4 - TODO DIA É SEMPRE IGUAL NA SELVA DE PEDRA

  Novamente, o despertador anunciou o início de um novo dia. Leandro acordou, preparou-se e foi para a empresa. Mais um dia rotineiro como tantos, semanas após semanas, meses após meses, anos após anos. Tempo variando entre muito trabalho e muito vazio existencial.

Ao entrar em sua sala, a secretária lhe passou a pauta do dia:

– Doutor Leandro, agora pela manhã o senhor tem uma reunião com o pessoal do Departamento de Pessoal. À tarde, a sua passagem de avião para Maringá já está marcada.

– Verdade, vou lá fazer uma exposição sobre o nosso projeto de responsabilidade social.

– Por falar nisso, uma jornalista de um tabloide de bairro gostaria de entrevistar o senhor sobre esse assunto. Pediu se eu posso agendar um horário.

– Um tabloide de bairro...? Bem, tudo é imprensa. E divulgação para nós nunca é demais. Veja se há horário para depois de amanhã e pode agendar.

– Sim senhor.

Ao fim de uma manhã corrida, à tarde embarcou, rumo a mais um compromisso. Durante o voo, a aeromoça lhe entregou um exemplar do jornal da empresa aérea. Começou a lê-lo. Parou num repente, lembrou de sua época de jornalista. Uma curiosidade surgiu: como seria produzir o seu próprio jornal?

* * *

Durante o café da manhã, Leandro comentou com sua esposa:

– Tenho que me apressar, Milena. Deixei o carro na revisão. Vou pegar o ônibus dos funcionários para ir à usina.

– Não precisa correr. Eu levo você, depois volto para a loja. Minhas funcionárias vão abrindo, arrumando tudo.

– Sua loja vai cada vez melhor, amor...

– Graças a Deus. Já estou com cinco funcionárias e tenho planos de abrir filiais nas cidades vizinhas.

– Isso prova que minha mulherzinha é uma ótima administradora.

A caminho da usina, Leandro olhou para um bairro distante da cidade. Perguntou:

– Que bairro é aquele?

– É é o chamado “Morro dos Excluídos”. É barra pesada, correm até drogas ali. Mas também tem muita gente pobre, que não pode morar em lugares mais dignos.

– É, vou lá pôr ordem na casa – comentou brincando.

– Vai, vai na fé...

Durante o dia, um faxineiro da usina começou a sentir-se mal. Foi medicado na enfermaria, mas os motoristas estavam todos fora, não havendo quem o levasse para casa. Leandro, observando a situação, propôs:

– Se tiver algum carro da empresa aí parado, eu mesmo posso levá-lo.

  Uma secretária lhe disse em particular:

– Até que tem, Leandro. Só que ele mora no “Morro dos Excluídos”. Pode ser perigoso.

– Imagina. Cadê a chave e o documento do carro?

Chegando, realmente era um lugar desolador. Ruas de terra, esburacadas, esgoto correndo a céu aberto. Casas de madeira, zinco, papelão. Crianças sujas, correndo quase sem roupas pelas ruas. Vários homens, muitos às portas de pequenos botecos, olharam para ele desconfiados. Lembrou-se das grandes favelas das metrópoles. Pensou: “Como em uma cidade pequena pode haver um lugar como esse? Cadê a união dessa população? Cadê o prefeito?”.

Deixou o funcionário em sua humilde casa. Só que, ao tentar sair do bairro, perdeu-se, indo parar em frente a um antigo barracão de velhas tábuas identificado com letras quase apagadas: “Centro Comunitário“. Uma mulher varria a calçada. Ele desceu do carro e foi perguntar como sair dali. Depois das explicações, quis saber:

– Aqui é um Centro Comunitário? Vocês têm muitas atividades?

– Eu sou responsável pelo local. Até que tínhamos várias atividades com a molecada. Mas tivemos muito problema de indisciplina. Estava difícil manter as atividades.

– Vocês aceitam voluntários?

– Até que aceitamos. Mas quem quer vir colaborar neste fim de mundo?

– Eu... Posso tentar trabalhar com essa criançada?

– Se o senhor quiser, será bem-vindo...

À noite, ele contou sua iniciativa a Milena.

– Leandro, você enlouqueceu de vez? Lá é muito perigoso. 

– Perigoso por que, se eu só vou fazer o bem a eles? Para mim, o ridículo é saber que em uma cidade pequena como Guaragudos a população e o poder público viram o rosto para aquele bairro. Até chegaram ao cúmulo de rotular como “Morro dos Excluídos”.

– Lá vem você com sua velha visão socialista de querer mudar o mundo.

– Não quero mudar o mundo. Apenas melhorar a autoestima, dar esperanças a algumas crianças. 

– Tudo bem. Só que não conte comigo nesta loucura.

No sábado, como não havia expediente na usina, Leandro foi até o Centro Comunitário. Deparou com muitos meninos que o olharam com desconfiança. Muita bagunça, correria, indisciplina. A responsável voltou a afirmar:

– Falei que não tem como dominá-los.

– Posso tentar?

– Fique à vontade.

Leandro falou alto:

– Pessoal, tenho um monte de coisas boas para contar. Só que vou precisar de todos sentados aqui na minha frente para ouvir...

Devagar, um a um foi se sentando e ficando em silêncio.

– Primeiro, quero agradecer a vocês a gentileza de se sentarem para me ouvir. Meu nome é Leandro. A partir de agora todos os sábados vou estar aqui com vocês para juntos fazermos um monte de coisas legais, como jogos, futebol, aulas de música, pintura e muito mais.

– Mas isso a gente já fazia – observou um menino.

– Só que não do jeito que vou propor. Vamos praticar tudo com regras.

– O que é regra? – indagou uma menina.

– São normas que temos que obedecer para conseguir alguma coisa. Só que aqui nós vamos criar as nossas próprias leis. Atrás de mim há uma lousa. Vamos juntos escrever o nosso próprio código. Vou sugerir a primeira. Quem quiser participar das nossas atividades terá que respeitar e não brigar com os colegas.

– Não pode falar palavrão – sugeriu um menino, sendo seguido por outros.

– Terá que chegar na hora certa.

– Terá que respeitar os monitores.

– Não pode estragar nem pichar o Centro.

E assim o código foi tomando forma. Até que Leandro sugeriu:

– Agora vou propor a última. Para que possa participar de todas as nossas atividades, o membro vai precisar manter as notas azuis na escola. Todos concordam? – Surgiu um sonoro “sim” coletivo. – Por outro lado, o nosso código precisa também estabelecer punições para quem descumprir as normas. Por exemplo, dependendo da infração, a pessoa pode ficar sem participar um dia das atividades, uma semana. Ter que limpar o pátio. Guardar sozinho o material. Dependendo do erro ou se for repetido, pode até ser expulso do grupo. E acredito que ninguém aqui quer “pagar mico” perante os colegas. Quer?

– Não...!

Escolhidas as punições, Leandro disse:

– Agora vou pegar o meu notebook e uma impressora pequena que eu trouxe. Vou digitar tudo isso que coloquei na lousa, depois imprimir e todos nós vamos assinar o nosso Código de Normas, como prova de que estamos de acordo e dispostos a cumpri-lo. E uma cópia vai ficar no mural para quem quiser consultar ou lembrar de alguma coisa.

Ele instalou o equipamento em cima de duas tábuas apoiadas em dois cavaletes. Todos ficaram em volta dele, vendo-o trabalhar. E empolgados assinaram o documento.

– Pessoal, tem outro negócio. Eu vou lutar para conseguirmos equipamentos, lanches, materiais, melhoras para o nosso Centro. Mas vocês vão ter que fazer por merecer, fazendo cumprir o nosso código...

Em casa, ele contou tudo e mostrou o documento à esposa.

– Você acha que eles vão cumprir isso?

– Acho que sim, Milena. Todos costumam obedecer normas que eles mesmos elaboram. Só que eu estou me sentindo sozinho nessa empreitada. 

– Você pode ir ao Centro Cultural, atrás do pessoal do esporte, pedir voluntários.

– Estou gostando da ideia. Ainda mais vindo de quem disse que não iria se meter nesse assunto.

– Foi apenas uma sugestão.

Leandro seguiu a ideia da esposa. A princípio teve uma resistência das pessoas devido à fama daquele bairro. Com jeito, conseguiu apenas um professor de educação física, um de artes e um de música como voluntários. Os primeiros materiais – bolas, tintas, papéis – foram comprados por ele. No começo foi um pouco tumultuado, mas logo estavam todos envolvidos nas atividades. Nos primeiros finais de semanas, aliás, tanto Leandro como os demais professores compravam refrigerantes para eles. Com o passar dos dias, a própria comunidade passou a oferecer o lanche. Alguns pais, espontaneamente, roçaram o capim alto e limparam o campinho da molecada.

Um mês após o início dos trabalhos, Leandro estava chegando ao bairro, quando notou um antigo barracão fechado. Perguntou o que era aquele lugar a um dos professores que estavam em seu carro.

– Ali funcionava uma tipografia. Era produzido um jornal semanal quando eu era criança. Depois, acho que com as novas tecnologias, ela foi desativada, abandonada...

Ao chegar ao Centro, Leandro não se conteve em perguntar para a meninada:

– Algum de vocês sabe alguma coisa sobre aquela velha tipografia no início do bairro?

– Meu avô trabalhou lá – contou uma menina.

– Tem como eu conversar com o seu avô?

– Sim, agora ele está em casa, aqui perto. Pode ir lá. O nome dele é Antônio.

Leandro foi até o local indicado. Uma casa simples, antiga, que há muito tempo não sofria uma reforma. Bateu palmas. Logo saiu um senhor aparentando serenidade.

– Sim?

– Seu Antônio?

– Sou eu mesmo. No que posso ajudá-lo, Leandro?

– O senhor me conhece?

– Minha neta fala muito bem de você. Bonito o trabalho que tem feito pelas nossas crianças. 

– Imagina. Eu gostaria de conversar com o senhor sobre aquela velha tipografia desativada. Pode ser?

– Pois é, meu filho. Trabalhei nela por quase trinta anos, em uma época romântica. Quantos impressos produzimos. Quantas noites viramos montando e imprimindo o jornal semanário. Até que o sistema tipográfico ficou obsoleto e tivemos que fechar por não haver dinheiro para comprar um maquinário mais moderno. O proprietário foi embora da cidade, deixando tudo pra trás e as chaves comigo, com autorização para eu fazer o que quiser de tudo aquilo. Aposentei-me, mas até hoje não tive coragem de me desfazer de tudo. Acho até que essa tipografia é patrimônio histórico para cidade.

– Com certeza, Seu Antônio. Mas eu tive uma ideia. O que o senhor acha de nós reativarmos a tipografia com uma função social?

– Como assim?

– Será uma espécie de escola-gráfica que o senhor irá coordenar e ensinar sua larga experiência para os meninos da comunidade.

– Seria um grande sonho.

– Seria não, Seu Antônio. Será... Vamos juntos nessa empreitada! 

Leandro voltou para o centro e contou a novidades para todos. Convidou alguns meninos maiores de 14 anos para formar a primeira turma. Juntos passaram pela casa de Seu Antônio e foram rumo à antiga tipografia. Ao abri-la, muita poeira, teias de aranha, anos de abandono.

– Acho que isto tudo precisa primeiramente de uma boa limpeza. Quem se habilita?

Todos se prontificaram. Cada um foi a sua casa e trouxe vassouras, baldes e tudo mais que era preciso. E o mutirão começou, durando toda à tarde. Tudo ficou pronto para uso.

– Leandro, se você quiser, durante a semana, posso continuar trabalhando, ensinando as posições dos tipos móveis nas caixas, a compor, a montar as chapas, tirar provas, corrigir, distribuir os tipos novamente nas caixas, a cortar e dobrar papel. Só não posso deixá-los imprimir na máquina elétrica, porque ela é perigosa, pode até amputar uma mão.

– Concordo plenamente com o senhor. Pessoal, o Seu Antônio está disposto a continuar ensinando vocês durante a semana fora do horário de aula. Tudo bem? Só peço que não se esqueçam do nosso Código de Normas e o respeitem.

– Pode deixar, Leandro. Eu me entendo com essa molecada que vi crescer.

Ao final da tarde, Leandro chegou todo sujo em casa.

– Nossa, o que aconteceu? Você rolou no chão com a criançada?

– Não, Milena. Nós resolvemos reativar uma velha tipografia.

– Estou dizendo que você está ficando maluco. – Deu-lhe um beijo na boca. – Só que é um maluco que eu amo cada vez mais!!!

Durante a semana, Leandro conseguiu na usina uma doação de graxa para a máquina impressora. No sábado, após encaminhar as atividades no Centro, foi para a tipografia. Os alunos já estavam adiantados no aprendizado. Pararam para ouvir uma outra ideia de Leandro:

– Pessoal, o que vocês acham de criarmos o nosso jornal?

– Legal, mas como?!

– A gente se reúne em uma espécie de discussão de pauta, escolhendo os assuntos a abordar. Nós distribuímos para cada um a tarefa de escrever o texto, colher informação na comunidade, fazer entrevistas com pessoas aqui do bairro, a realidade, necessidades, artigos de opinião de vocês sobre o que gostariam que melhorassem. Depois juntos faremos as revisões dos textos, decidiremos o que vai em cada página, vocês compõem as matérias, montam as chapas, corrigem e, por último, o Seu Antônio imprime o nosso jornal. O que acham?

Novamente, um “sim” coletivo. Empolgados, os rapazes começaram a trocar ideias de pauta. Seu Antônio aproximou-se de Leandro:

– É, devo admitir que, mais uma vez, você teve uma boa ideia, rapaz!

– Mais do que isso. Indiretamente, vamos pôr essa molecada para exercer a língua portuguesa e a redação.

Após alguns minutos, um dos rapazes que fora lavar tipos de chumbo no tanque, do lado de fora, voltou dizendo:

– Aquela madame que tem uma loja bacana lá na cidade chegou aí com um carrão.

Todos saíram curiosos para vê-la. Leandro deu uma risada.

– Gente, não é madame, não. É a minha esposa.

Milena desceu do carro, pedindo:

– Algum dos cavalheiros pode me ajudar a descarregar?

Abriu o porta-malas onde havia uma caixa de isopor e garrafas de refrigerantes. Enquanto os rapazes levavam tudo para dentro, Leandro aproximou-se:

– Não pensei que um dia você faria isso...

– Quem trabalha precisa comer. E hoje eu decidi trazer o lanche. Deixei uma parte lá no Centro Comunitário e vim conhecer essa tal tipografia.

Entraram. Ela conheceu tudo, conversou com cada rapaz. Seu Antônio contou-lhe:

– Agora queremos fazer um jornal. Só precisamos achar um patrocinador para comprar a tinta e o papel.

– Minha loja pode patrocinar o primeiro número.

– Você?! – espantou-se Leandro.

– Lógico, sou uma comerciante. Ainda mais agora, que pretendo montar minha própria confecção. Preciso de publicidade.

– Então a senhora quer dar voos mais altos e nem me conta nada. Isso que dá casar com mulher independente...

– Pois é, meu bem. Agora preciso ir-me, pois deixei a loja na mão das funcionárias.

Leandro a acompanhou até o carro.

– Obrigado pelo apoio que você acabou de nos dar. Pode ter certeza de que ele foi muito mais significativo pra mim do que para essas crianças.

– Imagina, Leandro. Tenho consciência de que me casei com um maluco. – Beijou-lhe à boca. – Mas um maluco que só tem bondade no coração...

Os dias foram passando e o jornal tomando forma. Juntos decidiram o seu nome: Jornal da Turma. Em uma sexta-feira, após o trabalho na usina, Leandro passou pela tipografia. O impresso estava pronto. Ele sugeriu:

– O nosso jornal será distribuído gratuitamente. Uma parte aqui na comunidade. Como amanhã é sábado e o comércio fica cheio de gente, cada um de nós pegará um pouco e distribuirá na rua comercial e redondezas.

E assim o primeiro número do jornal foi colocado na rua.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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