NOSTALGIA DO FUTURO

texto 1
MONUMENTO AO AMOR IMPOSSÍVEL -Emílio Figueira / Nov. de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 0,40 x 0,60

Era um moço honesto e sincero em seus sentimentos. Sempre muito alegre e expressivo, cativava o dom da escrita e era apaixonado por música romântica. Acreditava no verdadeiro amor e se preparava para ser eternamente fiel a apenas uma mulher. Até que seu sonho se realizou. Entrando em seu quarto simples, tendo um guarda-roupa, cama de solteiro, penteadeira, cortinas, uma escrivaninha e um computador com impressora, estava só de cueca samba-canção. Estava alegre, pois era o dia de seu casamento.

Como todo romântico, gostava de conversar sozinho em seus momentos de privacidade. E, misturando memórias com suas poesias, começou a recordar:

– Enfim, chegou o grande dia do meu casamento – senta-se em sua cama. -Lembro-me de quando a conheci, fomos apresentados por uma amiga. Acabei me encantando à primeira vista. Ela era linda. Psicóloga. Uma mulher de grande porte, cabelo longo e um jeito de uma verdadeira lady! Charme, então, nem se diga... Era a chamada “mulher de fazendeiro”, não sendo para qualquer um. Eu comentava com meus amigos que nunca, nem na televisão nem na vida real, havia visto uma mulher com tanta beleza como ela – levanta-se e começa a caminhar lentamente pelo quarto. - Os dias foram passando, nossos encontros pelos corredores do local onde trabalhávamos tornaram-se comuns, embora resumissem em apenas três beijinhos e um “como vai?”. Mas eles foram o suficiente para me apaixonar. Eu me sentia um verdadeiro adolescente vivendo a descoberta e medos do primeiro amor. Foi quando, criando toda uma situação imaginária, fiz minha primeira poesia para ela, na qual dizia justamente sobre a necessidade de um discurso amoroso.

Preciso escrever um clássico...

Que fale de alegria,

Sorrisos, flores,

Poesias.

Escrever um clássico...


Preciso escrever um clássico...

Não no sentido

Público, universal;

Apenas no singular,

Mas, sobretudo,

Um clássico...


Preciso escrever um clássico...

Com todos os sons, ritmos, rimas,

Versos, cores e musicalidade...

Mas que seja

(simplesmente)

Clássico...

O romântico rapaz continua em seu monólogo:

– Um dia, porém, tive uma agradável surpresa. Ela me convidou para ir à festa de aniversário de sua mãe, que seria realizada em sua casa na tarde de domingo. Lá, eu estava me sentindo o dono do pedaço, ao lado da pessoa que eu estava gostando. Certo que éramos apenas amigos, mas, em minha fantasia, éramos mais. Cheguei até ao ponto de ver a sua mãe já como minha futura sogra. E, por que não, no meio de todas aquelas pessoas, imaginei somente eu e ela ali...

No ritmo da chuva lá fora,

Descansam nossas descansadas consciências,

Enquanto a vida se projeta

Na tela de um cinema mudo.

Não seremos Romeu e Julieta,

Marília e Dirceu, Abreu e Iraci!

Mas, sim, eternamente,

Tão somente... Eu e você.

Brindemos o amor mentalmente feito:

O amor em presente projeção

E o amor que ainda há por se fazer.


Começou a pegar a roupa para ir se trocando, mas continuou relembrando:

– Mas minha alegria durou pouco. Uma amiga me perguntou...

Nesse momento, o romântico moço brinca e muda o tom da voz para a feminina: “Já pensou como será quando você vê-la com o seu namorado?”.

Voltou à voz normal:

– Foi quando eu entendi, de um modo bem adolescente, que amar é...

Encantar-se ao vê-la passar,

Telefonar para não dizer nada,

Elogiar a sua família e o seu cachorrinho,

Oferecer o último pedaço de meu chocolate,

Convidá-la para comer pizza com Coca-Cola...

Imaginar e abraçar o travesseiro como um adolescente,

Ajudá-la a lavar o quintal,

Querer passear no banco de passageiro de seu carro,

Trocar para ela o pneu sorrindo...

Fazer dela uma dama,

Sentindo-se um vagabundo

(E nunca sentir ciúmes ao vê-la com o seu namorado)!

– Legal, né? – Dá uma pequena risada, desanima e continua se relembrando. - Mas nem tudo foram flores de início. De repente, ela começou a se tornar algo muito além de mim. Ou melhor, passei a ter um enorme complexo de inferioridade. Não me julgava ninguém para ter ao meu lado uma mulher daquele nível. Começou, então, um enorme medo. Quantas vezes eu, ao vê-la, corria ou me escondia. Era como se ela fosse um monstro pronto a me engolir. Outras vezes, além de me esconder, eu chorava como se fosse um garoto pobre de rua vendo um lindo brinquedo numa vitrine, sabendo que nunca iria tê-la. Mas, mesmo assim, traçava as minhas memórias futuras.

Deu outro sorriso. Foi à frente do computador e, após procurar, começou a ler:

Que ao entrar o outono

Estejamos juntos,

Sejamos amigos embarcando

No barco dos amantes,

Navegando nas entrelinhas

De nossas inevitáveis ilusões.

E que possamos assistir

Ao brotar de muitas quimeras

No amadurecer de cada fruta!

No inverno, fecharemos as janelas

Debaixo de cobertores,

Assistindo a filmes no vídeo,

Tomando chocolate-quente

No riso e no carinho afetivo

Do aconchego de um lar materno!

Nós, inocentes crianças,

Sairemos pelas ruas

(com pesadas roupas e de mãos dadas),

Observando o clima romântico do frio,

O parecer de uma civilização

Nos passos acelerados das pessoas.

Depois, jantaremos

Num restaurante com forno à lenha,

Num papo descontraído em sorrisos.

Regando os lábios com vinho doce,

Ouviremos música clássica,

Dançaremos de rostos colados.

Seremos sonho, seremos realidade...

E não importa se depois,

No florescer da primavera,

Haja uma despedida,

Ficando todos os nossos momentos

Em saudosos poemas.

Em meio a tudo isso, ele, sozinho, conclui:

– É, às vezes, vale mais um momento de ilusão do que uma vida toda de realidade. Bom, eu tinha de resolver aquele meu problema de complexo de inferioridade, mas a única forma que achei para isso foi me afastar completamente dela. E foi justamente o que fiz durante um ano. Contudo, num mundo onde até as pedras se encontram, revê-la foi inevitável.

Saiu do computador, pegou outra peça de roupa para vestir e prosseguiu:

– Estava bonita como nunca. O charme da moça fina, delicada e, por incrível que pareça, ainda sozinha. Meu Deus, como eu amava aquela mulher. Eu precisava dizer isso à ela. Até tentei uma primeira aproximação ao presenteá-la como amigo no dia dos namorados. Está certo, era um livro de antropologia, mas acredito que, quando queremos dividir com alguém alguma coisa que gostamos, isso, sim, pode ser considerada uma prova de amor! – Dá uma pequena pausa pensativa. – Dias após, comecei a escrever uma carta que começava com a seguinte poesia:

Preparo uma carta de amor

Como quem prepara um testamento,

Prestes a se atirar de um abismo,

Confiante no paraquedas dos sentimentos!


Como quem caminha em longínquos campos,

Sendo que há uma rosa tão próxima de ti

Para ser colhida.


Como quem sonha e, acordando,

Prepara-se para entregar-se

Em tuas mãos!

– Mas não. Uma carta de amor não seria uma coisa digna daquela moça. Ela merecia muito mais! – Suspira. - Então, tomei coragem e, com a força de Deus, a convidei para jantar. Qual não foi a minha surpresa quando ela aceitou de imediato. Eu me preparei todo. Tinha tudo para ser uma noite inesquecível. E foi. Ela veio numa simplicidade, já começando a destruir toda aquela imagem de madame que eu fazia dela. Começamos com assuntos variados. Não sabia como começar a me declarar. Então, resolvi falar que eu estava gostando muito de uma pessoa, fiz muitos elogios e, por fim, falei: Essa pessoa é você! Lembro-me que ela tomou um choque tão grande e me olhou com uma profunda ternura. Continuei a elogiá-la. Falei dos meus planos que eu tinha para nós dois e as conquistas que eu poderia ter, caso tivesse uma companheira como ela. Foi quando ela calmamente me perguntou...

Em novo tom de brincadeira, o rapaz afina a voz e diz:

– Você tem certeza do seu sentimento?

Volta à tonalidade de voz normal:

– Já pensou? Eu ali passando o maior medo para confessar o meu amor e ela ainda me pergunta isso! Porém, diante de sua pergunta, olhei no fundo de seu rosto. Eu tinha sido invadido por uma profunda confiança, que falei durante quase uma hora e meia sobre o meu sentimento. E ainda entreguei a ela todas as poesias que escrevi, tendo o cuidado de fazer a arte no computador e mandar encadernar. Ela ficou muda e me confessou não saber o que falar. A ternura do seu rosto e o seu afeto aumentava ainda mais. Tomei a iniciativa de propor que a partir daquele momento poderíamos apenas começar a sair juntos para irmos nos conhecendo melhor. Estava tão feliz, me sentia como alguém vivendo um momento poético. Embora ela afirmasse não ser exatamente o “mito” que eu imaginava, descobri naquela noite que, na realidade, ela era bem melhor!

E, feliz, recitou:

Minha paz repousa em tua alma,

Tranquilidade do sempre eu.

Teu sorriso transpira minha calma,

Fim da insana dor... Dor que já morreu.


Sorria serenamente para mim,

Que humildemente a ofereço uma flor

Colhida em longínquo jardim

Para alegrar um futuro amor.

O moço não se furtou às lembranças subsequentes e continuou:

– Quando nos despedimos na porta de minha casa, ela me agradeceu pelas poesias. Fui atrevido e disse que queria fazer ainda muitas outras. Só dependeria dela. Antes de acelerar o carro, ainda fui felicitado por seu olhar de ternura. Certamente naquele momento, ela pensou: “Isso só acontece comigo”.

Levantou-se da cama, pegou o violão e sentou-se novamente.

– Naquela época, tinha uma música que começava a fazer sucesso. Ela parecia realmente relatar a nossa história. Então, a escolhi como a nossa canção.

Em meio às lembranças, começou a tocar “À Primeira Vista”, de Chico Cézar.

– De fato, saímos algumas vezes para jantar ou almoçar. Claro, sempre por insistência minha. Também sempre era só eu quem falava nessas ocasiões. Nunca conseguia tirar nada dela, nada sobre o seu passado, os seus gostos ou planos. Ela apenas me olhava, chegando, às vezes, apoiar o queixo na mão como um antigo filósofo grego. Diante de seu olhar, chegava até a me sentir um de seus pacientes numa sessão de análise. Mas existia um lado positivo. Quando estávamos conversando, eu percebia que já não tínhamos mais aquela amizade informal. A minha confissão fez crescer mais a nossa relação e estávamos muito mais amigos e, às vezes, mais abertos um com o outro! Embora saindo apenas como bons amigos, eu me sentia tão feliz por poder estar desfrutando de sua companhia, vivendo praticamente os melhores dias de minha vida. Já tinha tanta certeza do nosso futuro, que fiz outro poema ao imaginar como seria a convivência de uma vida a dois.

Não que eu afirme que te amo

No sentido real do sentido,

Mas digo que te desejo,

Amiga, companheira, amante.


Por que não tentarmos

O que aí está para ser tentado?

Brincarmos de dois,

Transformando-nos em apenas um!

Caminhar abraçados,

Executando beijos reais.


Sentir ciúmes. Por que não?

O tolo sentimento de posse.


Vamos coabitar... Por que não?

Brincaremos de um homem e uma mulher,

Comunicando-nos entre olhares e gestos!

Dividiremos todas as nossas coisas:

Responsabilidade, afetos reservados

E o colo nos momentos poeticamente amargos.

Receberemos os nossos amigos, famílias

E as sem graças piadas de seu pai.

Iremos juntos ao supermercado,

Vamos comer nossos pratos preferidos,

Dividir as tarefas, alegrias, frustrações,

Os programas na televisão, os CDs

E a cama (principalmente!).


Não me importarei se bagunçares o meu jornal,

Porém, saibas que mexerei no controle-remoto

Quando estiveres assistindo a novelas.

Às vezes, só para ver você zangada,

Ficarei até tarde no boteco com os meus amigos!

E, ao chegar a casa, saberei que

O velho sofá estará a minha espera!


E com o tempo, quem sabe,

Poderemos ter uma conta conjunta no banco.

Está vendo? Temos tudo para dar certo.

E se o amor um dia chegar,

Ele será apenas um detalhe!

As recordações não cessam:

– Mas minha alegria durou pouco. De repente, sem mais nem menos, ela não quis sair mais comigo. Sempre tinha uma desculpa. Aliás, ela sempre foi uma grande especialista em criar desculpas. Nunca vi ninguém igual. Eu mandava poemas, cartas, cartões, telemensagens, flores... Nunca fiz nenhuma cobrança a ela, limitando-me apenas a demonstrar a sinceridade de meus sentimentos e planos. Mas não havia qualquer manifestação de sua parte. Diante desse silêncio, não me sentia no direito de ir procurá-la, embora nunca tenha me negado o direito de enviar todas essas coisas, pois não vejo nada de mais alguém manifestar o seu amor por outra pessoa. Apesar de escondida, eu tinha certeza que no fundo de seu ego, ela estava gostando de saber que era amada. Qual a mulher que não gosta de ser desejada com respeito e ainda mais receber longas cartas de amor, flores e poesias?

Deu um suspiro e começou a colocar outras peças de roupa.

– Foram quase oito meses sem qualquer sinal dela. Era estranho todo aquele silêncio. Eu continuava a manifestar os meus sentimentos. Foi num desses momentos, relembrando aquela pergunta sobre a certeza de meu sentimento, que fiz outro poema. Acho até que ele deve estar por aqui...

Foi até a gaveta da penteadeira, abriu, pegou uma folha de papel onde estava o poema e começou a ler:

Tenho tanta certeza de meu sentimento

Que de tanta certeza, tenho medo!

Temo as horas que longe estás.

Alegro-me quando a telefono,

Mesmo sem ter nada a dizer.

Perco-me nas poesias que não consigo escrever,

Mas me encontro em cada música que ouço.

Não me importa esperar uma vaga em tua agenda,

Apoiando-me nas poucas horas que

Desfruto de tua companhia

E nas coisas que só consigo dizer para você.

Na vontade de afagar o teu cabelo,

Acariciar a tua face,

Poder ter a tua confiança,

Ouvir o teu desabafo e, depois,

Oferecer o meu ombro para repousares.

Repartir contigo o mesmo copo de vinho

Ou simplesmente olhar dentro de teus olhos

Com tantas coisas a se falar,

Inclusive, nada.

Tenho tanta certeza de meu sentimento

Que de tanta certeza, tenho medo!

Porém, de tanta certeza,

É que peço para que não sejas

A minha primeira namorada,

Mas, sim, a última.

Entusiasmado, prosseguiu recordando-se:

– Gostei tanto dessa poesia, que mandei fazer um quadro e enviei para ela no dia de seu aniversário. Sim, como dizia a poesia, ela seria minha primeira namorada. Até aquele momento, eu ainda não havia tocado em mulher nenhuma e nunca beijado ninguém – alegra-se –, mas só o fato de pensar que ela poderia ser a primeira, deixava-me feliz. Ela, pelo seu comportamento, já demonstrava não ser qualquer uma. Era alguém muito especial, realmente preparada por Deus. Minha fé dizia isso! Não me importava de esperar o tempo que precisasse. Estava tão animado pelo simples fato de saber que no mundo havia uma pessoa como ela, que isso me incentivava a lutar e a acreditar em meus projetos e em mim mesmo. Afinal, precisava ser alguém digno de tê-la ao meu lado. Só Deus sabe o quanto eu estava lutando e mudando a minha vida para um dia ser digno de tê-la comigo. Deus sempre foi meu grande amigo que desde o começo segurou a minha mão, guiando-me pelos caminhos certos da vida. Foi Ele que desde o começo encheu o meu coração de esperanças e alegrias futuras. Mas apesar de eu ter as minhas vontades e sonhos próprios, sempre disse-lhe: “Senhor, sobretudo, seja feita a tua vontade!”. E assim espero e hoje acredito que não os meus, mas os planos do Mestre sejam todos cumpridos em minha existência.

Ficou algum tempo em silêncio pensando. Arrumou a camisa.

– Aquele silêncio continuava estranho. Apesar de eu manter sempre o otimismo, havia os momentos de fraqueza – fica manso e melancólico –, principalmente nos finais de tarde, momentos de solidão, nos quais, dentro de minhas ilusões, desejava tanto encontrá-la e, no entanto, estava só. Esses sentimentos aumentavam ainda mais nas tardes de sextas-feiras, pois seria mais um fim de semana sozinho! Eu sentia muito a sua falta e via crescer cada vez mais o desejo de, pessoalmente, contar a ela tudo de bom que estava acontecendo comigo. Porém, vencidos alguns momentos de solidão, não me cansava de esperar o momento certo. Ela havia se tornado um grande quebra-cabeça em minha vida. Cada peça montada me dava a certeza e me alegrava em saber que, finalmente, estava gostando da pessoa certa, ou melhor, o que sentia por ela jamais senti por ninguém, pois, ao mesmo tempo que era um amor distante, era paz e esperança. De minha parte, sempre me questionava se estava conseguindo transmitir isso e se, de alguma forma, também estava fazendo bem à ela. Certa vez, tentando reanimá-la, eu até citei um pensamento de Érico Veríssimo: “Felicidade é a certeza que a nossa vida não está passando inutilmente”!

É na ausência que se resolvem os sentimentos.

Na vontade de telefonar, não ligando,

Na vontade de gritar, ficando mudo,

Na vontade de ir, ficando,

Na vontade de achar, preferindo perder,

Na vontade de perder para ganhar,

Na vontade de perguntar, não querendo saber,

No sentimento de posse sem ter.

E nas tantas coisas que desejamos dizer,

Mesmo sabendo que na presença

Nunca serão ditas!

Sentou-se na cama e pensou por alguns instantes. Pegou o violão e tocou um trecho da música “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Voltou a falar consigo.

– Como era complicado entender o que se passava na cabeça dela... – Reanima-se. – Ela não manifestava, mas estava gostando. Eu tinha certeza disso, pois uma pessoa que recebe uma declaração de amor sabe que, se ela não disser nem sim nem não, a outra continuará mantendo e aumentando as suas esperanças, o que, consequentemente, estará sustentando o seu sentimento. E ela, como psicóloga, sabia disso melhor do que ninguém...

Dá uma pequena risada e se mantém em meio às suas mais lindas recordações:

– Lembro-me que eu tinha um amigo que dizia que cabeça de mulher é igual à bolsa que ela carrega: a gente nunca sabe o que tem dentro. Acho que o romance de Romeu e Julieta deu certo porque ela não era psicóloga!

Volta ao total otimismo:

– No fundo, eu sabia que valeria a pena esperar.

Levantou-se e caminhou um pouco pelo quarto:

– Devagar, eu fui descobrindo a pessoa tão especial que existia dentro dela. Através de conversas informais com algumas amigas em comum, elas começaram a me contar coisas maravilhosas a seu respeito, que encheram de felicidade o meu coração. Foi quando descobri que ela era uma “criança” que, devido a acontecimentos tristes do passado, temia o presente e o futuro. É o que a psicologia chama de estado de luto. Mas isso só o tempo poderia cicatrizar. Foi quando comecei a lutar para ela entender que nem todo mundo era igual. Ela iria compreender um dia que havia alguém que, pela misericórdia de Deus, estava se preparando cada vez mais para saber reconhecer a pessoa maravilhosa que existia dentro daquela “criança”, honrá-la, respeitá-la e ser somente seu... O tempo passou naquele silêncio.

O jovem romântico, em tom irônico diz:

– Ô, mulher difícil! – Uma risadinha. – Enquanto o tempo passava, eu me pegava com fé e coragem em minha profissão e objetivos, sempre em busca de um futuro melhor para nós dois. Até que, certo dia, estava trabalhando no computador em meu setor quando ela entrou de repente. Foi uma surpresa ao nos olharmos. Nós dois ficamos sem jeito, mas nos limitamos a apenas um rápido “como vai?”. Ela me sorriu e, após rápidas palavras, perguntou por minha supervisora, virou-se a começou a caminhar para ir embora. Abaixei a cabeça e iria começar a chorar quando ela voltou repentinamente e me disse com ternura... – Afina a voz. – Olha, não tenho nenhum compromisso para esta noite. Se você quiser, podemos jantar.

Um sorriso de contentamento, o jovem volta a sua voz ao normal.

– Porém, a minha surpresa estava apenas começando. Naquela noite, ela confessou ter descoberto que me amava. Foi uma coisa tão forte que começamos a chorar abraçados. E, naquele clima de fascinação, demos o primeiro beijo. Sim, eu estava vivendo a emoção de meu primeiro beijo. O primeiro toque, as primeiras carícias, o primeiro afago em seu cabelo e o primeiro êxtase de ser amado!

Sorrindo, recitou:

Vou te encontrar em mais um soneto

E nele perpetuar-te para a posteridade.

Fazer do desencontro um encontro,

Repousar em ti a minha ansiedade.

Quero ser único... Único em tua vida.

Chamar-te de minha... Sendo só eu.

Ao teu ouvido, falar poemas de momento

Jamais publicados... Tão somente teus!

– Nossa relação foi ao mesmo tempo linda e fulminante. Parecíamos dois adolescentes querendo ficar um ao lado do outro todo o tempo. Começamos a descobrir uma série de afinidades e um grande universo foi sendo aberto. Em poucos dias, tínhamos tanta certeza que fomos escolhidos por Deus para sermos companheiros, que resolvemos não perder tempo para nos casar. Eu sei, pode até parecer loucura nossa. Mal começamos a nos conhecer e já decidimos frequentar o altar do matrimônio. Mas nem tudo precisa ser como sempre foi. Às vezes, é necessário que dois malucos quebrem o que reza a tradição, como é o caso dos longos namoros. Em pouco tempo, em seu olhar, fui entendendo muitas coisas de meu passado, além de compreender que o amor e as relações precisam ser constantemente repensados.

E, olhando-se no espelho, recitou:

Tu és o futuro explicando águas passadas,

O nada simplesmente tornando-se tudo,

A razão, a calma, as palavras dos momentos mudos.

É a certeza, mesmo quando oculta, calada.


Não... Não temas o que haverá de acontecer.

O destino já escreveu a nossa história.

A nós já está reservada a Glória.

Resta-nos tão somente a alegria de viver!


Presente inesperado que amiúde recebo.

Tu, que serás a minha eterna companheira,

Cuja felicidade, vagarosamente, já bebo.


Bebo-te enquanto uma brasa queima à lareira

Na tranquilidade de um ser poeticamente soberbo,

Festejando a chegada de ti... A primeira e derradeira!

– A nossa convivência irá realmente começar agora como marido e mulher. A cada toque, a cada momento de alegria, a cada decepção, a cada briga, a cada reconciliação e a cada amanhecer juntos!

Arruma as últimas peças de roupas e suspira:

– Enfim, o dia de meu casamento. Sinto muito que alguns amigos de minha infância e adolescência não poderão estar presentes, mas não faz mal. Agora, a minha grande amiga será ela, a minha esposa! A leoa que me ajudará a comemorar os momentos de vitórias, mas também a que levantará a minha cabeça e me incentivará nas horas difíceis. E, quando ela precisar, serei o seu leão! Sim, as dificuldades sempre surgirão, porém o nosso amor maduro fará enfrentarmos e vencermos a todos.

Dá o nó na gravata:

– Engraçado como é a vida... Quando pequenos, a companhia de nossos pais é tudo. Mais tarde, os amigos e o pessoal da escola e da farra preenchem o nosso vazio. Até que chega o momento em que precisamos de outro tipo de afeto. Outro tipo de intimidade e companheirismo, o que conquistaremos através do casamento. Será o que começaremos hoje, eu serei a cabeça e ela o corpo de nossa família, dois corpos unidos em um só.

Não importa o sentimento, criança,

Se a soma final sempre é o amor.

Vento, menino, sopra, canta e dança

No ventre da noite... No calor!

Em ti, a inauguração de poesias,

Mitos, receios, preconceitos, tabus quebrados.

Bocage moderno, sonetos sem elegias.

No orgasmo, dois sonhos realizados.

Na alcova, dois corações solitários,

Rezando em cada um nossos rosários,

Resumo na união de nossas bocas.

Nos jardins públicos, inúmeras flores,

Sepulcros de tantos ex-amores

Levados por ingênuas fadas loucas.

As lembranças não cessam:

– Viveremos um tempo só para nós, pelo menos até que venham os nossos filhos. Outros tipos de sentimentos e outras necessidades surgirão. Por eles, também haverá momentos alegres, momentos de preocupações e de tanta coisa para ensiná-los. E, juntos, iremos assistir a ano a ano nossas crianças crescerem e se desenvolverem. Até que, um dia, cada um criará asas e seguirá o seu caminho.

Coloca o paletó:

– E, então, eu com minha psicóloga, novamente a sós, perguntarei – faz um tom melancólico. – “Será que nós fomos felizes?”. E, certamente, ela me abraçará e me responderá – com ternura, – “Não, meu velho, nós ainda somos felizes!”.

Começou a caminhar e saiu de seu quarto rumo ao cartório.

FIM

NOTA: Adaptado agora como novela, este texto foi uma peça teatral inédita escrita por Emílio Figueira, publicada em seu livro “Nostalgia do Futuro e outros contos” em 1998.


Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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