5 - MUITO PRAZER, NOVAMENTE...

O devaneio novamente foi interrompido pela secretária:

– Doutor Leandro, aquela jornalista que o senhor autorizou agendar já chegou.

– Sim, pode pedir para entrar.

Como era de costume, ele ficou em pé perto da porta para recebê-la. Ao entrar, uma grande surpresa.

– Marion!?

– Desculpe, mas o senhor me conhece?

– Fui seu colega na faculdade de jornalismo, o Leandro. Lembra?

– Verdade, estou me lembrando. – Sentaram-se no sofá para uma conversa. – Pelo que vejo, você está muito bem...

– Realmente. Depois de formado, fui embora para o interior. Trabalhei por um bom tempo no jornalismo rural. Aí resolvi estudar mais, cursei Administração de Empresa. No fim da faculdade, recebi um convite para trabalhar nesta empresa e aqui estou fazendo carreira de executivo. Mas e você, qual foi o caminho que tomou aquela que seria uma grande jornalista?

– Infelizmente, a realidade foi bem diferente. Logo que me formei, casei com um cara rico. Ele era possessivo e não me deixou iniciar minha carreira. Passei uma década como uma mera dona de casa. Ele me abandonou repentinamente, sem direito a nada. Já era difícil iniciar uma carreira jornalística, devido ao grande número de jovens profissionais que se formam todos os anos. Neste mundo de interesses e aparências, nem amigos me restaram. O máximo que consegui foram trabalhos free-lancers e esse serviço em jornal de bairro que mal cobre minhas contas básicas.

– Eu sinto muito.

Conversaram por mais um tempo. Realizaram a entrevista programada. Na despedida, Marion perguntou-lhe:

– Será que nos veremos novamente?

– Quem sabe? Agora você tem o meu cartão...

À noite, na solidão de seu apartamento, o executivo pensou muito no rumo que a vida de Marion tomou. Sentiu uma enorme vontade de ajudá-la. Mas como? Se pelo menos o Jornal da Turma fosse real, poderia conseguir mais um serviço para ela. Repentinamente, começou de novo a mergulhar no mundo da fantasia. Afinal, como teria sido a repercussão do primeiro número do jornal?

* * *

Ao chegar para mais uma tarde de atividades no Centro Comunitário, o professor de educação física tinha uma novidade:

– Leandro, a molecada quer disputar o Campeonato Municipal Juvenil de Futebol.

– Eu acho ótimo que eles queiram começar a tomar parte nas atividades da cidade.

– O problema não é esse. A inscrição deles foi rejeitada.

– Mas por quê?

– O pessoal do “Morro dos Excluídos” nunca foi bem aceito na sociedade guaragudense. Nem comentei isso com eles.

– Melhor assim. Vou ver o que posso fazer.

– Sabe, Leandro, nós estávamos comentando – disse o professor de artes. – Que tal transferirmos esse pessoal para fazer cursos na Casa da Cultura e para treinar na Secretaria de Esportes? Lá, eles terão melhores possibilidades de aprendizagem e será uma forma de amenizar o estigma sobre eles.

– Acho muito bom o interesse de vocês, mas esse não é o objetivo principal do nosso projeto, que é melhorar as condições de onde eles vivem. Talvez possamos começar com uma grande reforma neste Centro Comunitário. Não sei como. Vou pensar em algo. 

Leandro começou a andar pelo Centro, fazendo uma avaliação prévia do que precisaria para a reforma. Entrou em um depósito que ainda não conhecia. Entre tantas coisas, havia cinco máquinas industriais de costura. Nesse momento, a encarregada pelo local chegou.

– Faz tempo que essas máquinas estão aqui?

– Uns quatro anos, Leandro. Chegaram novinhas. O prefeito falou na época que iniciaria um curso de corte e costura para a comunidade. Só que isso nunca aconteceu.

– Certamente, elas foram superfaturadas. Será que se a gente as limpar, engraxar, der outras manutenções, vamos encontrar mulheres para costurar, desenvolver um curso aqui no Centro? Afinal, o objetivo dessas máquinas é esse mesmo.

– Acredito que sim. Aqui na comunidade temos muito boas costureiras. Até mesmo desempregadas.

E assim foi feito. Logo uma nova atividade estava em pleno vapor no Centro.

Ao final da tarde, Leandro chegou em casa. Milena, apreensiva, esperava-o na sala.

– Hoje à tarde, o prefeito esteve na minha loja. Ele está muito bravo por eu ter patrocinado o primeiro número do jornal. Até ameaçou cassar a licença da minha loja. Fiquei sem saber o que dizer.

– Ele não pode fazer isso. Você é legalizada, registrada nos órgãos competentes e paga seus tributos corretamente. Mas para evitar aborrecimento para o meu amor, você fica fora dos meus projetos por ora. Agora, se você não se importar, vou dar uma rápida saída.

O rapaz foi à casa do prefeito, um senhor com mais de setenta anos. Pediu para ser recebido. Sentaram-se na varanda. Leandro contou a ele tudo o que estava desenvolvendo na comunidade do “Morro”. Pediu-lhe ajuda e melhora para o bairro. Só que o chefe do Poder Executivo foi direto e taxativo:

– Acha que vou perder tempo com aquele povo, rapaz? Tenho que cuidar do centro da cidade e dos bairros mais afortunados, onde tenho meu apoio político.

– Mas lá também tem gente que vota no senhor.

– Ter voto de pobre é a coisa mais fácil do mundo. É só na época da eleição ir até lá, distribuir camisetas, cestas básicas e fazer promessas.

– Isso é compra de voto. É ilegal, é crime perante a Justiça Eleitoral.

– Rapaz, desde meu avô, passando pelo meu pai, sempre governamos Guaragudos com mão de ferro. Nós decidimos o que pode e o que não pode nesta cidade. Não é você que vai me dizer o que é certo e o que é errado. E quer um conselho? Acho melhor você parar com esse jornaleco, antes que acabe com o meu governo.

– Lógico que não ensinarei nada ao senhor. E não serei eu que acabarei com o seu governo. Só quem tem esse poder é o povo nas urnas. Posso afirmar que a maioria dos pequenos municípios brasileiros não progride por ter à frente velhos caciques políticos com pensamentos retrógrados, como o senhor. Já que o senhor me deu um conselho, também posso lhe dar um. Deixe minha esposa em paz, senão aí sim a coisa vai pegar. – Levantou-se sem se despedir, foi até o portão, parou, virou-se para trás, completando: – Tem mais uma coisa. A meninada daquele bairro quer tomar parte do Campeonato Municipal de Futebol, mas não estão aceitando as inscrições deles. Acho que, se não forem aceitos, teremos um bom assunto para o próximo jornal!

Quase no fim do expediente de segunda-feira, Leandro resolveu passar de surpresa na loja da esposa. Um rapaz conversava em um canto com ela. Chegou por trás, ouvindo:

– Não entendo como uma moça, da sua categoria e beleza, casou-se com um velho. Você merecia coisa melhor...

Leandro colocou a mão no ombro do rapaz, afirmando ironicamente:

– Também acho. Se ela escolheu assim, temos que respeitar. Afinal, estamos em um país democrático, de livres escolhas...

– Se me derem licença, tenho que ir – disse o rapaz, saindo sem graça.

– Leandro, entenda. Não tive culpa. Ele que me persegue desde o colégio.

  – Relaxa, Milena. Conheço a mulher com quem me casei. Acho que depois desse susto, ele não a importunará mais.

Parou uma caminhonete nova, estacionando à porta da loja. Desceu um homem alto, forte, barbudo, com roupa de roça e chapéu. Estava com um exemplar do Jornal da Turma na mão. Foi entrando.

– Sinto problema – deduziu a moça. – Esse é o Paulinho, um dos mais fortes fazendeiros aqui da cidade.

– Talvez não seja problema, Milena.

Dirigiu-se ao casal.

– Você deve ser o Leandro. – Apertou-lhe a mão. – É um grande prazer conhecê-lo. Gostaria de conversar um pouco. Só que a esta hora do dia minha garganta já está seca, pedindo a primeira cerveja. Milena, como a conheço desde criança, você me empresta o seu marido para ir ao bar comigo? Prometo que, se ele ficar muito bêbado, jogo em cima da caminhonete e entrego em sua casa.

– Pode levar – disse a moça, rindo.

No bar, pareciam velhos amigos em um bate-papo descontraído. 

– Gostei do jornal de vocês. Muito bom o trabalho que estão desenvolvendo.

– Realmente, Paulinho. Agora precisamos reformar todo o Centro Comunitário, embora não saibamos como. E outras ideias virão...

Leandro contou-lhe o encontro que teve com o prefeito.

– Aquele ali é uma anta de chapéu de palha atolado na cabeça. Eu gostaria muito de ajudar vocês. Pensei, por exemplo, aos finais de semanas meus maquinários ficam parados na fazenda. Nós poderíamos usá-los para arrumar o bairro.

– Louvável sua ideia, Paulinho. Só que o meu objetivo é fazer que eles mesmos lutem por isso. Não quero dar os peixes, quero que eles aprendam a pescar! Por favor, não me entenda mal.

– Pelo contrário, você está com toda a razão. 

– Acabo de te conhecer, mas o amigo me permite fazer uma pergunta delicada?

– Faça, homem. Você mesmo acaba de me chamar de amigo. Já temos liberdade um com o outro.

– Você tem alguma intenção política em querer nos ajudar?

– Eu nunca vou me meter nessa sujeira chamada política – deu uma risada. – Sou declaradamente apolítico. Quero ajudar pelo seguinte. Primeiramente, porque nasci e amo esta cidade, e quero vê-la cada vez melhor. Segundo, minha fazenda faz divisa com aquele bairro. Cada vez que olho da varanda da minha sede e vejo aquele povo vivendo daquele jeito, entristeço-me. E depois, vários de meus empregados moram ali. Gostaria de vê-los em melhores condições de moradia.

– Logo percebi que você é um bom caráter. 

– Bem, Leandro, de qualquer jeito, se precisar, pode contar comigo. 

Sexta-feira, ele chegou com uma grande caixa de papelão em casa. Tirou de dentro várias peças de roupas, cores alegres, modelos diferentes. Mostrou para sua esposa.

– Estas peças são muito bonitas, bem feitas. Onde você arrumou, Leandro?

– Foram as senhoras lá do Centro que criaram e produziram. Agora precisamos achar um jeito de comercializá-las. Mas não sei como.

– Eu posso colocá-las em minha loja.

– Você tem coragem?

– Claro, é uma mercadoria como outra qualquer.

– Nem sei quanto cobrar por elas.

– Mas eu, como uma empresária de visão, sei quanto posso cobrar por elas. Amanhã, logo cedo, estarão na vitrine.


No sábado, quando Leandro e os professores chegaram ao Centro Comunitário, uma surpresa. Havia muito material de construção, ferramentas, latas de tintas e outras coisas no pátio. A encarregada disse-lhes:

– Esta semana o caminhão de Depósito de Material para Construção deixou todo esse material aqui. A Nota Fiscal veio sem nome de quem o comprou. A única coisa que o motorista disse foi que, quem mandou, falou que é para reforma do nosso Centro. E se faltar algo, é só pedir ao depósito que depois ele passa e paga.

Leandro solicitou às crianças que chamassem seus pais e outras pessoas da comunidade. Veio um bom número para ouvi-lo.

– Pessoal, primeiramente, obrigado pela presença de todos. Como sabem, já há algum tempo, estamos realizando atividades com os filhos e senhoras desta comunidade. Se tem algo que sempre me fascinou, foi o poder da participação. Através dela conhecemos pessoas e ficamos conhecidos pelo contato social; tomamos conhecimento de fatos e novidades; descobrimos novas oportunidades e lugares; participamos de decisões e, unindo forças, conquistamos mudanças. Sendo uma utopia criadora, a participação pode impulsionar a sociedade a descobrir, por meio do uso da criatividade, alternativas de conquistar uma melhoria de qualidade para a humanidade ou para a simples comunidade da qual tomamos parte. Participando, temos envolvimento efetivo nos destinos, nos rumos e no poder de decisão daquelas resoluções que poderão interferir na vida de cada cidadão; é uma maneira de acreditar que cada pessoa tem grandes potencialidades e com elas podemos fazer com que uma comunidade que, por exemplo, é oprimida e enganada possa encontrar seus próprios rumos, escrevendo a sua própria história. Enfim, a participação nos trará inúmeras mudanças pessoais ou coletivas. Assim, agora precisamos reformar este local. O material, graças a Deus e a uma doação anônima, conseguimos. Precisamos da mão-de-obra de vocês. E então?

Todos aceitaram colaborar. Levantaram, foram conferir o material, avaliar o que precisava ser feito. Escolher as cores e detalhes da reforma. E tudo passou a correr em natural união.

Aquele dia ainda reservava outra surpresa. Ao chegar em casa, Milena entregou-lhe um envelope com dinheiro.

– O que significa isso?

– Vendi toda aquela roupa hoje mesmo.

– Já tirou sua porcentagem?

– Por enquanto, não quero, Leandro. Entregue a elas para comprar matéria-prima. Mas de você vou cobrar um preço. Hoje tem baile na cidade. Quero que meu maridinho me leve...

– Depende – disse, abraçando-a e ameaçando beijá-la. – Só se, depois do baile, eu tiver uma gostosa recompensa.

No Guaragudos Clube estava uma noite agradável. O casal e os pais dela sentaram-se junto à mesma mesa. Tudo corria descontraidamente, quando várias mulheres casadas e moças solteiras começaram a chegar com as roupas compradas naquele dia. Leandro chegou perto do ouvido de sua esposa:

– Acho que o “Morro dos Excluídos” começou a ditar moda na elite guaragudense.

Milena colocou a mão no rosto em um misto de espanto e risada:

– Meu Deus. Se essas madames souberem de onde vieram essas roupas, vão me matar!!!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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