6 - O “ESPECIALISTA”

 Afinal, no presente, quem é Leandro? Um “especialista” em estar só, o que filósofos existenciais dizem ser uma condição original humana, na qual cada um de nós é só no mundo, sendo o nascimento uma espécie de lançamento da pessoa à sua própria sorte, responsável pelas suas escolhas na vida, ou vivenciá-la como abandono. Viver é arriscar para que objetivos sejam atingidos e arcar com a responsabilidade dessa escolha.

Ele vivenciava a angústia provocada pela solidão, como muitas pessoas experimentam quando percebem que estão sós no mundo. Porém, se na profissão Leandro era proativo, hábil, na vida pessoal era totalmente passível, como se fosse parte de sua essência humana aceitar o seu destino solitário. Como se não fizesse parte dele encontrar uma pessoa para preencher seu vazio, não se envolvendo em atividades sociais e de lazer. Nunca vencia suas barreiras, visando expressar os próprios sentimentos, buscar a realização de seus projetos pessoais, compartilhando e trocando com os demais, pois, assim, a sua vida poderia se encher de significado. Passivamente esperava que alguém surgisse do nada num passe de mágica, dando um significado para sua vida, fazendo dele o personagem principal de sua história. Nunca pensou que cada um de nós é o responsável por dar um sentido à sua existência.

Não se questionava. “O que há de errado comigo?” “Por que estão todos com suas namoradas, menos eu?” “Por que não consigo uma relação estável?” Parecia realmente haver um desejo inconsciente de permanecer justamente na situação em que se encontrava. Sua solidão cada vez mais provocava insegurança, dúvidas, sentimentos de menos valia.

Talvez para suportar os longos períodos de solidão, criava suas fantasias como um mecanismo de defesa, que proporciona uma satisfação ilusória para os desejos que não conseguiu realizar, principalmente com amores platônicos de seu passado. Algo inconsciente, uma satisfação-substituta ficando em lugar da realidade, aliviando a tensão, permitindo uma liberação ilusória da realidade não-satisfeita, ou uma satisfação imaginária dos desejos, cuja satisfação real tenha sido reprimida. Suas fantasias eram uma síntese integrada de ideias, sentimentos, interpretações e memória, predominando elementos instintivos e afetivos de desejos não realizados. Viajando em suas fantasias e omitindo a sua realidade, resolvia momentaneamente seus conflitos, prevenindo a progressão da angústia. 

Por falar em fantasia, como andariam as coisas em Guaragudos?

* * *

No sábado, o professor de educação física trouxe uma boa nova para o pessoal. As crianças haviam sido aceitas no Campeonato Municipal de Futebol.

Três meses se passaram. As roupas eram cada vez mais criadas e produzidas pelas mulheres do Centro Comunitário. Com o aumento das vendas, passaram a gerenciar uma cooperativa, cada vez com mais capital para comprar novas máquinas e matéria-prima. Além da confecção, passaram a bordar, fazer tricô, a pintar pano de prato. Aumentava o número de mulheres trabalhando na linha de produção. Encontraram uma importante parceira na esposa de Leandro, que passou a ser a distribuidora exclusiva da marca. Milena, cumprindo seus planos, abriu mais duas filiais de sua loja em cidades vizinhas. Eram um sucesso aqueles modelos. A preços populares, as roupas também eram adquiridas pelas classes mais humildes. Logo todas as mulheres de Guaragudos e região estavam em sintonia com a mesma moda.

O Centro foi todo reformado, dando já um outro aspecto para o local. O pessoal decidiu reinaugurá-lo com uma quermesse. Todos começaram a planejar a festa, arrecadar fundos, prendas, cada um se responsabilizou por levar um prato doce ou salgado. 

Só que antes da data marcada tiveram uma surpresa. Certa manhã, várias máquinas e funcionários braçais da Prefeitura cercaram o Centro. Moradores que começavam a sair para mais um dia de labuta aproximaram-se, indagando:

– Podemos saber o que está acontecendo?

– O prefeito mandou demoli esse Centro – respondeu um funcionário. – Em seu lugar vai ser construído o novo aterro sanitário.

– Ninguém vai destruir o que é do nosso povo!!! – decretou um dos moradores. Logo outros foram sendo chamados e ajuntando-se a eles. Formou-se um enorme cordão humano em volta do Centro. Os funcionários, temerosos, foram todos embora, abandonando máquinas, caminhões e ferramentas no local. Um senhor, antigo morador ali, propôs:

– Não fomos nós que mexemos com o prefeito. Foi ele que veio nos diminuir, tirar o que nós mesmos estamos conquistando para o nosso bairro. Agora, também, vamos recolher esse maquinário ao pátio do Centro e ele só será devolvido quando o prefeito mandar arrumar todas as nossas ruas. Mesmo porque, isso não é roubo. Essas máquinas são nossas, do povo, compradas com o dinheiro dos impostos que pagamos.

Todos aprovaram com uma forte salva de palmas. Criou-se um grande impasse político. O prefeito consultou o Departamento Jurídico sobre a possibilidade de entrar na Justiça para rever a posse do maquinário. Foi informado de que a decisão do Juiz poderia demorar um tempo. Até achou vantagem, pois com o equipamento retido teria uma desculpa para não fazer nada, alegando estar de mãos amarradas. Só que o caso passou a ser comentado por toda a cidade. Chegou à imprensa e à rádio local e regional. Aquilo certamente iria prejudicar a imagem política do prefeito. O melhor foi ceder. E o chamado “Morro dos Excluídos” recebeu uma atenção como há muito tempo não se via.

Chegou o dia da quermesse. O Centro estava lotado. Músicos amadores da própria comunidade animavam o ambiente. Muita comida, quitutes, bebidas e churrasco. Leandro e Milena estavam em uma mesa olhando tudo e todos, quando chegou o fazendeiro com sua mulher.

– Você por aqui, Paulinho?

– Claro, meu amigo. Quem você acha que doou o boi para o churrasco? Também quero dançar esse forró com os meus conterrâneos.

– Por favor, sentem-se com a gente – convidou Milena.

O papo corria descontraído. As duas levantaram-se para buscar comida. 

– Quem diria que um dia eu iria ver esse povo assim reunido. Todos unidos em busca de melhores momentos e qualidade de vida.

  – E o que é melhor, Paulinho. Eles já tomaram as rédeas e estão caminhando pelas próprias pernas. Isso chama-se Cidadania Ativa, o exercício pleno da participação, tomadas de decisões que influenciam suas vidas e o ambiente em que estão inseridos. Uma ética e autonomia como horizonte, buscando e enfrentando o necessário, pertinente e constante diálogo que pode mantê-los na trilha dessa emancipação.

– Concordo. O homem é um ser cultural influenciado e, ao mesmo tempo, influenciador na história que está à sua volta. E a história não é estática. Ela é móvel, dinâmica, transforma-se a cada instante, segundo nossas vontades ou até mesmo em nossas passividades. E esse povo está dando prova de que é possível buscar, exigir dos poderes públicos dias mais dignos.

– Depois minha mulher me acusa de ser o único socialista de Guaragudos! – brincou Leandro.

– Meu caro. Você já plantou várias atividades para a molecada. Oficinas para mulheres que resultaram em uma bem-sucedida cooperativa. Agora precisa pensar em algo para os homens.

– Como assim, Paulinho?

– Sabemos que aqui há vários desempregados. Que tal eles serem incentivados a criar uma ong de reciclagem, aproveitando os detritos e reutilizando-os no ciclo de produção de que saíram? O resultado pode ser uma série de atividades, onde o lixo será desviado, coletado, separado e processado, para ser usado como matéria-prima na manufatura de novos produtos. Através de uma conscientização de toda a cidade, eles conseguirão a colaboração do consumidor, facilitando ainda mais o processo de reciclagem, diminuindo o acúmulo de dejetos, poupando a natureza da extração inesgotável de recursos. Podem coletar jornais, revistas, formulários contínuos, folhas de escritório, caixas, papelão, garrafas, copos, recipientes, latas de aço e de alumínio, clipes, grampos de papel e de cabelo, papel alumínio, garrafas de refrigerantes e água, copos, canos, embalagens de material de limpeza e de alimentos, sacos. Toda Guaragudos tem a ganhar com isso. Economia de energia e matérias-primas. Menos poluição do ar, da água e do solo. Melhora a limpeza da cidade, pois o morador que adquire o hábito de separar o lixo dificilmente o joga nas vias públicas. Diminui o desperdício. E para essa comunidade, será outra fonte de renda e emprego pela comercialização dos recicláveis. Estaremos dando oportunidade aos cidadãos de preservar a natureza de uma forma concreta, tendo mais responsabilidade com o lixo que geram. 

– Olha, gostei da ideia, professor...

Juntos deram risada. 

Em uma noite durante a semana, Leandro e Paulinho reuniram os homens no Centro para expor a ideia da ong. Como era de esperar, os dois ficaram de lado. Empolgadas, as pessoas começaram a trocar ideias e a fazer planos, estabelecer metas e o funcionamento. Decidiram usar a tipografia para imprimir panfletos dirigidos à população, solicitando a colaboração de separarem o lixo reciclável. Escolheram os dias de coletas em cada região da cidade. Onde e como o material seria estocado. Paulinho ofereceu um empréstimo para comprarem as máquinas de processar o material. Com o tempo, a ong já era uma realidade. Foi legalizada perante a lei. Conseguiram compradores para o material que seria novamente matéria-prima para outras indústrias. Pagaram o empréstimo ao fazendeiro. A exemplo da confecção, a ong cresceu paulatinamente, gerando cada vez mais empregos para membros locais.

O Centro Comunitário tornou-se um ponto de encontro todas as noites. Todos discutiam suas ideias, planos, projetos para melhoria da comunidade. Com o apoio da Secretaria Estadual de Educação, professores estagiários foram cedidos para alfabetização e escolarização de adultos. E o Jornal da Turma continuou sendo, ao mesmo tempo, o porta-voz e o registro em suas páginas da história daquela transformação social.

Certo dia, no meio da tarde, Milena foi até sua casa apanhar um talão de cheques. Assustou-se ao ver Leandro dormindo no sofá. Abaixou-se e com jeito o acordou:

– Amor, você essa hora em casa? Aconteceu alguma coisa, você passou mal?

– Não, Milena – disse, sentando-se. – Fui demitido da usina. Alegaram que, pelo fato de o pessoal lá do “Morro” estar se tornando independente, estou tirando cortadores de cana da empresa.

– O problema deve ser outro. O dono da usina come na mão do prefeito. Mas quer saber de uma verdade? Acho bom mesmo que você foi mandado embora.

– Você ficou maluca, mulher?!

– Não fiquei. Sou uma empresária. Cada vez mais estou ampliando os meus negócios, abrindo outras filiais. E preciso de funcionários de confiança ao meu lado. Aproveite para descansar esse resto de tarde, que comigo não tem moleza. Sou uma chefe chata. Não quero amanhã ninguém chegando atrasado no primeiro dia de trabalho...!

Leandro, sabendo que foi demitido pelo seu envolvimento em projetos comunitários, achava que seria criticado por ela. Emocionado por sua esposa expressar o desejo de trabalharem juntos, nada disse. Levantou-se e se abraçaram fortemente em um demorado beijo.

PRÓXIMO CAPÍTULO 

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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