O TOQUE DA CAMPAINHA

O CASARÃO NA MONTANHA - Emílio Figueira / Ago. de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 0,50 x 0,60

Uma sala de estar de uma casa de família de classe média. Num há uma mesa de jantar com uma bíblia e coisas de professora – pastas, papéis, celular e a bolsa dela. O pai está sentado no sofá pensando com as duas mãos apoiadas na bengala. Lenise entra acelerada, preocupada, procura algo em sua bolsa, nas pastas de papéis em cima de sua mesa.

- Preocupada com alguma coisa, filha?

Pergunta seu pai, um homem reservado, não demonstra, mas é capaz de emoções profundas. Calmo e sereno no falar, pensar e agir em suas atitudes. Cristão desde sua infância, sempre teve grande interesse por aperfeiçoar e praticar sua fé, conhecer e ler muito a Bíblia. Magro, alto, anda de bengala por problemas na coluna. Filho de camponeses, veio ainda jovem para São Paulo, ser operário numa fábrica de alimentos e ali fez carreira, aposentando-se como gerente da linha de produção. Seus estudos foram só até há quarta série primária. Mas sempre leu muito, jornais e livros, hábito que nunca abandonou. Por ter Lenise como filha única, pode lhe dar uma boa educação e formação.

- Perdi um importante relatório da escola que a diretora me emprestou para ler. E ela ainda fez recomendação para tomar cuidado, pois ele não tinha cópia. Amanhã esse documento precisa ser entregue sem falta à Delegacia de Ensino.

- Ele vai aparecer, Lenise...

Ela é uma típica professora brasileira, formada em história, leciona essa disciplina para o ensino médio. Morena, magra, cabelo Chanel, 45 anos de idade, solteira e sem namorado. Filha única, mora com os pais em São Paulo, onde nasceu e sempre viveu. Uma família de classe média em um sobrado de vila. Adepta há muita leitura, tem uma vida tranquila e sai pouco de casa, quase não tem vida social. Criada em uma igreja evangélica, já foi muito atuante, mas encontra-se parada em sua caminhada religiosa. Teve uma infância e uma juventude normal, amigos que conserva até hoje, sendo uma moça extrovertida intuitiva, criativa, capaz de modificar outras pessoas, aproveitar as oportunidades.

Lenise deixa de procurar e olha para ele: 

- Sabe pai, eu queria ter essa confiança, essa sua tranquilidade diante de qualquer problema.

Seu pai dá uma pequena risada:

- Isso se chama confiança em Deus, filha. É uma prática que todos os cristãos precisavam ter para serem menos ansiosos.

- O senhor está dizendo que estou ansiosa diante desse problema???

- Sim, desse e de toda a sua vida!!!

- Mas pai, a ansiedade faz parte da existência humana – diz ela sem graça: - Sou professora de história e sei que a cerca de 20 mil anos antes de Cristo, quando era coletador e caçador, o homem vivenciou um cotidiano muito mais estressante em relação ao que vivemos na sociedade contemporânea. Existia o medo de não ter alimento, um estresse, um processo de ansiedade crônica e elevada pela insegurança quanto à manutenção da própria vida. Se o homem desse período se arranhasse numa pedra, por exemplo, ele sofreria um ferimento e poderia desenvolver uma infecção generalizada e morreria semanas ou meses depois. Perderia a perna devido à gangrena. O homem precisava afugentar os animais predadores com fogueiras e se armar de flechas para sua própria defesa. Pai hoje o nível de estresse do ser humano é muito menor.

- Poxa filha, isto é o mesmo que dizer que já se passaram vinte e dois mil anos e o homem não evoluiu nada no que diz respeito ao controle de suas emoções e autocontrole!? 

Sua mãe entrando com uma bandeija de café e servindo o marido e a filha. Uma senhora de cabelos nos ombros, óculos e sempre vestida de conjuntinho. Cristã, sempre foi a grande companheira na fé e na vida de seu marido. Filha de operários também cristãos, o conheceu na juventude quando ele começou a trabalhar na fábrica e logo se casaram. Por motivos de saúde, pode gerar só uma única filha, a qual sempre foi sua grande amiga. Carinhosa, afetuosa, caridosa, emotiva, sensível, sociável. Nunca trabalhou fora, dedicando-se somente aos afazeres domésticos e à educação e formação de Lenise, para quem diz naquele momento: 

- Sem brincadeira filha, mas esses homens da caverna não tinha o mesmo Deus que temos hoje. 

- E nem a comunicação direta que temos com Ele que nos foi dada por meio de Jesus.

- Tudo bem, pai. Mas o que nossa ansiedade tem haver com isso?

Sua mãe pega uma bíblia em cima da mesa, observando: 

- Veja Lenise, Paulo em Filipenses 4, versículo 6, diz: “Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de raças”.

- Mãe, quer dizer que se eu orar e esperar em Deus, Ele mandará esse documento de volta às minhas mãos?

- Se for da Sua vontade e Ele achar fé em seu coração, tudo é possível.

- Eu sei pai, mas o senhor não entende a gravidade do problema. Tenho só até amanhã de manhã para entregar esse relatório semestral de volta. O arquivo dele no computador foi corrompido. Eu estava com a única cópia existente. Inclusive posso sofrer um processo administrativo por essa perda. Até ser exonerada como professora.

O pai, levantando-se e levando a xícara até a bandeja em cima da mesa, volta, dizendo:

- Filha, para mim não interessa a gravidade de um problema. O que me interessa é que caminho junto com o Senhor Jesus e Ele pode resolver qualquer problema que surja na minha vida!

- Confiança que você não tem, Lenise. Você foi uma menina tão dedicada as coisas de Deus, uma jovem tão envolvida com as coisas da igreja, atuante. Depois que foi para faculdade e pós-graduação, afastou-se, achou que era autossuficiente para gerenciar a sua própria vida.

- Também não é assim, mãe. Eu continuei evangélica. Tenho minha forma de conversar com o Senhor. Guardo tudo que aprendi nas Escolas Bíblicas Dominicais.

- Só filha que ser evangélica deva ser uma prática, não apenas um rótulo. Aliás, isso é moda agora, muitos visitam uma igreja e já sai se dizendo evangélico. Virou um status social.

- Tá bom, pai e mãe. Só que neste momento estou com um problema muito grande para ficar discutindo religião. Vamos combinar uma coisa? Se Deus realmente mandar esse bendito documento às minhas mãos até amanhã de manhã, eu volto para igreja.

- É você quem está dizendo, filha, assumindo isso perante Deus.

- Vou dar uns telefonemas. Ver se o pessoal da escola ou da limpeza achou o documento.

Lenise senta-se à mesa, pega o celular e começa a fazer ligações em silêncio. Sua mãe senta-se perto do marido, dizendo a ele:

- Num ponto a Lenise está com razão. Desde a época da caverna todos têm essa tal de ansiedade.

- Eu sei, meu bem. Mesmo sendo cristãos, isto não significa que não devamos ter algum grau de ansiedade sobre o nosso dever. Devemos ter um profundo interesse por tudo que diga respeito ao reino de Deus. Uma certa medida de pensamento ansioso é necessária ao eficiente desempenho de cada dever cristão. Veja o que o próprio Paulo fala sobre sua responsabilidade de pastor em Gálatas 4:19, “meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós”.

- Quer dizer bem, que não devemos estar ansiosos sobre os resultados de nosso trabalho ou suas consequências?

- Sim, Deus têm estes em suas mãos e sob seu controle. Quando estamos ansiosos é porque tememos algo ou queremos ficar livres logo de problemas que nos afligem. Confiando em Jesus, nossa ansiedade não desviará o mal que estamos antecipando. Nosso amado Mestre transforma o mal em bem. Por gentileza, abra a Bíblia em Romanos 8:28 e leia para nós...

A mãe pega a bíblia e ler em voz alta:

- “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito”.

- Está vendo, meu amor. A ansiedade excessiva pode ser um pecado. É como desconsiderar uma ordem divina, numa falta de confiança no poder e sabedoria de Deus. Como se duvidássemos da realidade das promessas. Nos desencoraja quanto ao dever, entregando-nos à disposição e prazer do trabalho.

- Meu Deus, tenha misericórdia de nós, os fracos de fé!!! Mas meu velho, como colocar essas coisas na cabeça de Lenise?

- Deus nos guiará.

Lenise larga o celular, levanta-se e vem se sentar perto de seus pais. Diz desanimada:

- Não tem jeito, ninguém achou esse bendito relatório.

- Tem jeito sim, filha. Por que nós não oramos juntos? Como diz o versículo 6 de Filipense 4, “Em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças”.

- Orar juntos, mãe? – Pede a moça emocionada: - Faz tanto tempo que não oramos em família... Agora veio tantas recordações lindas desses nossos momentos. Será que Deus nos ouvirá?

- Com certeza, filha, creia no alcance da oração. Quando o versículo diz “Em tudo”, este conselho é frequentemente negligenciado, pois as pessoas levam seus grandes infortúnios ou suas grandes ansiedades a Deus, mas guardam seus problemas comuns para si mesmas. Uma paráfrase desta passagem nos diz: “Não fique ansioso por nada; ore por tudo; seja agradecido por todas as coisas”.

- Está bem, vamos orar...

- Vamos não, filha. Você ora...

Todos fecham os olhos.

- Senhor Jesus, sei que faz tempo que não oramos em família. Mas o Senhor sempre ouviu meu pai e minha mãe. O Senhor nunca deixou de olhar por mim, mesmo nos meus momentos afastada de sua casa e da convivência com meus irmãos lá da igreja. Peço desculpas pelos meus erros e faltas. Mas Pai, agora estou com este grande problema, tenho que recuperar esses documentos até amanhã. Se o Senhor me ajudar, reforço o meu compromisso de voltar para sua casa. Também lhe peço que continue abençoando e guardando esses pais maravilhosos que o Senhor me deu. Amém...

Pai e mãe juntos:

- Amém...

- Viu só filha, agora descanse. Você acaba de colocar tudo nas mãos de Deus, com um sentimento de que Ele fará de tudo bem. O fardo foi lançado sobre o Senhor.

- O efeito de uma oração leva a pessoas que ora a buscar respostas na oração que crê nos atos da providência divina – afirma sua mãe: - Aumenta o desejo de conhecer a vontade de Deus como está expressa em sua Palavra. E como diz Filipenses 4, versículo 7, “E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus”.

- É filha, estes são os efeitos desta paz, “guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus”. Isto não significa que a paz manterá a posse, mas antes, como significa a Palavra guardará, ficará de guarda ou sentinela diante do coração ou da mente, de formas a evitar a intrusão de pensamentos perturbadores ou inquietantes. É o próprio Cristo que fica de sentinela lá.

- Calma pessoal, tudo isso é confuso para mim. Queria ter a mesma compreensão e fé dos senhores.

- Tudo é uma questão de prática e desenvolvimento espiritual e de sua comunicação pessoal com Deus, filha. Não há nada de confuso. No caso de dúvidas intelectuais que abalam a nossa fé, a paz evitará que elas surjam ou as repelirá quando surgirem.

Seu pai levanta-se e caminha um pouco pela sala:

- Lenise, no caso de amargas lembranças de seus pecados passados, esta paz a leva de volta à reconciliação por Cristo na cruz. No caso de ansiedades, temores, e solicitudes terrenas, a paz de Deus leva o crente de volta ao ponto de suas libertações passadas, como está no Salmo 63:7, “Porque tu me tens sido auxílio; à sombra das tuas asas, eu canto jubiloso”.

- Filha, a paz nos guarda contra o pecado. Os que estão espiritualmente em paz são os moralmente fortes. O dever é um prazer, a obediência é doce, porque a mente espiritual está em harmonia com a mente de Deus. O pecado é rejeitado porque ameaça estragar essa paz.

- Jesus comunica aquela calma central cuja falta está no centro das infindáveis agitações que sacodem nossa vida, quando a vivemos num plano meramente terreno. Sigamos o conselho de Pedro, um discípulo que passou por muitas tristezas até que aprendeu o caminho para solucionar as angústias pessoais – diz o pai voltando a sentar-se e abrindo a bíblia: - Veja o que o impulsivo Pedro recomenda, depois que o Senhor trouxe a paz ao seu espírito conturbado - 1 Pedro 5:7 “lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós”.

O celular de Lenise toca em cima da mesa. Ela vai atender. O casal continua a conversa.

- Jesus realmente é a nossa paz...

- Realmente, como diz em João 14:27: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize”.

- Ele é a continua fonte de nossa paz.

Lenise voltando: 

- Só que a minha paz acabou. A diretora me ligou, dizendo que está aqui perto e dará uma passada aqui para discutir alguns pontos do relatório antes dele ser entregue amanhã. Estou perdida...

Toca a campanhia. Sua mãe faz um gesto com a mão pedindo calma e vai atender, saindo da sala. Lenise questiona:

- E agora, o que digo para ela???

- Ó menina de pouca fé!!! – Exclama o pai, achando graça.

A mãe volta, acompanhada por um jovem com um envelope nas mãos, anunciando à filha:

- Lenise, este seu aluno pediu para falar com você. Disse que é importante.

O jovem lhe diz:

- Boa noite pessoal. Desculpe-me ter vindo há esta hora. Mas hoje professora, quando você estava entrando no carro lá no estacionamento da escola, deixou cair este envelope. Vi que era importante e iria lhe entregar amanhã. Mas uma coisa começou a apertar o meu coração lá em casa agora há pouco e resolvi trazer até a sua casa.

Entrega o envelope à Lenise. Ela abre, alegra-se e vai abraçá-lo:

- Obrigada Marquinhos, você é um anjo na minha vida. - O larga e olha para seus pais: - É o relatório, ele está inteiro e intacto!!!

- Marquinho, hoje fiz um bolo de chocolate. Você aceita um pedaço para pagar a sua caminhada? – Oferece a mãe da professora.

- Se não for incomodo, aceito sim. É o meu bolo preferido.

- Incomodo nada, menino. Vem comigo até a cozinha...

A mãe o abraça e vão saindo juntos.

- Marquinho, você também acabou de ganhar meio ponto na média em história...

Diz a professora que continua a olhar o relatório com alegria. Seu pai levanta-se, indo até perto dela:

- O Senhor cumpriu a parte Dele no trato. Mandou o documento às suas mãos. Agora só não esqueça da sua parte, filha... Bem, eu também mereço bolo de chocolate!

O pai sai da sala. Lenise continua por um tempinho olhando o documento muda.

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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