1 - DOS “CAMPOS DE REABILITAÇÃO” À LIBERDADE INCLUSIVA GUARAÇAIENSE

MEUS PRIMEIROS ANOS PAULISTANOS

Quando minha mãe engravidou, tinha tudo para ser uma gravidez feliz. E foi! Eu era o primeiro filho, primeiro neto, primeiro sobrinho. Por conta disso, meus pais queriam o melhor. Contrataram uma médica particular para acompanhar todo o pré-natal, fazer o parto. Na manhã do dia 09 de setembro de 1969 minha mãe começou a sentir as contrações, sendo levada ao hospital São Lucas no bairro da Liberdade aqui em São Paulo.

Como ela era paciente particular nem um médico quis fazer o parto. A médica contratada estava em um congresso fora da cidade. Minha mãe ficou quase doze horas sentindo dores e contrações sem atendimento ou assistência. Até que naquela noite um médico resolveu fazer o parto que complicou muito e eu fui retirado à forceps, roxo e não chorei. Fui levado ao balão de oxigénio considerado praticamente morto. Após cinco horas comecei a dar sinais de vida.

Essa falta de oxigenação no cérebro durante o parto, causou-me paralisia cerebral, comprometendo a fala e movimentos. Mas a estimulação precoce fez toda a diferença...

Com um ano de idade começaram meus tratamentos. Primeiro foi no Centro de Reabilitação do Sesi-Ipiranga. Depois em paralelo comecei a ser atendido na Associação de Assistência à Criança Deficiente – AACD no Ibirapuera. Foram anos de muito sacrifício para toda a família. Eu era levado de ônibus no colo da minha mãe ou de sua prima Iracema, já falecida, a quem eu chamava de tia. Elas me levavam de manhã e iam buscar à tarde, tomando até nove ônibus por dia. Minha mãe Ivone foi realmente uma heroína, que não media esforços pela reabilitação de seu filho!

Vivíamos uma época que os estudos e técnicas de tratamentos ainda engatinhavam. Por quase cinco anos usei aparelhos em quase todo o corpo para ele endurecer – o que muitos especialistas de hoje dizem que não era necessário. Fiz parte de muitos outros experimentos e pesquisas no início dos anos 1970. Recentemente comentei com um amigo fisioterapeuta sobre muitos equipamentos e aparelhos que eu usava em minha reabilitação. Fiquei surpreso quando ele me disse que a maioria deles foram abolidos, pois a fisioterapia moderna entende que não eram eficazes. Mas para mim, tudo aquilo foi fundamental para o desenvolvimento e aperfeiçoamento das ciências que envolvem o processo de reabilitação. E, de certo modo, mesmo de forma modesta, dei uma pequena contribuição para isso, sendo “objeto” de alguns experimentos.

Por outro lado, muitas adaptações foram importantes. Na hora das refeições eu usava uma prancha presa à mesa onde tinha o encaixe do prato, do copo e da tigela de sobremesa. Minha colher era com um cabo grosso de madeira e torta, pois eu ainda não fazia a curva com o braço para chegar à boca. O lápis era engrossado com espumas e eu usava uma pulseira de meio quilo de chumbo no pulso, visando diminuir a frequência dos movimentos involuntários e conseguir rabiscar, pintar o papel. Por muito tempo usei pesadas botas ortopédicas, fora os inúmeros outros recursos que já fugiram de minha memória. E assim minha vida foi sempre de adaptações que permitiram cada vez mais a minha autonomia...

Nessa época conheci uma colega chamada Deise que só tinha o braço esquerdo levemente mais curto que o outro, mas já era o suficiente para ela não poder estudar em uma escola normal. Éramos uns dos poucos alunos que andavam na AACD. Por conta disso, aprontávamos demais, vivíamos na diretoria.

Lembro-me que quando fui efetivado como aluno da AACD Central (como sempre chamei a unidade do Ibirapuera!), no dia em que fui com minha mãe fazer a documentação, lá no salão principal de festas um grupo no palco vestido de papel prata e capacete dançava aquela música “Tomo banho de Lua...”. O local estava lotado, era a festa de final de ano. Minha mãe e eu ficamos bem no fundo e na nossa frente havia um cinegrafista com uma câmera de televisão. Logo mais à noite, vi a cena da dança no “Jornal Nacional”.

Nos anos 1970 o frio era muito intenso, cinzento e durava exatamente três meses. Levantava-me muito cedo, tinha que colocar muita roupa, indo com meu pai José Carlos no fusquinha cor café-com-leite. Todos os dias passava pelo “Monumento às Bandeiras” (o popular “Deixa que eu empurro”) de Vitor Brecheret, no Ibirapuera, e me admirava por ele. Meu pai me deixava à portaria da AACD antes das sete horas da manhã e eu esperava dar o momento de entrar. Ali via muitos funcionários bater o ponto, inclusive minha primeira professora que se chamava Therezinha. Quando as peruas kombis começavam a chegar, os porteiros me liberavam e eu ia ajudar a pegar as cadeiras e carrinhos de rodas, andadores para os motoristas retirar o pessoal das conduções e levava os colegas para suas classes.

Não me lembro exatamente do que estudávamos em sala de aula, mas eram as séries iniciais, embora eu já viesse alfabetizado de casa. Um fato marcante era que muitos dos meus amigos moravam ali mesmo no terceiro andar da AACD por serem oriundos das regiões norte, nordeste do país, pessoas muitos pobres que passavam o ano todo dentro da instituição, muitos sem qualquer contato com suas famílias. Hoje me pergunto o que deve ter acontecido com as vidas deles? Acho que muitos voltaram para a realidade de suas regiões sem qualquer recurso financeiro ou estrutural e acabaram em nada, passando os dias dentro de suas residências. Alguns já devem ter falecidos.

Nos dois primeiros anos, a instituição era administrada por freiras e elas viviam entre a gente naquela velha e cultural política assistencialista. Eram bem bravas e rigorosas. Depois não me lembro do motivo, as irmãs deixaram a AACD que passou a ter outro tipo de administração.

No ano de 1976 ensaiávamos uma grande festa junina que tomaria toda a área externa com barracas e uma quadrilha que pegaria toda a quadra. Na manhã do dia 06 de junho, quando chegamos à portaria, fomos surpreendidos pela notícia de que o Dr. Renato Bonfim, idealizador e fundador da AACD, havia falecido e todas as atividades seriam suspensas por três dias. Meu pai teve que me levar de volta para casa. E toda aquela festividade foi cancelada naquele ano. O falecimento do Dr. Bonfim marcou-me como a primeira vez que ouvi falar de morte de alguém que conheci pessoalmente.

Voltando à rotina da AACD, perto do meio-dia éramos liberados para o almoço. Subíamos a rampa larga e extensa de mármore branco. Após o grande salão de mármore onde havia um lindo aquário de peixes, entrávamos no refeitório (o mesmo salão principal de festas) para almoçar. Depois o tempo era livre até às 14 horas no pátio aberto do piso de baixo. Era um enorme gramado. À direita tinha uma piscina cercada, uma quadra de cimento; à esquerda, os brinquedos, lá no fundo uma casinha de madeira onde os jardineiros guardavam as ferramentas. Toda essa área era cercada de uma grande grade xadrez verde, árvores e plantas. Por elas víamos as pessoas na rua, os carros em movimento, a vida acontecendo do lado de fora. Lembro-me de muitas pessoas olhando para dentro, observando-nos com curiosidade, espanto e piedade.

Após às 14 horas, começava outra maratona. Éramos encaminhados às terapias ocupacionais, fonoaudióloga, fisioterapia, atendimento psicológico, avaliações médicas, tudo novamente no segundo piso. Ou encaminhados às salas de atividades artísticas, pintávamos, desenhávamos, recortes e colagens, enrolar bolinhas de papel, atividades com jornais e madeiras, crochê e tricô, tudo visando o nosso desenvolvimento psicomotor. Tínhamos aulas de culinárias. 

Teve uma época em que fui encaminhado à natação duas vezes por semana. Descia mais uma rampa para o subsolo onde estavam as oficinas de aparelhos ortopédicos e, após contorná-la, chegava à piscina aquecida e me trocava no vestiário. Dentre outros treinamentos, lembro-me do professor tentando me ensinar a mergulhar. Houve uma vez que ele estava atendendo um menino dentro da água e eu ao seu lado segurando na barra e fazendo batimento de perna, escapei e me afoguei por tempo até que ele percebeu e me pegou. Acho que por isso tenho medo e não aprendi a nadar até hoje. Mas no dia 09 de dezembro de 1977, participei de uma gincana nessa piscina e recebi um “Diploma de Natação”, o qual guardo até hoje com carinho como o meu primeiro certificado conquistado. 

Todas as terapias e demais afazeres tinham por objetivo nos tornar os mais independentes possíveis nas atividades da vida diária. E com muito bom humor e carinho, recentemente recordando dessa época com a Deise, disse que aquilo era um “Campo de Reabilitação”...

No final do dia, após quase dez horas na instituição, estudando, fazendo terapias, almoços coletivos no refeitório, horas de lazer na área externa e muitas atividades, peruas kombis beges com logotipo da AACD, inconfundíveis na época nas ruas paulistanas, partiam cheias para entregar cada um em seus respectivos lares. Às vezes, eu permanecia até duas horas balançando no trajeto. Mal chegava em casa por volta das 19 horas, jantava e já ia dormir para no outro dia, 5:30 horas da manhã, levantar-me e ir com meu pai, que, no velho fusquinha, deixava-me na instituição antes de ir para o seu trabalho. Rotina de quase sete anos!

Certa vez fui transferido para a unidade que a AACD mantinha dentro de uma escola estadual na Mooca. Estudávamos nas classes especiais, mas na entrada e no recreio nos misturávamos aos demais alunos. Lembro que estudava no período da tarde. Não sei o motivo, mas após um ano voltei transferido novamente para a Central. Até que em 1978, fui para a unidade AACD-Santana juntamente com a Deise.

AACD SANTANA: O EMBRIÃO DO “EU-PSICÓLOGO”!

Depois do banho, colocar o uniforme e almoçar, minha mãe preparava minha lancheira com pão de forma com frios, uma garrafinha com suco ou guaraná. Descíamos à portaria do prédio para esperar a perua bege e com o logotipo vermelho da AACD. Depois de embarcar, rodava por um bom tempo por outros bairros pegando meus colegas. Haviam motoristas muitos bons que batiam papos, colocavam músicas, mas também haviam os carrancudos, mal-humorados que nem permitiam que conversávamos.

Ao chegar à AACD-Santanta, a perua entrava pelo corredor estreito até o pátio central. Lá éramos retirados pelas atendentes das conduções, quem usava cadeiras ou carrinhos de madeiras com rodas ia direto para cada sala. A gente que andava como a Deise, Sérginho, Márcia e eu, ajudava a empurrar os colegas. Ao entrarmos pela porta de vidro, à direita nos dirigíamos à secretaria, salas de aulas e terapias, enfim, a ala em que ficávamos; à esquerda havia os banheiros, mais pra frente o refeitório que nunca frequentávamos e um enorme salão com palco onde lembro que no começo era uma oficina profissionalizante, depois foi desativada. Bem em frente dessa porta de vidro havia outra com um corredor sem cobertura que, contornando o lado esquerdo do prédio, dava para um enorme pátio aberto e gramado paralelo ao salão da oficina profissionalizante. 

Essa unidade era anexa ao colégio estadual “Buenos Aires”, mas totalmente isolada por um alto muro e portão de ferro. Não tínhamos nem um contato com os demais alunos. O isolamento era total. Lembro-me uma das raras vezes que esse portão foi aberto e fomos participar de um evento deles, ficávamos em um canto separados e vigiados – diferente do colégio da Mooca. Ou quando eles vinham em algumas de nossas festividades também não havia um contato direto. 

(Interessante que após muitos anos, na década 1990, fui visitar a AACD-Santana e no lugar do portão de ferro havia uma enorme rampa e a unidade e o colégio estavam completamente integrados).

Estava iniciando o ano de 1978. Minha primeira professora nessa unidade foi tia Beatriz. Uma classe mista com colegas com os mais variados tipos de deficiências físicas, amputados com próteses, usuários de cadeiras de rodas, muletas, bengalas canadenses, paralisados cerebrais, dentre outros. O ensino era individualizado, pois a professora trabalhava e ensinava conforme a capacidade e desenvolvimento pessoal. Serginho, um menino com paralisia cerebral, tornou-se o meu grande e melhor amigo. Estávamos no mesmo nível (para não dizer série!). Estudávamos em uma cartilha chamada “Davi”, muitos textos e primeiras noções e regras de Língua Portuguesa. Muitas cópias de textos e ditados feitos pela tia Beatriz – os quais me apavoravam pelo medo de errar. Lembro que devido a minha deficiência, eu trocava muito o “f” por “v”, “p” por “b”, “t” por “d” dentre outros errinhos sem perceber. Foram muitos anos para corrigir isso, embora algumas vezes ainda cometo essas trocas sem perceber.

Além do Português e redação, tínhamos muitas aulas de contas, pintura com tinta, desenho com lápis coloridos, giz de cera, enfim, muitas atividades artísticas. Fora os cadernos quadriculados com muitos desenhos geométricos para treinarmos a coordenação motora. Em todas as datas comemorativas desenvolvíamos atividades como estimulação física e intelectual. Uma das comemorações que me marcou muito foi na festa junina de 1980. Dramatizamos aquela música “Com a filha de João, Antônio queria se casar...”. A apresentação foi no palco da antiga oficina profissionalizante aberta a toda família e comunidade. Eu fiz o papel do padre com uma longa batina preta, um chapéu redondo e um bigodinho a carvão; Márcia, uma grande amiga da época, foi a noiva; José Carlos, um colega bem peralta e bagunceiro, foi o noivo e o Serginho o xerife. Não me lembro de qual foi o papel da Deise.

Alguns fatos importantes marcaram os dois anos que estudei com a tia Beatriz. Ela era uma mulher muito espiritualizada. Falava muito de anjos, espíritos, comunicação metafísica. Posso dizer que foi com ela que comecei a perceber a existência além da matéria, digamos a iniciação de minha espiritualidade. Como uma mulher de cabeça aberta, resolveu nos dar aulas de sexualidade. Mandou bilhetes aos pais e todos autorizaram. A partir daí com figuras ilustrativas nos ensinou sobre a reprodução humana, fecundação e gestação dentre outros detalhes. 

Tia Beatriz conversava muito conosco sobre os mais variados assuntos. Certa vez, ela falou muito sobre a morte, dirigindo-se muito a mim. Naquela semana outras pessoas da minha família também tocaram muito nesse assunto. Até que no domingo, logo após o almoço, meu pai me levou para o seu quarto, sentamo-nos na cama e com muito jeito me contou que um ex-vizinho nosso que eu chamava de avô Antônio havia falecido em Americana. Houve uma preocupação muito grande por parte de todos em me preparar para essa notícia. Talvez seja por isto que trato o tema morte e aceito com tanta naturalidade até hoje! 

Na hora do lanche não saíamos da sala pela dificuldade de locomover tantas pessoas com cadeiras de rodas, aparelhos e outras complicações. Fazíamos nossas refeições ali mesmo nas carteiras. Além do que tínhamos as lancheiras. A escola fornecia uma merenda, dentre elas uma sopa que eu detestava. E sobre isso tenho uma história engraçada.

Em 11 de setembro de 1979, dois dias após o meu aniversário, minha mãe foi logo cedo para a maternidade. A tia Cleonice, irmã de meu pai, veio para casa ficar comigo com minha irmã Ana Paula. Arrumou-me e pôs na perua da AACD. Eu estava muito tenso, preocupado com minha mãe. Na hora do lanche, enquanto comia aquela sopa ruim, tia Beatriz foi até a secretaria, telefonou para minha casa e voltou com a notícia que a Ana Luiza havia nascido e estava tudo bem com ela e minha mãe. Pegou o meu prato de sopa, dizendo que eu não precisava comer mais. Minha irmãzinha me salvou da sopa. Anos mais tarde, fiquei sabendo que ela era para nascer no dia do meu aniversário e eu não quis. Hoje vejo que por um ato infantil, deixei de ter esse privilégio!

O final daquele ano ainda me reservava uma experiência. Era o segundo ano que eu estudava com a tia Beatriz e no próximo iria para uma sala mais adiantada. Ela resolveu me aplicar algumas provas de português, redação, ditados, várias continhas. Foram dois dias de testes e fui aprovado. No próximo ano eu seria aluno da tia Hideco. 

Essa professora era descendente de japoneses. Lembro-me que tínhamos um grande respeito por ela, talvez por também ser a diretora da escola. Era só mito, pois foi uma educadora fundamental para mim. E por que não dizer também para o futuro escritor? Com ela aprendi a conjugar verbos, regras de gramática, primeiros contatos com leituras e trabalhos de interpretação de livros, a resolver problemas matemáticos e contas mais avançadas, algarismo romano, geografia e história.

Sempre lhe mostrava meus escritos, poesias de um menino que começava a engatinhar nas letras. Ao voltar das férias, contava-lhe as minhas aventuras em Guaraçaí (cidade para onde meus avós maternos haviam se mudado) e escrevia muitas redações sobre isso.  Até que no ano de 1980 eu comecei a regredir. Passei por vários médicos, psicólogos e outros profissionais. Chegaram à conclusão que eu sentia muita falta das minhas vivências naquela cidade e principalmente do meu avô João, com quem eu era muito agarrado aqui em São Paulo. Em um consenso entre toda a família e os especialistas, decidiram que eu deveria ir morar com meus avós.

Fazendo uns parênteses, após muito tempo, em 2002, tive no apartamento da tia Beatriz aqui em São Paulo para uma visita e matar as saudades. Entre uma conversa e outra, quando lhe contei que cursaria Psicologia a partir do próximo ano, ela começou a lembrar de como eu era prestativo e estava sempre pronto para apoiar meus colegas. Foram inúmeras as vezes que, ao perceber que um amiguinho estava com problemas, chateado, eu o puxava para um canto da sala e conversava, aconselhava até ele ficar sorrindo de novo. Auxiliava tanto a professora, quanto os colegas. Esse meu perfil pude comprovar recentemente quando achei no meu antigo álbum de fotos da infância uma cartinha que certamente foi colada por minha mãe. 

Em um papel azul envelhecido pelo tempo, sua bela caligrafia em tinta esferográfica dizia: “12 de outubro de 1978. DIA DA CRIANÇA! Querido Emílio: Parabéns pelo dia de hoje! É o seu dia! Você é um menino bonito, educado, muito bom e inteligente. Seja sempre assim! Continue alegre e prestativo para com todos. É muito bom ser criança! Que Deus dê a você muita Saúde, Paz e Harmonia e Felicidade. Beijos Tia Beatriz”.

Eu tinha de sete para oito anos. Mas essas linhas já demonstravam traços de um comportamento que sempre adotei na minha conduta. Mais do que isto, já era indícios de um futuro Psicólogo!

PRIMEIROS ANOS MORANDO EM GUARAÇAÍ

Àquelas viagens de ônibus para Guaraçaí eram muito demoradas, a rodovia Marechal Rodon ainda não estava duplicada, levava uma noite inteira, 630 km de distância da capital paulista. Na manhãzinha do dia 15 de abril de 1981, uma sexta-feira, eu chegava com a avó Lourdes para morar e estudar na cidade. 

Fui matriculado no Grupo Escolar Estadual de Primeiro Grau “Valeriano Fonseca”. Como estava sendo transferido de uma Escola Especial (onde estava em um grau correspondente à quarta série) para uma escola regular, os especialistas decidiram me retroceder para a segunda série e ver se eu acompanhava a turma. Lembro-me que junto comigo foram documentos e uma carta da tia Hideco dirigida ao meu novo professor. Durante muitos anos tive curiosidade em saber o conteúdo dessa carta. Até que em maio de 2016, quando estava na cidade gravando o meu primeiro documentário, consegui uma cópia que vale a pena reproduzir:


São Paulo, 8 de abril de 1981.

Caro Professor Mário,

Antes de mais nada agradeço ao senhor, pelo fato de ter-se interessado e receber um aluno enquadrado como deficiente físico, mas sem comprometimento mental. 

Quero que saiba que não está sozinho neste trabalho, pois tudo que o senhor precisar quanto ao trabalho escolar específico, terá de minha parte pronto atendimento, seja para esclarecimento, seja para qualquer tipo de orientação para bom prosseguimento escolar do Emílio.

Esclareço que esta orientação poderá ser sob todos os aspectos tais como: pedagógico, psicológico, emocional ou físico.

Pensei muito em escrever mil facetas do Emílio, mas pensando bem, acho melhor não dizer nada, e deixar que o querido mestre sinta por si mesmo a criança maravilhosa que terá entre os muitos que já tem, para felicidade sua e muita saudade minha.

Peço que o senhor leia o relatório simplificado na folha anexa para ter um quadro descritivo das dificuldades decorrentes da paralisia que Emílio sofreu. Além das dificuldades, nada mais existe de tão complicado que um professor de ensino comum não possa resolver.

Sem mais, desejo toda felicidade do mundo e feliz início de trabalho com o meu querido Emílio.

Abraços, Hideco Watabe 


Na escola minha classe tinha de trinta e quatro alunos comigo. O professor Mário, conhecido na cidade como Maroca, também por ser farmacêutico na cidade e não tinha dificuldade com a minha caligrafia. Minha mesa era encostada na dele que sempre fixava minhas folhas de atividades com fitas colantes à carteira, dentre outras adaptações.

No primeiro recreio fiquei sentado em um banco perto da saída da Diretoria para comer minha merenda. Quase todos os alunos me observavam com curiosidade, uns disfarçadamente, outros diretamente mesmo. Com o tempo se tornaram meus amigos e muitos permanecem até hoje em minha vida.

Em oito anos morando em Guaraçaí, vivi na pele o que realmente é inclusão dentro e fora da escola. Eu participava de tudo, de brincadeiras, jogava bola, era sempre o café-com-leite. Sobia em árvores, nadava em córregos, pescava. Participava de todas as festividades, tinha uma bicicleta adaptada com quatro rodas, voava para todos os cantos. Nas tardes ia à piscina, nadava com um colete especial que ganhei de meus pais, com pranchas das aulas de natação. Usando esses equipamentos, foi quando me inspirei em 1984 para escrever o meu primeiro texto longo: “Nadar! Um direito dos deficientes”. Acho que foi nesse momento que começou a despertar a consciência para minha própria condição. (Assunto que irei me aprofundar no Terceiro Capítulo.)

Vejo que Deus me tirou de São Paulo e me levou àquela pequena cidade para eu poder viver inúmeras possibilidades, aventuras, formar minha personalidade. Sobretudo, Ele me permitiu em Guaraçaí conhecer na pele a verdadeira inclusão feita pelo amor e hoje ter muito o que contar!

Voltando ao meu parto, como disse certa vez uma psicóloga muito minha amiga, eu nasci vencendo a morte. Acredito que nasci já guerreando por um ideal: o de viver! E esse espírito guerreiro tem me acompanhado por toda a minha caminhada em todas as áreas. Sempre com muito otimismo e uma fé inabalável em Deus. Sempre digo com convicção que Ele já me deu muito mais do que uma pessoa na minha condição poderia alcançar. Porém, ao mesmo tempo, sei que Ele ainda tem muito mais coisas para realizar em minha vida do que posso imaginar. E faço desse otimismo o meu combustível para lutar. Claro, após o meu parto, por algumas vezes já passei perto da morte e ainda passarei por vários motivos e ocasiões. Tenho certeza absoluta que chegará o dia que serei definitivamente vencido por ela. E partirei com uma sensação de na minha pequena existência ter feito a diferença. Ou pelo menos, tentado...

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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