Sábado de carnaval. Josineide, a amiga e vizinha dela a convidou para o baile. Morena de cabelos cumpridos, rosto redondo e angelical era justamente a amiga que lhe dava carona ao trabalho todos os dias, a deixava na mesma esquina e depois ia para o centro de saúde onde trabalhava como enfermeira.
O baile era em um clube de esquina no centro da cidade bem ao lado de uma grande praça municipal. Uma banda tocava ao vivo. Estava muito cheio de pessoas, mas Jéssica à princípio se achou meio deslocada, percebendo que ali todos eram conhecidos, amigos de infância que cresceram juntos, uma bela característica que ainda se mantinha viva em muitas cidades pequenas interioranas. Muitas pessoas de mais idade também estavam às mesas em volta do salão.
Josineide não deixou a peteca da amiga cair e foi lhe apresentando para um monte de amigos e amigas. Jéssica se enturmou logo e tudo se tornou uma grande festa.
A certa altura, algo lhe chamou a atenção. Jéssica viu um rapaz com vários movimentos involuntários, muito animado, que conversava com quase todos no baile que lhes davam a maior atenção. Interessante que ele trazia papel e caneta nas mãos e fazia algumas anotações. Algo fazia com que ela observasse com muita atenção aquele rapaz como se o conhecesse a vida toda. Seu olhar fixo nele só foi interrompido ao ser puxada por Josineide para pularem umas marchinhas no meio do salão.
* * *
Na tarde da segunda-feira de carnaval, Jéssica foi até a padaria que ficava na rua comercial comprar algumas coisas para o lanche da noite com seus pais. Entrando e esperando um pouco no balcão para ser atendida, começou a olhar em volta e viu que Kottyna tomava um café sozinha em uma mesa lá no reservado. Foi até lá cumprimentá-la e aceitou sentar-se, pedindo um café com leite para jogar um pouco de conversa fora.
- Estou sabendo do convite que a Lígia Ester lhe fez.
- Pois é Kottyna, vou me abrir com você. Eu me sinto preparada teoricamente, mas não sei explicar, algo dentro de mim ainda me deixa insegura.
- Sabe Jéssica, eu já estou há mais de trinta anos naquela escola. Cheguei a me formar professora, mas a vontade de estar entre a molecada era tão grande que optei por ser inspetora. Todos esses anos eu os amei como meus filhos. Inúmeras vezes quando alunos se machucavam, eu mesma os levava para o hospital e, se preciso, eu até passava a noite lá com eles. Dei muita bronca quando preciso, porém as risadas nos momentos de diversão foram bem maiores. Sem se falar na época dos nossos festivais de músicas e danças na quadra da escola, as peças de teatro que os alunos montavam, nossas festas juninas, a fanfarra que desfilava nas comemorações dos aniversários da cidade. Tudo era muito lindo. Hoje a minha maior recompensa é olhar para traz e ter orgulho de mim mesma que dei a minha singela contribuição na formação de milhares de crianças e jovens, hoje adultos espalhados por este mundão de Deus.
Nesse momento aproximou-se da mesa um senhor baixo de estrutura forte, cabelos brancos como algodão. Vestia uma camisa bege clara abotoada, calça social, e chinelos. Cumprimentou Kottyna que lhe apresentou à Jéssica:
- Este é o professor Maroca. Ele lecionou trinta e sete anos em nossa escola. – Virou-se para o professor, pedindo: - Sente-se um pouco conosco Maroca.
Após rápidas palavras, a inspetora comentou:
- Sabe Jéssica, o Maroca foi o pioneiro em nossa escola em incluir alunos. Isso já nos anos 60, 70, 80 quando nem se quer se sonhava em Educação Inclusiva.
- Verdade – concordou o professor tomando um gole de café: - Meu primeiro caso foi no final dos anos 60 quando me casei e fui morar em uma casa nos fundos da farmácia do meu pai, aqui mesmo nesta rua. Havia um casal de vizinhos que tinha um menino que não andava por ter as pernas viradas para dentro. Ele não saia de casa. Um dia eu olhei para ele por cima do muro e pensei: “Esse menino não pode ficar sem estudar. E quando ele crescer, como irá arrumar um emprego?”
- Nossa, que sensibilidade o senhor teve, professor! – Comentou Jéssica, emocionando-se.
- Eu fui lá, pedi aos seus pais autorização para levá-lo à escola. Fui conversar com o diretor que não concordou, quis resistir, pois rejeitar um aluno fora do dito padrão de normalidade sempre foi um comportamento de fuga para os acomodados que não queiram encarar novos desafios em um sistema educacional e em uma sociedade em constantes mudanças. Então eu lhe disse: “Pode deixar, ele vai ficar aqui por minha conta e risco!” E assim foi. Às vezes eu o levava no colo, outras vezes em um fusca velho que eu tinha. Dentro da escola eu o carregava para classe, para o banheiro, para o refeitório ou para onde precisasse. Seu nome era Matheus. Fazia a primeira série comigo, era um aluno inteligente, aprendia rápido tudo que era passado.
- Só um detalhe Jéssica, naquela época a escola tinha uma política de exclusão muito forte – observou Kottyna: - Usava-se as notas para classificar os alunos mais inteligentes dos alunos com mais dificuldade no aprendizado, dentre outras barbaridades. Alunos com algum tipo de deficiência então eram totalmente proibidos e nem na sociedade eles eram vistos.
- Mas o Matheus foi de cara aceito e acolhido pelos seus colegas – recordou-se Maroca com o seu rosto simpático do alto de seus 84 anos de idade, pele manchada pelo tempo e um cacoete de ficar piscando: - E eu quis ensinar inglês para ele. Às vezes a gente saia de carro e eu ia apontando e perguntando, What color is this house? (Que cor é esta casa?). E ele respondia, The house is green (A casa é verde). Eu quis leva-lo além dos muros da escola para toda a sociedade o conhecesse. Para o campo de futebol, nas festas da igreja, domingo à noite na praça, enfim... A todo momento era uma oportunidade para eu ensinar algo a ele.
- Eu estava iniciando a minha carreira de inspetora. Lembro-me do Matheus como um garoto sempre risonho para todos, sempre agradecido.
Dos olhos de Jéssica corriam lágrimas, sem palavras. E o professor Maroca concluiu emocionado pela lembrança:
- O Matheus fechou a primeira série comigo com notas altas. No ano seguinte voltou a ser meu aluno na segunda série também com um desempenho acima da média. Na terceira série ele foi para outra professora. Seu irmão havia crescido e passou a levá-lo para escola. Só que no meio do semestre a doença dele, que não me recordo qual era, piorou e veio a falecer. Pelo menos o Matheus se foi sabendo ler e escrever e a fazer as quatro operações matemáticas!
- Professor Maroca, que linda história, nem sei o que dizer! – Exclamou Jéssica enxugando os olhos.
- Há muitos outros casos também, mas depois dos oitenta anos a nossa mente vai se apagando – comentou o mestre rindo.
Kottyna deu uma força à mente dele:
- Tem o caso do Eduardo, o mais recente Maroca.
- A sim, é verdade. O Eduardo era um menino com paralisia cerebral, tendo muita dificuldade de movimentos, fala e escrita. Só que ele andava sozinho e tinha certo grau de independência. Ele foi transferido de uma escola especial para minha classe da segunda série nos anos 80. Eu entendia sua fala, pregava as folhas de tarefa com durex na carteira, ele escrevia de um jeito que somente eu lia.
- O Eduardo era um garoto simpático, toda a escola queria estar em volta dele. Não tinha quem não gostasse do garoto – observou a inspetora.
- E muito inteligente, tudo que eu passava, ele assimilava. Passou de ano com boas notas. Deu-se bem com a outra professora. No ginásio a sua letra piorou, mas muitos professores aceitavam o desafio e aplicavam provas orais nele, davam trabalhos de pesquisas para completar as notas. Ele gostava muito de ler, escrever, fazer poesia. Do modo dele aprendeu a datilografar com um só dedo. Meu irmão era diretor do jornal da cidade na época, começou a publicar os primeiros trabalhos de Eduardo. Ele se apaixonou pelo jornalismo, foi estudando, terminou o segundo grau. Prestou vestibular em outra cidade, passou em comunicação social, morou sozinho no alojamento da universidade. Formou-se, voltou para cá e hoje ele é o diretor geral do nosso jornal no lugar do meu irmão já falecido.
Nesse momento, Jéssica lembrou-se com alegria do rapaz do baile de carnaval que despertou a sua atenção. Era Eduardo, um jornalista.
Maroca foi até o balcão e minutos depois voltou com um pacote, dizendo:
- Incluir não tem segredo. Basta receber um aluno, seja ele quem for. Acolher com amor, ter a sensibilidade de perceber e pesquisar o que ele realmente precisa de apoio para se desenvolver em todos os sentidos. Um bom professor precisa ser um suporte seguro que lança seus alunos rumo às infinitas possibilidades.
- Obrigada professor Maroca... Obrigada mesmo pela grande aula que o senhor me deu – agradeceu Jéssica o abraçando com carinho.
- Bem, agora preciso levar o pão para patroa – brincou Maroca. Ele estava saindo, quando virou-se, dizendo: - Meninas, os cafés de vocês estão pagos. Até a próxima...