No dia seguinte, tudo voltou ao normal. Porém, ainda havia muitos comentários.
Estavam as moças numa rodinha, quando Vânia chegando, disse-lhes:
- Vamos parar de sonhar um pouco, meninas. Gostaria de saber qual de vocês poderia me ajudar na cozinha?
- Mas hoje não é o dia da nossa aula prática. - Lembrou Márcia.
- Eu sei, só que a nossa cozinheira faltou e alguém precisa me ajudar ou, do contrário, não teremos almoço hoje.
- Tudo bem, nós iremos todas com o maior prazer...
Em um Centro de Reabilitação, eles não aprendiam só o que ensinavam em uma escola normal. Havia aulas da vida diária, como vestir-se, higiene, todo o serviço doméstico, alimentar-se sozinho e outras coisas da vida cotidiana. Tudo ensinado na Terapia Ocupacional. Havia a Fonoaudiologia, trabalhando com a fala, dicção, sucção e todas as outras partes da comunicação. Os Centros ofereciam também a Fisioterapia, que trabalhava com o corpo, postura, andar e uso de aparelho ortopédicos. Além dos cursos profissionalizantes, aulas de artes e muito lazer.
Uma entidade bem preparada podia oferecer treinamentos físicos, psíquicos e profissionalizantes às pessoas com deficiência. Porém muitos ainda encontravam dificuldades para integrá-los social e profissionalmente. O meu convívio com essas pessoas levou-me a uma conclusão a esse respeito. Mas acho que ainda é cedo para dizer. Ainda há muitas coisas para acontecer com a minha turma neste relato.
* * *
Voltando às minhas memórias, José foi até a cozinha falar com Vânia, onde eu estava tomando um café.
- Já que hoje não haverá aula, posso dar uma saída para procurar um serviço?
- Você não prefere esperar a chamada daquelas firmas onde preencheu as fichas?
- Não, e se eles não me chamarem? É melhor eu continuar procurando.
- Tudo bem, pode ir, José. Boa sorte...
Segundo ele nos contou depois, começou a andar ali próximo ao Centro. Seu serviço não poderia ser muito longe, pois ele não aguentaria andar longas caminhadas todos os dias; além do mais, José não conhecia a cidade.
Após alguns minutos, parou em frente a uma loja, onde estava uma placa: PRECISA-SE DE BALCONISTA. José não teve dúvidas. Entrou e iniciou um diálogo com o gerente que recebeu-lhe simpaticamente.
- Pois não, garoto?
- A respeito da placa lá fora.
- Sim, o que tem ela?
- Gostaria de me candidatar à vaga.
- Desculpe, mas não podemos empregar meninos,
- Não, eu não sou um menino. - Afirmou José, mostrando-lhe os documentos.
Nesse momento, segundo ele, o gerente mudou a simpatia para um ar de sem jeito.
- Desculpe, meu jovem. A vaga já foi preenchida. Quem sabe numa outra oportunidade.
- Tudo bem, eu agradeço a atenção... - Disse José, saindo desanimado.
* * *
Nesse mesmo dia, no Centro, uma carta chegou endereçada à Tereza. Quando ela abriu, disse num sorriso de emoção:
- Gente, é um convite de outra escola. Eles querem nossa peça lá.
Todos se alegraram. Márcia perguntou:
- Nós iremos?
- Claro que sim. Vocês têm mais é que aproveitar essas oportunidades. - Disse Vânia, entrando na conversa. E as demais concordaram.
* * *
Na segunda-feira, Márcia tinha uma coisa para contar a Marcelo e a mim.
- Aquele rapaz foi em casa sábado me visitar.
- E como foi? - Eu quis saber.
- Eu estava em meu quarto, quando minha mãe entrou me dizendo que um rapaz estava na sala para falar comigo. Então perguntei a mim mesma: "E agora, como farei para disfarçar?" Fui até lá. Após os cumprimentos, perguntei o seu nome e ele respondeu-lhe: "Lott"! Começamos a tocar violão, algumas MPB, o romantismo, tomamos um café e ele me fez um convite.
- Está brincando!? Qual?
Marcelo e eu ficamos curiosos.
- O Lott faz parte de um grupo de jovens da igreja, que possui uma turma de músicos e querem que eu entre nessa turma. Sábado eles vão fazer um acampamento e me convidaram para ir junto.
- Legal, Márcia. Você vai? - Indagou Marcelo.
- Aí que começa o meu problema. Meus pais acham que não devo ir.
- Eles dizem que lá há muitos perigos e os deixariam preocupados. Afirmam também que é para minha própria segurança. Que em casa estaria mais protegida por eles. Tentei uma conversa aberta, mas vi que aquela superproteção não teria solução com um simples diálogo. Já no meu quarto, depois de muito pensar, tomei uma decisão.
- O que você está pensando em fazer? - Perguntei à Márcia que me respondeu decidida:
- Vou fugir de casa...
- Para onde você pretende ir? - Marcelo perguntou espantado.
- Não sei ainda. Será a única forma de sair dessa droga de superproteção.
- Tem certeza que esta será uma boa solução? - Eu quis saber.
- Acho que qualquer coisa será válida desde que eu consiga minha liberdade.
Nesse instante, Marcelo foi duro:
- Está vendo? Você acha... Isso significa que você não tem certeza. Poderia até pensar mais um pouco...
- Você quer dizer que estou me precipitando?
- Não é bem isto. Acredito que se deva tentar outras soluções antes de uma saída de casa. Seus pais dizem que isto é para o seu bem. Na opinião deles, estão agindo certo e com isso não enxergam que estão prejudicando-a. É preciso mostrar isso a eles. - Expliquei à Márcia.
- Mas como, Vítor?
Marcelo respondeu no meu lugar:
- Se você quiser, podemos ajudá-la a solucionar esse problema.
- Lógico que quero. É sempre bom poder contar e ter amigos como vocês.
E como sempre, mostrou-nos um lindo sorriso.
* * *
Mais tarde encontrei José no refeitório.
- Bom dia, José! E então, conseguiu alguma coisa?
- A respeito do quê, Vítor?
- Do serviço. Alguma novidade?
- Não. A coisa aí fora está muito difícil. Muita concorrência. Então resolvi dar um tempo.
Percebi um desânimo nele, pois sabia que aquele não era a realidade. Preferi não comentar e para animá-lo, disse-lhe:
- É quem sabe alguma firma onde você fez ficha o chame.
- Assim espero, Vítor. Tomara...