6 - O REPÓRTER

 Os dias foram passando. Chegou o material da sala de AEE que foi instalada ao lado da Sala dos Professores. Com tudo organizado, a diretora convidou todos da escola para uma inauguração intimista. Todos compareceram, funcionários, professores, pessoal da Secretária de Educação. Menos o grupinho da professora Aparecida, alegando estarem envolvidas com outras atividades.

Algumas pessoas de fora também vieram, como professores e diretores representando outras escolas do município, autoridades como o prefeito, vereadores e, dentre todos, havia o convidado especial da cerimônia que foi destacado no discurso da diretora Lígia Ester:

- Hoje damos mais um grande passo em nossa escola com a instalação desta sala de Atendimento Educacional Especializado – AEE. E nada mais do que justo que ela se chame “Sala Professor Maroca”. Ele que nos anos 60, 70 e 80 já promovia várias inclusões nesta escola. E ele não precisou de leis, teorias pedagógicas, ou recursos especiais. O professor Maroca promovia essas inclusões por iniciativas próprias. O que deveria ser atitude natural de qualquer educador de verdade!

Uma longa salva de palmas marcou o corte da fita de inauguração.

* * *

As atividades foram criando rotina. Jéssica como uma professora especializada que prestava atendimento integral às turmas de toda a escola, também era uma professora intérprete bilíngue (língua de sinais e língua portuguesa) que atuava na interpretação/tradução dos conteúdos curriculares e atividades acadêmicas da escola. 

E assim um de seus atendimentos era com Laurinha, uma garota morena do primeiro ano que era surda. Em classe a menina era aluna da professora Antonieta. Mas no contraturno ela vinha à sala de AEE, cuja função principal era de lhe permitir o acesso às informações veiculadas em sala de aula.

Jéssica além de reforçar o conteúdo passado pela professora Antonieta, ensinava Libras à aluna. E foi no final de um desses atendimentos que a professora pegou o seu celular, mostrou à menina as fotos das florezinhas rosas nascendo nas rachaduras da calçada, dizendo-lhe na linguagem gestual:

- Veja Laurinha, essas florezinhas são fortes guerreiras que bravamente nascem entre rochas, buscando o seu espaço na vida. E como recompensa são vitoriosas, embelezando o mundo. Você também é uma florzinha linda e nasceu entrem rochas. E só dependerá de você buscar muitas vitórias em sua trajetória e ser cada vez mais linda, coisa que você já é.

Laurinha lhe deu um abraço bem gostoso. 

Um rapaz caminhava sozinho pelo pátio da escola. E várias lembranças vieram em sua mente:

“Aqui estou andando pelo pátio da minha ex-escola. O vento soprou e com ele vem as lembranças. O pensamento voa longe e com ele vejo o meu passado voltar outra vez...

“Lembro-me de quando aqui cheguei. Eu sabia que iria começar uma nova vida.  Como em um sonho, agora recordo-me de tudo. Vejo aqui meus ex-professores, os amigos, os dias de provas, as bagunças na sala de aula e outras coisas mais... Algumas crianças passam correndo por mim. Como eles por aqui também já corri. Sei que também já fui um garoto travesso. Ali está a quadra onde já participei de muitas festinhas. Aqui o palco e logo ali os mastros. Às sextas-feiras fazíamos culto às bandeiras. E ali do outro lado, fica o pátio aonde tomávamos merenda! Não! Eu nunca briguei nunca respondi para o professor, nunca deixei de fazer a tarefa.  Mas se o tempo voltasse, eu iria fazer tudo isso. Não sei porquê, mais iria... Você minha ex-escola, já foi o palco de muitas alegrias e emoções que marcaram minha vida. Entre as boas coisas que descobri e aprendi aqui, está o amor...”

Aquelas lembranças foram interrompidas pelo som do sininho da Kottyna e as crianças correndo para formar as filas.

Jéssica levou Laurinha até o pátio onde sua mãe a esperava sentada em um banco.

- E aí professora, a minha filha lhe deu muito trabalho?

- Nada, a Laurinha é uma fofa, muito inteligente.

Despedem-se. o rapaz com alguns movimentos diferentes, andar um pouco dificultoso e fala não muito legível, aproximou-se pedindo:

- Professora Jéssica, posso conversar um pouco com você?

- Claro – respondeu ela em um sorriso alegre, observando aquele rapaz de porte médio, cabelos castanhos, rosto sereno, vestido com calça jeans e camiseta. 

- Eu sou Eduardo, repórter do jornal da cidade. Gostaria de fazer uma entrevista com você para a edição do próximo final de semana.

- Lembro-me de você nos bailes de carnaval. E o professor Maroca já me contou a sua história. 

- Sabe professora, há fatos e passagem que nos marcam. Quem já não teve um professor que o tratou com carinho e marcou com sua passagem nas páginas de nossas vidas? Depois de adultos, encontrar esse professor na rua e perguntar-lhe em um sorriso “como vai”, um aperto de mão? Ficarmos alegres quando juntos, professor e aluno, recordam-se um ano letivo que ficou lá trás? Durante mais de três décadas o Maroca ensinou a tantos o ABC. Alfabetizou mais de mil crianças, número que ele tem orgulho em contar. No conforto de sua sala de aula, na dedicação, na paciência, e com a sua inseparável varinha de bambu, passava aos alunos sua sabedoria e conhecimentos. No final de cada ano, o Maroca pedia para que cada aluno fizesse um desenho para ele guardar de recordação. E entre esses desenhos eu sei que está o meu.

- Que lindo, vejo brilho em seu olhar, Eduardo.

- Muitos de seus alunos estão por aí, assim como eu. Hoje são adultos e bem na vida. Mas não esquecemos que no início de nossas vidas escolares ele nos preparou para isso! Hoje o professor Maroca já não caminha mais todas as manhãs rumo à escola. Já não veste mais o seu avental branco para pegar no giz e ensinar as primeiras letras. Não passa mais quatro horas por dia dentro de uma sala de aula com mais de trinta alunos. Hoje está aposentado. Mas continua sendo uma lembrança marcante de um professor que cumpriu a sua missão com êxito de um professor que só ensinou o bem!

- Nossa, essa foi uma verdadeira declaração tipo “ao mestre com carinho”! – Exclamou Jéssica emocionada.

- Bem professora, agora vamos à entrevista?

- Será um prazer. Vamos até a sala de AEE.

Lá, Eduardo coloca um gravador em cima da mesa. Várias perguntas são feitas sobre Educação Inclusiva. Ambos conversaram descontraidamente. Pareciam já se conhecerem a tempos devido a uma identificação por um mesmo ideal. E a entrevista foi concluída. 

Jéssica acompanhou Eduardo até o portão da escola. Subindo a rampa de volta, encontrou-se com Aparecida descendo para ir embora.

- Professora Aparecida, foi bom lhe encontrar, preciso lhe falar. Estou pensando em fazer uma avaliação funcional e traçar um plano de trabalho com o Henrique.

- Olha aqui mocinha, o Henrique é meu aluno e eu sei muito bem como trabalhar com ele – respondeu impondo a voz: - Pensa o quê? Eu tenho anos de magistério, fiz um monte de cursos. Sei muito bem como fazer o meu trabalho.

- Desculpe-me, mas eu só queria cumprir a minha função de professora da sala de AEE, buscando o melhor para o aluno.

- Cumpra o seu papel sem se meter em meu caminho...

Aparecida saiu pisando firme. Kotty que vinha logo atrás e ouviu tudo, disse à Jéssica: 

- Atitude de acessibilidade zero!

Na calçada Aparecida encostou bufando em seu carro. Marta se aproximou:

- O que foi amiga?

- Essa tal de Jéssica que além de ser a queridinha, a elogiada da diretora, agora quer se meter no meu caminho, ensinar o que devo fazer com meus alunos...

- Isto não é nada, Aparecida, a Lígia Ester me informou hoje que ganharei uma nova aluna. Uma menina com Síndrome de Down. Eu nem sei o que fazer com ela. Por onde começar.

- E precisa fazer alguma coisa, Marta??? Já é muito deixarmos essas crianças estarem em nossas salas de aulas. E depois, elas não vão aprender nada mesmo.

- Mas eu sou uma professora, Aparecida – observou Marta quase não concordando com o que acabou de ouvir.

- Falou bem. Somos professoras, não irmãs de caridade assistencialistas.

- Penso em pedir ajuda à professora Jéssica.

- Só o que falta agora, você se bandiar para o lado dela!!! – Exclamou Aparecida com mais raiva ainda.

* * *

No dia seguinte Jéssica estava em sua sala quando chegou a professora Antonieta.

- Neste momento meus alunos estão com a professora de educação física. Aproveitei para vir conversar com você como posso trabalhar e ensinar melhor a Laurinha.

- Muito legal essa sua iniciativa, Antonieta. Isto se chama acessibilidade atitudinal, está aberta em querer aprender cada vez mais em benefício de seus alunos.

- Eu agradeço Jéssica.

- Sabe, quando temos alunos com deficiências auditivas, as situações criadas pelo professor em sala de aula devem ser sempre agradáveis e significativas, não se perdendo de vista a objetividade e a clareza aos promoverem-se atividades de linguagem escrita, de leitura ou de qualquer outra forma utilizada.

- Sim, mas com relação aos materiais de apoio, com que podemos contar?

- Em geral com materiais e equipamentos específicos, prótese auditiva, treinadores de fala, tablado, softwares educativos específicos etc. utilizarmos textos escritos complementados com elementos que favoreçam a sua compreensão. Linguagem gestual, língua de sinais e outros. Um sistema alternativo de comunicação adaptado às possibilidades do aluno. Leitura orofacial, linguagem gestual e de sinais.

- Isso também abre a possibilidade de trabalharmos o tema diversidade com todos os alunos.

- Com certeza, Antonieta. Uma coisa importante será o posicionamento do aluno na sala de tal modo que possa ver os movimentos orofaciais da professora e dos colegas. Material visual e outros de apoio, para favorecer a apreensão das informações expostas verbalmente.

- Recursos são muitos. Basta estarmos abertos de coração ao novo e para as necessidades de se reciclar perante novos desafios educacionais! – Observou a professora Antonieta em um sorriso.

* * *

No sábado à tarde as professoras Aparecida, Marta e Jucinéia se encontraram na padaria para tomar café. Sentadas em volta da mesa, elas liam a edição do jornal local que circulou naquela manhã.

- Veja que absurdo, essa Jéssica chegou esses dias na cidade e já ganhou uma entrevista de uma página inteira com foto e tudo no jornal! –Exclamou Aparecida soltando o periódico em cima da mesa com certa raiva.

Marta o pegou, observou por alguns instantes, destacando:

- Veja só, neste trecho ela diz que geralmente as pessoas têm no início medo do diferente, um aluno na inclusão, ainda mais na educação infantil. Pois a criança vem com um rótulo a ser desvendado.

- Ela sabe tudo, é dona da verdade – disse Aparecida, levando a xícara à boca.

- “Professores não acreditam na inclusão, dificultando as intervenções”. Será que nesse trecho ela falou de nós? – Questionou Marta.

- É uma ridícula – sussurrou Jucinéia.

- E não acredito mesmo – falou Aparecida em tom afirmativo: - A gente já tem tantos problemas na escola e ainda vem essas crianças deficientes dar ainda mais trabalho. Elas deveriam ficar lá nas instituições só para elas. Isto sim...

- É assim que você pensa, professora? – Indagou um senhor se aproximando de surpresa com um pacote de pães na mão.

- Professor Moroca, que bom revê-lo. O melhor mestre que eu já tive – disse Aparecida em um sorriso sem graça.

- Eu agradeço. Mas como lhe perguntei, é assim que você pensa?

Aparecida engasga um pouco, tentando se justificar:

- Veja bem professor, não é que eu seja contra a inclusão. Mas nós não fomos preparados na faculdade para atender esse seguimento de aluno.

- E outra professor, o governo não faz nada para nos ajudar com relação à Educação Inclusiva – Jucinéia tentou ajudar a sua amiga.

O velho professor, como sempre eloquente e seguro de suas palavras, retrucou educadamente:

- Bem, começando a responder pela colocação da professora Jucinéia, algo que sempre me incomodou é o fato de alguns professores quererem transferir suas responsabilidades, dizendo que muito pouco tem sido feito a respeito da inclusão por parte do Governo ou por parte dos dirigentes educacionais. Ainda há muito da cultura paternalista de esperar que tudo venha de cima, já pronto tanto no sentido de leis como de investimentos e recursos, e com a Educação Inclusiva não tem sido diferente. Outro ponto que noto nesse comportamento e discursos de várias pessoas e professores é que falar em Inclusão Escolar ainda se esbarra em questões culturais e até mesmo um comodismo para não sair da zona de conforto. Com todo respeito a vocês, é comum os professores dizerem que não estão preparados para receber alunos com deficiência. 

Elas se olham entre si caladas como se ainda fossem adolescentes em uma sala de aula tomando uma bronca do professor por terem feito algo de errado durante o recreio. E o mestre continuou:

- Vocês sabem que nos anos 60, 70 e 80 eu promovi várias inclusões. E não precisei ser preparado ou que Governo me dissesse o que fazer. Fazia isso porque escolhi a profissão de professor e amava o que escolhi para me realizar profissionalmente, independente das condições a minha volta. A questão não é falta de apoio. Infelizmente a maioria dos professores não enxergam o potencial dos alunos e não acreditam no trabalho que deve ser desenvolvido.

- E qual o melhor caminho, professor? - Questionou Marta com a voz tímida e baixa.

- O professor precisa criar e manter o hábito de pesquisar! Quando um professor receber alunos inclusivos, primeiro o acolha em sua sala e comece a conviver com eles, criando laços, descobrindo um ao outro, professor e aluno, o que já será uma pesquisa de campo. Paralelamente, vá ler sobre as deficiências e reais necessidades de cada aluno inclusivo, procurar orientações de práticas pedagógicas para se trabalhar com eles e toda a turma. Possibilidades são muitas. E as informações nunca estiveram tão disponíveis como antes. E de graça. Além das publicações que devem ter na biblioteca de sua escola, basta o professor entrar no Google e achará muito material seguro, no Youtube há milhares de vídeos sobre Educação Inclusiva, práticas pedagógicas inclusivas, casos específicos, por exemplo. 

- Claro, professor... – Concordou Marta.

E ele continuou:

- Sobre não mais transferir a missão que é do professor para o Governo ou aos dirigentes da escola, defendo que o processo de inclusão escolar só terá sucesso se for realizado de baixo para cima. Das bases e com o envolvimento de todos, sendo que um dos caminhos mais certos para a Educação Inclusiva é a afetividade. Importante o professor se despir de seus preconceitos e abrir os braços e receber alunos a serem incluídos. Conhecimento elimina ansiedade, trazendo segurança. E professor seguro ama o que faz alimentado por gestos de afetividade, atingindo resultados imagináveis!

Um silêncio tomou a roda de conversa por alguns instantes. O mestre arrematou o seu pensamento:

- Meninas, na educação não sejam rochas estáticas no tempo. Tenham acessibilidade atitudinais.

Maroca despediu-se e se foi. Aparecida resmungou às amigas:

- Era só o que me faltava, eu perder o meu tempo fazendo pesquisa para ajudar a esses alunos.

Jucinéia que pesquisava algo em seu celular, leu em voz alta: “ACESSIBILIDADE ATITUDINAL - Refere-se à acessibilidade sem preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminações, em relação às pessoas em geral".

* * *

Naquela noite Jéssica estava na lanchonete com a amiga Josineide, quando chegou Eduardo, indo à mesa delas cumprimentá-las. 

- Eduardo, sente-se com a gente – convidou Josineide.

O rapaz pediu um refrigerante e bebia com canudo por não ter coordenação de levar o copo à boca.

- Eduardo, eu quero lhe agradecer pela matéria no jornal de hoje.

- Foi um prazer, Jéssica. Vocês irão ao baile de hoje?

- Não posso, amanhã estou de plantão – respondeu Josineide.

- E eu estou sem minha amiga para me acompanhar hoje.

- Por isto não, Jéssica, vamos comigo. Lá eu lhe apresento a minha turma. Depois eu lhe acompanho até em casa – ofereceu-se Eduardo.

- Aproveita amiga, você precisa se divertir.

Após o lanche, Jéssica e Eduardo começaram a caminhar rumo ao clube de baile. Ela acompanhou o ritmo do andar do rapaz. Conversavam descontraídos como se fossem antigos amigos. Durante a noite se divertiram, bate-papos com várias pessoas e até dançaram algumas músicas. A companhia dele fazia bem à ela, trazia-lhe segurança e paz. A professora até lhe contou das pequenas flores que nasciam nas rachaduras da calçada, mostrou-lhes as fotos delas armazenadas em seu celular.

Já na madrugada, como prometido, Eduardo acompanhou Jéssica até o portão de sua casa em um bairro ali perto do centro da cidade.

- Edu, você não tem medo de caminhar sozinho essa hora pelas ruas?

- Que nada, Jéssica. Desde pequeno eu caminho sozinho por essa “grande cidade” de meia dúzia de habitantes... 

- Bem, eu lhe agradeço a agradável noite, senhor repórter!

- Boa noite, senhorita professora... – O rapaz deu um sorriso.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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