5 - QUANDO A RESPOSTA VEM DO PASSADO

Passou-se o carnaval. Jéssica pegou carona com Josineide, descendo na esquina de sempre. Atravessou a avenida e, ao pisar na calçada da escola, uma surpresa. As pequenas florezinhas rosas haviam brotado novamente. A professora sorriu e pensou: “Mesmo tão pequenas, parecendo frágeis, vocês não desistem de buscar o seu lugar no mundo, oferecendo tanta beleza”!

Era o dia da primeira reunião de professores coordenada pela diretora Lígia Ester. Vários assuntos foram tratados, discutidos, planos traçados. Até que foi aberto um espaço para quem quisesse trazer assuntos livres. E a professora Aparecida foi a primeira pedir a palavra:

- Eu até vou começar pedindo desculpas à professora Jéssica, mas há um fato que preciso expor. Esses dias durante um recreio, o Henrique estava um pouco agitado no refeitório, as atendentes estavam lá para resolver. Mas ela passou na frente e se meteu em uma função que não era dela.

- Eu peço desculpas por isso, mas as atendentes não estavam dando conta.  Só quis ajudar, colocando uma das técnicas que aprendi em minha especialização – justificou-se educadamente a professora volante.

Lígia Ester foi enfática ao questionar, dirigindo-se à Aparecida:

- Pelo menos a intervenção da professora Jéssica deu certo?

- Sim, deu – respondeu sem graça.

- Isso é que importa. Aqui nesta escola não existe isso de divisões radicais de tarefa – disse a diretora: - Somos uma família e todos estão aqui para colaborar com todos!

Aparecida com um jeito extravagante, que não abria mão de se enfeitar com joias, bolsas, sapatos e demais acessórios femininos e roupas coloridas e chamativas, muitas vezes para pessoas mais jovens do que ela, concordou em um tom levemente irônico:

- Claro dona Lígia Ester, a senhora tem toda a razão. A professora Jéssica foi bem competente. Eu até agradeço, mas se eu fosse chamada, também acalmaria ele...

A diretora percebeu que era hora de entrar no assunto Educação Inclusiva:

- Bem pessoal, vocês sabem que alunos como o Henrique e com outros tipos de deficiências estão cada vez mais chegando à nossa escola...

- Desculpe-me, mas eu nunca escondi que não concordo muito com isso – Aparecida interrompendo a fala da diretora: - Ainda acho que o lugar desses estudantes é na escola especial. Lá eles seriam melhor atendidos.

Lígia Ester olhou para aquelas duas professoras que andavam em conversas de rodinhas com a Aparecida, questionando-as:

- E vocês o que acham disso? Concordam com a colega de vocês?

As duas apenas balançaram as cabeças positivamente.

- Pois é... Muitos dos colegas ainda pensam no ensino nos moldes tradicionais e isso dificulta o trabalho da inclusão – observou a professora Paula: - Isso chama-se capacitismo, a discriminação e o preconceito social contra pessoas com alguma deficiência, por serem entendidas como exceções. A deficiência é vista como algo a ser superado ou corrigido, se possível por intervenção médica em entidades isoladas.

Aparecida como sempre foi a porta-voz do seu grupo:

- Não é isso Paula. Mas sabe, é ruim quando você já tem que gerenciar uma sala de aula cheia de alunos e ainda tem que dar atenção a esses alunos inclusivos. Mesmo assim nós não estamos nos negando a recebê-los. Já é um bom passo tê-los em nossa sala.

Paula não se conteve, indagando-a:

- Então você é do time daqueles professores que acham que já fazem o bastante permitir esses alunos fiquem um pouco em sala?

Jéssica que a tudo assistia calada, nesse momento veio à sua mente a imagem do Professor Maroca dizendo: “Rejeitar um aluno fora do dito padrão de normalidade sempre foi um comportamento de fuga para os acomodados que não queiram encarar novos desafios em um sistema educacional e em uma sociedade em constantes mudanças”.

Aparecida começou a ficar vermelha como quem vai ficando sem argumento. Cutucou por debaixo da mesa uma de suas colegas como quem pedisse socorro. A sua colega abriu a boca pela primeira vez, perguntando:

- Como ter certeza de que um aluno com deficiência está apto a frequentar a escola?

- Aos olhos da lei, essa questão não existe, todos têm esse direito – respondeu Lígia Ester: - Só em alguns casos é necessária uma autorização dos profissionais de saúde que atendem essa criança. É dever do Estado oferecer ainda uma pessoa para ajudar a cuidar desse aluno e todos os equipamentos específicos necessários. Cabe ao gestor oferecer as condições adequadas conforme a realidade de sua escola.

Paula se arriscou a dizer:

- Creio que o problema maior seja a falta de uma sala de AEE e de um profissional que ajude a auxiliar os alunos que necessitam e nós professores com alunos inclusivos.

- Paula é justamente sobre isso que eu quero falar – disse Lígia Ester: - É com alegria que comunico que já captei recursos financeiros e recursos materiais e em breve vamos oferecer o chamado Atendimento Educacional Especializado (AEE) exclusivamente para quem tem deficiência, algum transtorno global de desenvolvimento ou altas habilidades.

- E também virá um profissional especializado para fazer essa função? – Perguntou uma das professoras.

- Não precisará. Eu já convidei a professora Jéssica e hoje ela nos dará a resposta se aceita ou não.

- Mas por que a Jéssica se temos tantos outros professores com mais tempo de escola aqui? – Indagou Aparecida, fazendo cara de quem não gostou.

A diretora ligou o Datashow e projetou na parede algumas exposições:

- De forma geral, no AEE se apoia no desenvolvimento do aluno com deficiência, transtornos gerais de desenvolvimento e altas habilidades. Disponibiliza o ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e sinalização. Oferece tecnologia assistiva – TA. Adéqua e produz materiais didáticos e pedagógicos, tendo em vista às necessidades especificas dos alunos. Oportuniza ampliação e suplementação curricular para alunos com altas habilidades.

Lígia Ester deixou claro que o AEE deveria se articular com a proposta da escola comum, embora suas atividades se diferenciem das realizadas em salas de aula de ensino comum. Desligando o Datashow, ela virou-se para Aparecida, completando:

- Respondendo a sua pergunta, escolhi a Jéssica pelo seu histórico profissional que além de sua experiência de anos em sala de aula, ela é pós-graduada em Educação Inclusiva, inclusive com trabalho de conclusão de curso publicado e participação em cursos e congressos. A pessoa ideal para assumir a nossa sala de AEE. Mas se alguém aqui tiver essas qualificações e quiser se candidatar à vaga, também será bem-vindo.

Um silêncio total tomou conta da sala. Após alguns instantes, a diretora perguntou à professora volante:

- E então Jéssica, você aceita assumir a sala de AEE?

A moça ficou muda como se ainda não estivesse a resposta dentro de si. A imagem de Kottyna surgiu à sua mente no memento que ela lhe declarou: “Hoje a minha maior recompensa é olhar para traz e ter orgulho de mim mesma que dei a minha singela contribuição na formação de milhares de crianças e jovens, hoje adultos espalhados por este mundão de Deus”.

Jéssica olhou o rosto de um a um naquela mesa que calados esperavam a sua resposta. Agora foi a imagem do professor Maroca que lhe voltou à mente: “Incluir não tem segredo. Basta receber um aluno, seja ele quem for. Acolher com amor, ter a sensibilidade de perceber e pesquisar o que ele realmente precisa de apoio para se desenvolver em todos os sentidos. Um bom professor precisa ser um suporte seguro que lança seus alunos rumo às infinitas possibilidades”.

Uma alegria invadiu o seu coração. E com convicção e um sorriso no rosto, ela respondeu:

- Sim, eu aceito!

- Bem pessoal, encerrando esta reunião, quero acentuar algumas coisas. A Jéssica será a professora do AEE, mas esta tem que ser uma responsabilidade de todos. Eu, por exemplo, sei o meu papel. Para quebrar antigos paradigmas e incluir de verdade, todo diretor tem um papel central. Afinal, é da gestão escolar que partem as decisões sobre a formação dos professores, as mudanças estruturais e as relações com a comunidade. Acredito na Educação Inclusiva. Mas, infelizmente, em muitas outras escolas, essas crianças estão dentro de salas regulares e muitos professores não se consideram preparados para nada. Acomodados, não querem sair do seu conforto para buscar o novo, buscar um conhecimento além. A direção desta escola lhes dará todo o suporte possível. Mas não quero que vocês sejam acomodados na maneira de pensar e agir. Façam a suas partes, informe-se, tenham opiniões próprias e não sejam apenas marias-vai-com-as-outras. Sobretudo, não sejam como as rochas inanimadas no tempo e no espaço!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem