OS TIJOLOS DE CLÓVIS

DESENHO GEOMÉTRICO SEM TÍTULO - Emílio Figueira / Técnica guache sobre papel A3 - 2000

Começava a escurecer quando os rapazes sentaram-se à mesa na calçada do bar em frente ao depósito de materiais de construção. De lá, saiu um homem de bicicleta, enquanto outro fechava o depósito. Ao aproximar-se deles pedalando, um pergunta-lhe:

- Vai uma cerveja aí, Clóvis?

- Obrigado rapazes. Preciso ir para casa. Boa noite, até amanhã.

E lá foi ele, magro, sempre de botinas, com uma calça social mais velha para o trabalho, camisa abotoada até o colarinho com carteira, pente e chaveiro no bolso, barbeado, cabelo curto e óculos. Ao pedalar, o vento fresco lhe batia à face. Percorria as ruas já vazias daquela pequena cidade interiorana, onde todos se conheciam.

Quase na outra ponta da cidade, Clóvis chegou em frente de sua simples casa. Um terreno comprado em pequenas e muitas prestações naquele loteamento popular. Sua casa de quatro cômodos foi erguida com ajuda dos vizinhos e os materiais adquiridos em parcelas no próprio depósito onde ele trabalhava. A construção de sua casa ainda tinha muito por terminar.

Ao entrar, saudou sua esposa e os quatros filhos. Dois rapazes já no ensino médio, um no fundamental e sua caçula, estudante do quarto ano. Todos na escola pública que naquela cidade era a única.

Após tomar banho e jantar, trocou-se e foi com a família ao culto em uma pequena igreja ali mesmo em seu bairro. Ao terminar, a irmandade humilde saia rumo às suas casas para descansarem e reiniciar suas rotinas no dia seguinte. Clóvis parou um pouco perto do portão de saída para conversar com um irmão já de idade que confessou-lhe:

- Eu passei minha vida toda fabricando tijolos. Agora estou muito velho, cansado e Deus me deu a graça de me aposentar por tempo de serviço. Penso em vender minha máquina manual.

Clóvis empolgou-se, contando-lhe que tinha um dinheiro guardado, ajuntando para comprar um carro simples. Só que, diante daquela oportunidade, ele tinha interesse em comprar a máquina.

Como ficou combinado, na manhã do próximo sábado, Clóvis foi com seus filhos à casa do irmão conhecer a máquina e a produção de tijolos. Até treinaram por algumas horas. Ao final, confiante, ele adquiriu a máquina.

Ao lado de sua casa, havia um grande, velho e desativado galpão da antiga fábrica ex-dona do terreno que foi loteado. No domingo, Clóvis foi até o centro da cidade, parou em frente de uma grande casa e bateu palmas. Um senhor saiu para atendê-lo. Era o antigo dono da fábrica que, ao saber das intensões de Clóvis, percebendo sua vontade de crescer e empolgação, autorizou-lhe a usar o galpão por um ano.

Clóvis foi procurar outro irmão de sua igreja que tinha uma velha caminhonete. E com a ajuda de seus filhos, foram buscar a máquina de puro ferro e fizeram muita força para colocá-la em cima da carroceria. Levaram e a colocaram no antigo galpão.

No dia seguinte, após ajudar a descarregar mais um caminhão de material de construção em uma residência, Clóvis e seus colegas voltaram ao depósito. Ele notou o dono caminhando, observando as prateleiras de produtos. Um homem sempre de olhar empinado, nada simpático para com seus funcionários. 

Criou coragem e foi conta-lhe que comprou a máquina e pretendia começar a fabricar tijolos. O patrão, foi direto, dizendo-lhe:

- Ótimo, quero ser seu primeiro cliente, encomendando dois mil tijolos. E vou pagar adiantado e você assina um recibo.

Clóvis achou por bem aceitar o dinheiro para ter um capital para começar. Encomendou alguns caminhões de terra vermelha de boa qualidade que foram despejados lá no galpão. O cimento, ele adquiriu lá mesmo no depósito onde trabalhava.

A próxima sexta-feira foi feriado e o chefe resolveu emendar o sábado. Clóvis aproveitou com seus filhos para iniciar a produção. Fizeram um largo buraco no chão onde o barro seria amassado. Descalços e com as barras das calças dobradas, eles começaram a pisar a terra vermelha, molhando-a às vezes com o velho regador de plantas. O contato direto com a terra, fazia-lhe bem, a ter memórias emotivas das brincadeiras de infância. Lembrou-se também que foi do barro que Deus criou e deu vida ao homem.

Com o barro já no ponto, sem bolças de ar e com a porção certa de cimentos, eles começaram a levar o barro amassado à máquina. Um ia colocando a porção certa de um tijolo. O pai puxava a lavanca que o moldava na forma exata. E o outro retirava e colocava um a um em filas pelo chão para secar.

Sua esposa e os filhos mais novos vieram dar uma ajuda. Animados, encaravam aquilo como se fosse uma festa. Afinal, poderia significar uma melhora de vida à família. E os três dias foram suficientes para a produção dos dois mil tijolos.

Após o tempo de secagem e já empilhados, o dono do depósito veio ver. Com seu ar de arrogante, olhar superior, caminhou por alguns instantes, observando, pegando nas mãos, examinando vários. Até que quebrou o silêncio:

- Não gostei da qualidade. Pode fazer mais dois mil tijolos.

Clóvis acreditou que fora por falta de experiência que isso aconteceu. Puxou um bico de luz de sua casa para o galpão. Nos dias que não tinham cultos, ao sair do serviço no depósito, ele, com a ajuda da esposa, ficava umas duas horas fabricando tijolos. Seus filhos mais velhos tinham aulas noturnas e só podiam ajudar aos fins de semanas.

Mais dois mil tijolos foram confeccionados. O dono do depósito veio conferir fazendo o mesmo ritual de pouco caso:

- Também não gostei. Como já paguei, pode fazer de novo. Só que agora eu quero cinco mil unidades.

Por ter recebido antes, Clóvis sentiu-se em uma obrigação moral de honrar o compromisso. Procurou alguns de seus irmãos de igreja, conseguindo dinheiro emprestado para comprar mais caminhões de terras vermelhas e cimento. 

Nas próximas semanas, aquilo comprometeu toda a rotina de sua família, trabalhando um pouco no começo de noite durante a semana e aos sábados e domingos inteiros. Até que chegou o dia que seu chefe veio olhar o resultado, sendo direto:

- Péssima qualidade. Vou procurar meus direitos na justiça! – Exclamou, saindo pisando firme.

Realmente o patrão abriu o processo contra Clóvis. Só que como a cidade era pequena, uma comarca, o caso foi para o Fórum Judiciário do município vizinho. Algumas semanas passaram-se e o processo seria jugado na próxima segunda-feira. Clóvis teria direito a um defensor público, já que não tinha condições de pagar advogado.

No sábado à noite, ele foi ao culto com sua família. Na hora da Palavra, o pastor disse com convicção:

- Marcos, capítulo 9, versículo 23, diz, “ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem”. Diante disto, Deus manda-lhe dizer, você não irá perder sua causa. Antes de segunda-feira, Ele fará um movimento e você terá a vitória.

“Isso não foi comigo, meu julgamento já está em cima, não tem mais nada a fazer. O irmão, por conhecer minha causa, carinhoso, falou isso para me agradar”, pensou Clóvis em sua inocência.

No domingo, ele estava almoçando à mesa da cozinha macarrão, molho vermelho e frango assado com sua família. Bateram palmas e Clóvis foi atender. Havia um carro modelo do ano parado. Um moço de bermuda, camisa e tênis sem meias, acompanhava um senhor de social, camisa mangas curtas com os cabelos e uma barbicha brancos como neve.

- Eu e meu pai compramos um terreno aqui na cidade e vamos construir uma casa. Ficamos sabendo que o senhor fabrica tijolos e gostaríamos de saber se tem prontos para vender?

- Tem sim, nove mil aqui no barracão ao lado. Os senhores podem me acompanhar, por gentileza.

Pai e filho passaram um tempo examinando tudo. O moço lhe disse empolgado:

- Gostamos, vamos comprar todos. É só nos dizer o valor que pagamos e depois mando nossos funcionários buscarem com o caminhão.

Clóvis deu o valor. O senhor tirou do bolso o talão de cheques, preencheu, assinou, destacou a folha, entregando-a para ele que conferiu, dobrou-a, colocando no bolso da camisa. O rapaz questionou-lhe:

- Diga-me uma coisa. Esses tijolos são de tão boa qualidade. Nós vamos até encomendar mais e indicar aos amigos. O senhor não tem vendido sua produção?

- Sabe o que é moço... – E Clóvis lhe explicou tudo em sua simplicidade e inocência.

O senhor que nada dizia e tudo só observava, rompeu seu silêncio, recomendando-lhe:

- Então faça o seguinte. Hoje o senhor coloque a cabeça no travesseiro e durma tranquilo. Sinceramente, eu não conhecia esse lado da história. Sou justamente o juiz que amanhã no Fórum irá julgar sua causa.

FIM

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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