COROAS DE FLORES

VENTOS DE PRIMAVERA - Emílio Figueira / Jan. de 2001 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 0,40 x 0,60

Naquele apartamento pequeno, moderno com vista para a cidade iluminada, Simone despede-se de suas amigas à porta, que somem ao fechar o elevador. Várias garrafas vazias espalhadas pela bagunçada sala. Ao fechar a porta, ela está novamente sozinha. Embriagada, cai no sofá e dorme.

Na manhã seguinte, Simone chega ao escritório onde é gerente de marketing com seu andar de superioridade e roupas extravagantes, sempre perguntando se gostaram, fazendo questão de dizer as lojas que foram compradas e quanto custaram. Senta-se em sua mesa e começa a trabalhar. Toca seu celular. Do outro lado é uma enfermeira da casa de repouso pedindo que visite sua mãe. Simone é rude com ela:

- Minha filha, eu não tenho tempo e já pago muito caro para que ela seja bem atendida por vocês.

Do outro lado, a enfermeira desliga o telefone e comenta com dona Cida que sua filha virá vê-la em breve. A senhora sorri e começa a relembrar de quando chegou em São Paulo com seu marido, que passava a semana em outro município trabalhando. As dificuldades, quando deu à luz sozinha num hospital público. As restrições financeiras morando em um cortiço. Noites sozinha velando por sua filha, sem dinheiro para assistência médica, muitas vezes contando com remédios doados por vizinhos, os quais também tinham muito pouco.

A rotina de Simone, com mais de cinquenta anos, após o expediente, é pelo menos duas vezes por semana frequentar baladas entre muitos jovens, ser a mais exibida de todos na pista. Se for em uma sexta-feira, ou véspera de feriado, no dia seguinte, dorme até o meio da tarde.

Aos domingos, na casa de repouso, os idosos recebem visitas e flores. Menos dona Cida que, solitária, começa a relembrar a morte do marido, a decisão de ficar na cidade para dar educação para filha.

Separadas, a rotina de Simone é trabalhando, divertindo-se com caras mais jovens em relacionamentos vazios, só para se autoafirmar. 

Os dias de dona Cida são tristes em sua cadeira de rodas. Como muitos dali da casa de repouso, é nessa época que perdemos contato com amigos, e muitas vezes perdemos a pessoa mais importante em nossas vidas: nossos maridos ou esposas. A terceira idade é marcada por transformações e perdas, essas pessoas perdem seus companheiros, perdem a independência, perdem inclusive o carinho dos filhos, os quais não têm tempo ou paciência para cuidar dos pais e os deixam em casas para idosos, o que piora ainda mais o sentimento de solidão na terceira idade ao perceberem que foram abandonados pelos filhos e que passarão o resto de suas vidas cercados de pessoas que não conhecem e enfermeiros. O que para muitos deles contribui para o aparecimento de outra doença, a depressão.

Retrair-se, isolar-se e calar-se. As décadas se passam à frente dos olhos e a solidão se assola enquanto se vive um capítulo marcante da vida. A depressão na terceira idade é um dos fatores mais recorrentes na vida dos idosos, residam eles em casas de repouso, ou com seus familiares. Em idades avançadas, a maioria deles fica aos cuidados dos filhos ou parentes mais próximos. Porém, mesmo assim, a depressão pode se manifestar de uma maneira sutil e silenciosa, estimulada pelo o abandono da família, diminuição dos compromissos sociais, sensação de improdutividade, perdas das pessoas queridas, as crescentes limitações físicas e/ou psíquicas. 

Meses se passam, chega maio. Um jovem funcionário aproxima-se da mesa de Simone e é convidado a passar o final de semana com ela na praia. No hotel, enquanto ele dorme, ela, ao lado, é perturbada por memórias de sua infância e pobreza. Levanta-se, vai até o espelho, olha-se e cumprimenta sua mãe mentalmente: “Parabéns, mamãe!”

À casa de repouso, todos estão recebendo visitas, flores pelo Dia das Mães. Dona Cida sozinha no canto, observa a tudo. Uma funcionária lhe traz flores. Ela agradece, mas pensa o quanto gostaria de receber da sua própria filha. A funcionária liga para o celular de Simone que se diz ocupada para falar com sua mãe.

Junho, Simone viaja com um grupo de amigas. Enquanto na casa de repouso, durante a festa junina, em um canto sozinha, dona Cida relembra as festas da filha e o carinho que a arrumava, o orgulho que tinha ao vê-la feliz entre outras crianças.

Os dias, semanas, meses voam. Na televisão coletiva da casa de repouso está passando o desfile de 7 de setembro.  Em volta da mesa, com um pequeno bolo, todos cantam parabéns para dona Cida. Uma enfermeira comenta com a outra:

- Mais uma vez a filha dela nem ligou. E eu nem vou ligar, pois ela sempre é estúpida com a gente.

E a enfermeira-chefe comenta:

- Pois é... Muitos filhos adultos ficam irritados por precisarem acompanhar os pais idosos ao médico, aos laboratórios. Irritam-se pelo seu andar mais lento e suas dificuldades de se organizar no tempo, sua incapacidade crescente de serem ágeis nos gestos e decisões. Desde os poucos minutos dos sinais luminosos para se atravessar uma rua, até as grandes filas nos supermercados, a dificuldade de caminhar por calçadas quebradas e a hesitação ao digitar uma senha de computador, qualquer coisa que tire esses filhos de seu tempo de trabalho e do seu lazer, ao acompanhar os pais, é causa de irritação. Nas salas de espera sempre vemos os idosos calados e seus filhos entretidos nos seus jornais, revistas, tablets e celulares. Vive-se uma vida velocíssima, em que quase todo o tempo do simples existir deve ser vertido para tempo útil, entendendo-se tempo útil como aquele que também é investido nas redes sociais.

Simone, muito embriagada, conta em uma mesa de bar, mentiras sobre seu passado e formação. 

- Sabe, eu vim de uma família muito bem de vida, sempre tive o que quis. Estudei nos melhores colégios, tive boa formação. Meus pais viviam na Europa e minha mãe ainda mora lá.

Dona Cida relembra a dificuldade de formação, quando era faxineira da faculdade onde Simone estudara e a vergonha da filha que nunca a apresentava às amigas e lhe permitia ir as suas formaturas.

Dona Cida pega pneumonia e é internada. Fraca no leito, uma enfermeira entra no quarto com flores. Ela se alegra, mas a enfermeira diz só passar por ali para saber como ela está e que as flores são para outra paciente. Triste e sozinha no quarto, dona Cida falece.

No velório, estão o pessoal da casa de repouso. Simone chega calada e coloca uma coroa de flores sob o caixão de sua mãe, por quem ela sempre teve acusações e punições inconscientes de culpas pela pobreza no passado.


Naquele apartamento pequeno, moderno com vista para a cidade iluminada, Simone despede-se de suas amigas à porta, que somem ao fechar o elevador. Várias garrafas vazias espalhadas pela bagunçada sala. Ao fechar a porta, ela está novamente sozinha. Embriagada, cai no sofá e dorme.

Na manhã seguinte, Simone chega ao escritório onde é gerente de marketing com seu andar de superioridade e roupas extravagantes, sempre perguntando se gostaram, fazendo questão de dizer as lojas que foram compradas e quanto custaram. Senta-se em sua mesa e começa a trabalhar. Toca seu celular. Do outro lado é uma enfermeira da casa de repouso pedindo que visite sua mãe. Simone é rude com ela:

- Minha filha, eu não tenho tempo e já pago muito caro para que ela seja bem atendida por vocês.

Do outro lado, a enfermeira desliga o telefone e comenta com dona Cida que sua filha virá vê-la em breve. A senhora sorri e começa a relembrar de quando chegou em São Paulo com seu marido, que passava a semana em outro município trabalhando. As dificuldades, quando deu à luz sozinha num hospital público. As restrições financeiras morando em um cortiço. Noites sozinha velando por sua filha, sem dinheiro para assistência médica, muitas vezes contando com remédios doados por vizinhos, os quais também tinham muito pouco.

A rotina de Simone, com mais de cinquenta anos, após o expediente, é pelo menos duas vezes por semana frequentar baladas entre muitos jovens, ser a mais exibida de todos na pista. Se for em uma sexta-feira, ou véspera de feriado, no dia seguinte, dorme até o meio da tarde.

Aos domingos, na casa de repouso, os idosos recebem visitas e flores. Menos dona Cida que, solitária, começa a relembrar a morte do marido, a decisão de ficar na cidade para dar educação para filha.

Separadas, a rotina de Simone é trabalhando, divertindo-se com caras mais jovens em relacionamentos vazios, só para se autoafirmar. 

Os dias de dona Cida são tristes em sua cadeira de rodas. Como muitos dali da casa de repouso, é nessa época que perdemos contato com amigos, e muitas vezes perdemos a pessoa mais importante em nossas vidas: nossos maridos ou esposas. A terceira idade é marcada por transformações e perdas, essas pessoas perdem seus companheiros, perdem a independência, perdem inclusive o carinho dos filhos, os quais não têm tempo ou paciência para cuidar dos pais e os deixam em casas para idosos, o que piora ainda mais o sentimento de solidão na terceira idade ao perceberem que foram abandonados pelos filhos e que passarão o resto de suas vidas cercados de pessoas que não conhecem e enfermeiros. O que para muitos deles contribui para o aparecimento de outra doença, a depressão.

Retrair-se, isolar-se e calar-se. As décadas se passam à frente dos olhos e a solidão se assola enquanto se vive um capítulo marcante da vida. A depressão na terceira idade é um dos fatores mais recorrentes na vida dos idosos, residam eles em casas de repouso, ou com seus familiares. Em idades avançadas, a maioria deles fica aos cuidados dos filhos ou parentes mais próximos. Porém, mesmo assim, a depressão pode se manifestar de uma maneira sutil e silenciosa, estimulada pelo o abandono da família, diminuição dos compromissos sociais, sensação de improdutividade, perdas das pessoas queridas, as crescentes limitações físicas e/ou psíquicas. 

Meses se passam, chega maio. Um jovem funcionário aproxima-se da mesa de Simone e é convidado a passar o final de semana com ela na praia. No hotel, enquanto ele dorme, ela, ao lado, é perturbada por memórias de sua infância e pobreza. Levanta-se, vai até o espelho, olha-se e cumprimenta sua mãe mentalmente: “Parabéns, mamãe!”

À casa de repouso, todos estão recebendo visitas, flores pelo Dia das Mães. Dona Cida sozinha no canto, observa a tudo. Uma funcionária lhe traz flores. Ela agradece, mas pensa o quanto gostaria de receber da sua própria filha. A funcionária liga para o celular de Simone que se diz ocupada para falar com sua mãe.

Junho, Simone viaja com um grupo de amigas. Enquanto na casa de repouso, durante a festa junina, em um canto sozinha, dona Cida relembra as festas da filha e o carinho que a arrumava, o orgulho que tinha ao vê-la feliz entre outras crianças.

Os dias, semanas, meses voam. Na televisão coletiva da casa de repouso está passando o desfile de 7 de setembro.  Em volta da mesa, com um pequeno bolo, todos cantam parabéns para dona Cida. Uma enfermeira comenta com a outra:

- Mais uma vez a filha dela nem ligou. E eu nem vou ligar, pois ela sempre é estúpida com a gente.

E a enfermeira-chefe comenta:

- Pois é... Muitos filhos adultos ficam irritados por precisarem acompanhar os pais idosos ao médico, aos laboratórios. Irritam-se pelo seu andar mais lento e suas dificuldades de se organizar no tempo, sua incapacidade crescente de serem ágeis nos gestos e decisões. Desde os poucos minutos dos sinais luminosos para se atravessar uma rua, até as grandes filas nos supermercados, a dificuldade de caminhar por calçadas quebradas e a hesitação ao digitar uma senha de computador, qualquer coisa que tire esses filhos de seu tempo de trabalho e do seu lazer, ao acompanhar os pais, é causa de irritação. Nas salas de espera sempre vemos os idosos calados e seus filhos entretidos nos seus jornais, revistas, tablets e celulares. Vive-se uma vida velocíssima, em que quase todo o tempo do simples existir deve ser vertido para tempo útil, entendendo-se tempo útil como aquele que também é investido nas redes sociais.

Simone, muito embriagada, conta em uma mesa de bar, mentiras sobre seu passado e formação. 

- Sabe, eu vim de uma família muito bem de vida, sempre tive o que quis. Estudei nos melhores colégios, tive boa formação. Meus pais viviam na Europa e minha mãe ainda mora lá.

Dona Cida relembra a dificuldade de formação, quando era faxineira da faculdade onde Simone estudara e a vergonha da filha que nunca a apresentava às amigas e lhe permitia ir as suas formaturas.

Dona Cida pega pneumonia e é internada. Fraca no leito, uma enfermeira entra no quarto com flores. Ela se alegra, mas a enfermeira diz só passar por ali para saber como ela está e que as flores são para outra paciente. Triste e sozinha no quarto, dona Cida falece.

No velório, estão o pessoal da casa de repouso. Simone chega calada e coloca uma coroa de flores sob o caixão de sua mãe, por quem ela sempre teve acusações e punições inconscientes de culpas pela pobreza no passado.

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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