portas estreitas, banheiros, pátio, cantina, campo de futebol, quadra coberta, arquibancada, biblioteca. E toda a escola acabou sendo mapeada.

De volta à sala de aula, um dos alunos teve mais uma iniciativa. Todos redigiram uma carta coletiva com suas observações, pedindo mais acessibilidade na escola, assinaram e encaminharam à Diretoria.

No quarto dia que Jéssica ficaria com essa turma, a aula corria normalmente, quando a diretora Lígia Ester apareceu à porta pedindo para ter uma palavra com todos. Com a carta na mão, ela começou:

- Criançada eu recebi a carta gostei muito da iniciativa. Como eu sempre digo, a escola é de vocês, não da diretora ou das professoras...

- A gente só quer ter uma escola acessível a todos nossos coleguinhas especiais – observou a menina ruiva.

- Claro meu anjo. Eu também já há algum tempo corro atrás disto. Temos a professora Paula e outros alunos cadeirantes aqui... Bem pessoal, trago uma boa notícia. Aproveitei a carta de vocês e pressionei mais uma vez a Secretaria de Educação e consultei instituições que apoiam a inclusão sobre tudo o que está disponível. Vamos conseguir junto ao Ministério da Educação a liberação de recursos financeiros para ações de acessibilidade física, como rampas e elevadores, sinalização tátil em paredes e no chão, corrimões, portas e corredores largos, banheiros com vasos sanitários, pias e toalheiros adaptados e carteiras, mesas e cadeiras adaptadas. O processo nem sempre é rápido, mas ainda este ano teremos uma escola totalmente acessível.

Todos gritam um sonoro oba!!! Lígia Ester antes de sair da sala, dirigiu-se à professora:

- Jéssica, por favor, na hora do intervalo dá uma passada na minha sala. Preciso conversar um pouco com você, sim...

A professora substituta foi à sala da diretoria. Após sentar-se, Lígia Ester, com a carta da turma em mãos, perguntou-lhe em uma conversa reservada:

- A ideia de tocar no assunto inclusão foi sua, não foi Jéssica?

- Foi dona Lígia Ester. Surgiu o tema em classe e achei que era um bom momento para iniciar uma discussão. Fiz mal? – Perguntou sem jeito, com medo de ser advertida.

- Muito pelo contrário. Você fez bem. Sabe, sou uma gestora escolar que gosto muito de professores proativos, com ideias e inovações.  Não sou daquelas diretoras chatas e inseguras que precisa a toda hora dar ordens e mostrar quem manda só para se auto afirmar e querer ter o domínio de tudo e provar para si mesma que é capaz

- E dessas têm um monte por aí, dona Lígia Ester...

- Pois é, Jéssica. Uma boa gestora passa despercebida. Ela não precisa ser destacada e querer levar a glória por tudo. Uma boa gestora precisa apenas manter a ordem e ser o suporte para que a sua equipe se desenvolva e tenha os resultados satisfatórios.

Lígia Ester foi até uma mesinha no canto da sala, serviu duas xícaras de café, trouxe uma para Jéssica, sentou-se e continuou a conversa:

- O assunto que quero ter com você é outro. Aqui na escola temos uma sala de apoio pedagógico, destinada a qualquer aluno que precise de reforço no ensino. Mas Já captei recursos financeiros e recursos materiais e em breve vamos oferecer o chamado Atendimento Educacional Especializado (AEE) exclusivamente para quem tem deficiência, algum transtorno global de desenvolvimento ou altas habilidades.

- Eu acho sensacional dona Lígia Ester. A lei diz que, no turno regular, o aluno com deficiência deve assistir às aulas na classe comum e, no contraturno, receber o AEE preferencialmente na escola. 

- Até hoje trabalhamos em parceria com atendimentos especializados presentes na cidade e região, acordos com centros de referência, como associações, universidades, ONGs e instituições conveniadas ao governo – explicou Lígia Ester entusiasmada: - Agora com os recursos que o MEC disponibiliza, teremos uma sala de AEE multifuncional com equipamentos para todas as deficiências, modelo usado por algumas Secretarias, atende a determinado tipo de deficiência. Um material pedagógico adaptado para a escola, áudio-livros, jogos, computadores, livros em braile e mobiliário.

- Que máximo, dona Lígia Ester. Uma sala de AEE realmente faz toda a diferença em uma escola.

- De fato. E você Jéssica será uma pessoa fundamental nesse projeto.

- Eu??? Não estou entendendo...

- Li em seu histórico profissional que além de sua experiência de anos em sala de aula, você é pós-graduada em Educação Inclusiva, inclusive com trabalho de conclusão de curso publicado e participação em cursos e congressos. A pessoa ideal para assumir a nossa sala de AEE.

A moça tomou um susto. Bateu uma insegurança comum a quem é pega de surpresa com um convite desses.

- Nossa, é uma responsabilidade muito grande. Ainda mais para quem acaba de chegar nesta cidade e escola.

- Capacidade você já demonstrou que tem professora. Mas pense um pouco. Ainda teremos um tempo até chegarem todos os materiais. Só preciso de uma resposta na nossa próxima reunião de professores após o carnaval.

Ao terminar o expediente, Jéssica desceu a rampa para ir embora. Percebeu que o pessoal da limpeza da Prefeitura havia passado por ali, capinado os matinhos da calçada e da guia. E nessa limpeza, todas as flozinhas rosas haviam sido cordadas.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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