7 - ALUNOS INCLUSIVOS APRENDEM MESMO?

 Na segunda-feira Josineide deixou sua amiga na esquina de sempre e foi para o posto de saúde trabalhar. Jéssica, ao caminhar pela calçada, notou que as belas florezinhas haviam sido colhidas. Ela questionou-se quem poderia ter feito aquilo?

Ao chegar à sala de AEE, sua mesa estava cheia daquelas florezinhas com um bilhete no computador: “Hoje foram as pequenas flores rosas que vieram visitar e alegrar o seu ambiente de trabalho. Tenha uma feliz tarde! Edu”

Ela abriu um lindo sorriso, pegou o celular e enviou uma mensagem de agradecimento ao rapaz.

Aparecida estava em sua sala quando Lígia Ester apareceu à porta. Ela foi logo atender a diretora que indagou-lhe de forma direta:

- Posso saber por que você não permitiu que o Henrique fosse atendido pela sala de AEE?

- A Jéssica já foi correndo contar à senhora?

- Não, não foi a Jéssica que me contou e isso nem vem ao caso – respondeu-lhe mantendo a seriedade.

- Bem dona Lígia Ester, como eu disse à professora Jéssica, eu acho que sou plenamente capaz de dar conta do caso do Henrique.

- Veja bem professora Aparecida, aqui ninguém está para achar nada. Estamos aqui para proporcionar ensino com toda a qualidade possível aos nossos alunos. E se termos uma sala de AEE, é para ela ser utilizada da melhor forma possível. 

Aparecida ficou sem graça. Mas não querendo ficar por baixo, lançou uma pergunta tentando deixar Lígia Ester sem resposta:

- Claro, a senhora tem toda razão. Mas desculpe-me a minha sinceridade, eu ainda tenho minhas dúvidas se quem tem deficiência aprende mesmo?

A diretora lhe respondeu com firmeza:

- Sem dúvida. Sempre há avanços, seja qual for a deficiência. Surdos e cegos, por exemplo, podem desenvolver a linguagem e o pensamento conceitual. Crianças com deficiência intelectual podem ter mais dificuldade para se alfabetizar, mas adquirem a postura de estudante, conhecendo e incorporando regras sociais e desenvolvendo habilidades como a oralidade e o reconhecimento de sinais gráficos. É importante entender que a escola não deve, necessariamente, determinar o que e quando esse aluno vai aprender. Nesses casos, o gestor precisa rever a relação entre currículo, tempo e espaço.

Aparecida ficou parada à porta sem saber como continuar aquele diálogo. A diretora começou a caminhar pelo corredor, quando virou para traz, completando:

- E sabe como sei tudo isso? Pesquisando, estudando...

Naquela mesma tarde, Jéssica foi procurada na sala de AEE pela professora Alcione. 

- Então Jéssica, estou com um aluno chamado Marcelo. Ele tem um comportamento apresentando três os sintomas principais: agitação, dificuldade de atenção e impulsividade, tanto em sala de aula, quanto no pátio. Os pais dele comentam que ele tem TDAH.

- Bem Alcione, como você deve saber, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, TDAH, é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. Ele é chamado às vezes de DDA, Distúrbio do Déficit de Atenção. 

- Eu já pesquisei um pouco sobre o assunto. Mas a família ainda não nos trouxe um diagnóstico respaldado pelo médico. 

- Acho que um dos primeiros passos é tentarmos promover reuniões com os pais e o médico. Se isso não for possível, conversas com a família e relatórios periódicos enviados para o profissional da saúde são indicados para facilitar a comunicação. 

- Pelo o que li Jéssica, é importante lembrar ainda que não é por causa do transtorno que professores e pais devem pegar leve com a criança e deixar de estabelecer limites. A maioria das dificuldades gira em torno da competência cognitiva, da falta de organização e da apreensão de informações, e não da relação com a obediência. 

- Exatamente. Durante os momentos de maior tensão, quando o estudante está hiperativo, manter o tom de voz num nível normal e tentar estabelecer um diálogo é a melhor alternativa. Se o adulto grita com a criança, ambos acabam se exaltando rápido e, em vez de compreender as regras, ela pode pensar que está sendo rejeitada ou mal compreendida.

- Quanto a minha atuação enquanto professora, o que você me aconselha?

- Você pode adaptar algumas tarefas que ajudam a amenizar os efeitos mais prejudiciais do transtorno. Evitar salas com muitos estímulos é a primeira providência. Deixar alunos com TDAH próximos a janelas pode prejudicá-los, uma vez que o movimento da rua ou do pátio é um fator de distração. Outra dica é o trabalho em pequenos grupos, que favorece a concentração. Já a energia típica dessa condição pode ser canalizada para funções práticas na sala, como distribuir e organizar o material das atividades. 

- Legal, é muito bom ter orientação de uma colega que entende.

- Também é importante reconhecer os momentos de exaustão considerando a duração das tarefas. Propor intervalos em leituras longas ou sugerir uma pausa para tomar água após uma sequência de exercícios, por exemplo, é um caminho para o aluno retomar o trabalho quando estiver mais focado. De resto, vale sempre avaliar se as atividades propostas são desafiadoras e se a rotina não está repetitiva. Esta, aliás, é uma reflexão importante para motivar não apenas os estudantes com TDAH, mas toda a turma.

* * *

Naquele fim de tarde Jéssica estava indo embora à pé, quando passou em frente de uma casa perto da rua central e Eduardo estava encostado no portão aberto. A moça que, distraída olhava para frente, foi surpreendida por sua voz:

- Boa noite, professora...

- Eduardo, que legal lhe encontrar. Amei as flores que você deixou em cima da mesa – disse Jéssica num sorriso.

- Eu moro aqui. Você quer conhecer meus pais?

Aquele convite fez bem ao coração dela. Ao entrar, foi bem recebida por um casal muito simpático. O pai de Eduardo era um senhor moreno, grisalho, sereno, trabalhador rural aposentado. Sua mãe uma senhora sorridente de vestido estampado, conversadeira que preparava a janta. 

A conversa corria tão naturalmente que quando Jéssica deu por si, já estava à mesa jantando com eles. Foi quando ela percebeu mais detalhes sobre Eduardo. Que sua mãe colocava os alimentos cortados em seu prato. Porém, com sua dificuldade motora, ele se alimentava sozinho mesmo tendo um esforço maior para manter a comida equilibrada na colher nos movimentos entre o prato e a boca. Cada vez mais ela admirava os esforços e a independência que Eduardo buscava para sua vida!

* * *

Com a permissão da diretora Lígia Ester, Jéssica convocou para quinta-feira à noite uma reunião com Paula, professora de João, Aparecida, professora de Henrique, Antonieta, professora de Laurinha, Jucinéia, professora de Marcelo, Marta, professora de Joelma e outros professores com alunos inclusivos. Sua intenção era trocar ideias e orientá-los melhor na conduta de suas atividades. Kotty também quis participar.

- Perca de tempo, preferia estar em casa vendo novelas – comentou Aparecida baixinho com Jucinéia.

Jéssica começou dizendo:

- Bem pessoal, quero agradecer a presença de todos vocês. A dona Lígia Ester me autorizou e quinzenalmente às quintas-feiras teremos esses encontros. Isto porque em qualquer escola os professores que ainda têm dúvidas sobre as práticas pedagógicas que devem usar ganharam uma aliada: a professora da sala de recursos, responsável pelo Atendimento Educacional Especializado (AAE). Em encontros quinzenais, ela e os colegas conversam sobre os recursos que podem ser providenciados. O resultado do esforço coletivo será compensadores. 

- Será realmente necessário, professora? – Questionou Jucinéia: - Nós já temos tantos compromissos na escola e fora dela, agora mais esse...

Kotty, não se contendo, expôs suas observações:

- Desculpe-me meter na conversa, mas há mais de trinta anos estou na Educação e é sempre a mesma coisa. Se você tem uma ideia a sua colega já vai logo dizer isso não vai dar certo. Perdemos a oportunidade, e a gente fica sem um trabalho de equipe e nem de apoio.

Um silêncio tomou conta da sala por alguns instantes. Paula aproveitou a deixa:

- Apesar de tentarmos melhorar nossa prática e acreditarmos que todos os alunos aprendem e são capazes de construir conhecimentos dona Kotty, as escolas ainda têm muitos profissionais que não acreditam, e assim acabam dificultando o processo de inclusão. Ainda têm aqueles que tratam os alunos como coitados. Ou acreditam apenas na sociabilização.

Aparecida cutucou Jucinéia por debaixo da mesa, como se fosse uma intimação à ela sair em defesa do grupo. E, quase gaguejando, ela emitiu seu ponto de vista:

- Acho que não fui bem compreendida pelas colegas. Só quis dizer que, pela carga de atividades que temos, essas reuniões podem não render como realmente necessitamos.

- Isso chama-se capacitismo, a discriminação e o preconceito social contra pessoas com alguma deficiência, por serem entendidas como exceções. A deficiência é vista como algo a ser superado ou corrigido, se possível por intervenção médica em entidades isoladas! - Exclamou a professora Antonieta. 

- Pessoal, vamos ao que realmente interessa. Logo de início, eu quero levantar uma questão – falou Paula: - Li nos jornais que o governo federal pretende editar um decreto restituindo a volta do ensino especializado no país. Fiquei perplexa com isso. Alguém também leu?

A professora Antonieta respondeu:

-  Eu li, inclusive uma minuta do decreto no site do MEC. Um ponto de conflito apontado no decreto é o repasse de recursos públicos para escolas especiais conveniadas, enquanto o dinheiro deveria ser investido na inclusão e na remoção de barreiras no ensino. 

- Sim, com certeza – concordou Jéssica: - As instituições especializadas, muitas vezes, utilizam um "currículo funcional natural" e não um currículo pedagógico aplicado em sala de aula comum. É como se essas instituições olhassem para os estudantes com deficiência e encontrassem um impedimento. Já em escolas inclusivas, a ideia é que se encontre uma potência, uma capacidade, uma possibilidade para o aluno se desenvolver. E para isso acontecer, é necessário investimento.

Paula voltou com a palavra:

- Chega a ser revoltante! Todo esse dinheiro deveria ser usado em tecnologia assistivas, que auxiliam e reduzem o impacto do impedimento do estudante quando ele se relaciona com o mundo externo. 

- Se me permitem falar, deveria ser usado também na formação e preparação de professores, em profissionais de apoio, intérpretes de libras e cuidadores, na remoção de barreiras tanto físicas como de acessibilidade, como construção de rampas e elevadores. Investido para aprimorar a inclusão, não segregar – comentou Kotty.

Jéssica voltou com a palavra:

- Meninas, eu sei que esse decreto ainda é só um projeto. Só que é preocupante a nova política destinar recursos públicos para manutenção de escolas especiais que promovem segregação, já que evidências mostram que esse não é o melhor ambiente para as pessoas com deficiência se desenvolverem.

- E outra, é por meio da diversidade, da convivência entre todos, que vamos construir uma sociedade mais humana, plural, que valoriza e respeita as diferenças- acentuou Paula: - Quando o professor atende uma sala de aula heterogênea, ele precisa buscar meios para ensinar os mesmos conteúdos de modos diferentes e garantir que todos aprendam. Isso é muito enriquecedor para a sua prática pedagógica, tal como é enriquecedor para todos os alunos, que têm acesso a diferentes abordagens sobre o mesmo conteúdo.

PRÓXIMO CAPÍTULO 


Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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