AS CARTAS DE ANINHA - Comunicando Nossos Desejos!

SINOPSE: Aninha, moradora de uma comunidade humilde, é uma menina de estatura pequena, tímida, que passa despercebida em sua escola e família. Ao descobrir o poder de se comunicar corretamente por cartas, expressando seus desejos e objetivos, começa a mudar sua realidade e a concretizar metas coletivas e de seu coração. Ao mesmo tempo, influencia sua única amiga, Verônica, que mesmo ainda muito nova, precisa se virar sozinha. Aproxima-se de um colega de sua classe, Henrique, um garoto agressivo, mas envolvido nas ideias da menina, encontra em Aninha o sentido de uma verdadeira amizade!

 

SENTADA NA ARQUIBANCADA

 

                Aula de educação física, uma partida de vôlei. Duas meninas tiram par ou ímpar e começam a escolher as colegas para seus times. E, mais uma vez, nenhuma escolhe a Aninha por ser muito baixinha.

                Olhando a partida, Aninha sentada na arquibancada, sente um pouco de tristeza no coração. Sua imaginação começa a voar e ela se vê ali entre as meninas, jogando, pontuando, divertindo-se.

                Seu devaneio é interrompido por uma de suas poucas amigas que lhe chama, Verônica, uma menina magra, rosto fino e cabelos lisos e cumpridos:

                - Vem Aninha, precisamos tomar a merenda.

                Saem caminhando pelo pátio. Aninha com seu jeito. Uma das mais baixas meninas de sua faixa etária na escola, Aninha, magra, têm seus cabelos negros e muito cheios para baixo dos ombros. Rostinho comprido e olhos castanhos e solitários. Muito tímida, fala baixo, sempre de cabeça baixa, postura curvada, evita contato visual. Isso a dificulta ter várias amizades. Não expõe sua opinião ou desejos, não permitindo que outra pessoa tenha consciência e saiba o que ela necessita, sonha e deseja. Com medo de se expressar, “engole sapo” e fica frustrada em silêncio.

                Chegando à cantina, elas veem quando Henrique, um menino de estatura forte, ruivo e sardento, dá um empurrão em outro menino e a inspetora de aluno corre para separá-los, levando-o para diretoria.

                É uma escola de periferia como centenas por aí. Com quase nenhum recurso e há anos precisando de uma reforma.

                - Pega a minha bandeja para mim – ordena Verônica: - Estou com preguiça hoje.

                É sempre assim. Aninha acata todas as ordens da colega e nunca abre a boca para dizer suas vontades, desejos...

                Terminado o intervalo, de volta à classe, Henrique se recusa a copiar um texto da lousa. A professora prefere não discutir com ele. Mesmo porque, na última hora daquela aula, terá uma festa de aniversário.

                Uma menina da turma trouxe um bolo, salgadinhos e refrigerantes. Estão todos alegres, comemorando. Mas mesmo disfarçando, há uma tristeza no olhar de Aninha. Dali há alguns meses, será o seu aniversário de dez anos. Ela nunca teve uma festa. E seu desejo é tanto que isso aconteça um dia... 

 

DE VOLTA PARA CASA

 

                Terminado mais um dia de aula, Aninha e Verônica caminham de volta para casa pelas ruas de terra batida. Um bairro bem de periferia, pessoas simples e humildes, onde as melhorias não chegam quase nunca.

                Aninha entra em casa, uma construção simples de tijolos ainda sem reboque e forro. São quatro cômodos, dois quartos, uma sala e uma cozinha, onde sua mãe prepara o almoço. Uma senhora pequena, franzina, cabelos já grisalhos e rugas pela vida sofrida e cheia de limitações, tendo só o básico para sobrevivência. Mas uma senhora forte na criação de Aninha e seus cinco irmãos.

                A filha lhe dá um beijo na chegada. Vai ao quarto de seus pais onde ela dorme numa caminha no canto da parede. Tira o uniforme da escola para usar no dia seguinte, colocando uma roupinha simples que já fora de sua irmã maior.

                Logo após o almoço, Aninha faz sua lição de casa e vai brincar e ajudar a cuidar de seus irmãos mais novos, enquanto a mãe precisa lavar a roupa ali no tanque que fica no quintal e depois reformar à mão com linhas e agulha algumas peças de roupas ganhadas de segunda mão.

                Está anoitecendo, quando seu pai chega em casa com ar de bem cansado, depois de um dia inteiro trabalhando como gari, varrendo ruas pela cidade, passando despercebido pelas pessoas, mesmo fazendo um serviço fundamental: a limpeza pública.

Um senhor moreno, magro, alto, de chapéu. Ao chegar em casa, todos permanecem em silêncio. Ele nunca foi um homem de demonstrar afeto, ter diálogos com os filhos e com a esposa. Sempre muito fechado, mal chega em casa, toma banho, janta e ia se deitar para se levantar no dia seguinte às cinco horas da manhã.

E, todas as noites, já deitado, Aninha vai ao seu leito, dá um beijo à face e um afago nos cabelos. Mesmo que ele nunca retribuísse esse afeto.

 

UMA TAL DE COMUNICAÇÃO ASSERTIVA

 

Na manhã seguinte, ao chegarem à escola, Verônica fala à Aninha:

- Ontem não pude terminar minha lição. Você pode fazer isso por mim, antes de começar a aula?

Aninha sempre a obedece sem retrucar. Era praticamente sua única amiga e não gostaria de perder essa amizade.

Durante a aula, a professora pede para que Aninha vá até o consultório dentário da escola para um exame de rotina que estão passando todos os alunos.

Lá, ela timidamente bate à porta. A dentista Mariana com um jaleco laranja, touca colorida e máscara pendurada no pescoço, abre e a recebe sorrindo e com abraço.

Já na cadeira, ao ser examinada, a dentista comenta:

- Sua saúde bocal está ótima, Aninha. A gente só vai começar hoje uma limpeza geral para você ficar mais bonita ainda.

Durante a limpeza, a assistente pergunta:

- Você vai ficar para reunião de hoje à noite, doutora?

- Hoje não vai darEstou fazendo um curso de comunicação assertiva. Sobre o modo de nos comunicarmos corretamente sobre o que queremos, o que desejamos...

 

Durante o intervalo, comendo a merenda, observam quando Henrique bate na bandeja de um colega, derrubando tudo. E novamente, ele vai para diretoria. Nenhum de seus colegas sabe porque Henrique tem àquele comportamento sempre agressivo.

Verônica comenta com sua amiga:

- Meu maior sonho é ser muito famosa, ter muitos fãs, ser reconhecida nas ruas. Ser uma pop estar! Ter várias pessoas para cuidar de mim...

- O meu maior sonho era ter uma festa de aniversário de dez anos. – Comenta Aninha baixinho.

- Nossa, que coisa mais brega pra nossa idade, Aninha. Tantas coisas mais importantes para se desejar.

Dos olhos de Aninha escorrem algumas lágrimas disfarçadamente.

 

Terminado a aula, Aninha está no portão, quando Mariana se aproxima sem o uniforme de dentista. Jovem, magra, cabelos louros cumpridos e soltos. Chave do carro na mão, caminhando para o estacionamento da escola.

- Doutora, posso falar um pouco com você?

- Sim Aninha. Deu algum problema com a nossa limpeza?

- É que você comentou hoje sobre uma tal de comunicação assertiva. Eu queria saber um pouco mais sobre isso.

- Gostei de sua curiosidade, Aninha. Comunicação assertiva é a habilidade que temos de expressar as nossas ideias, os nossos pensamentos, as nossas necessidades de uma forma clara, objetiva, precisa, respeitando esses nossos direitos, os nossos sentimentos, sem agredir os direitos dos pensamentos e o modo de ser das outras pessoas.

E ali conversam por alguns instantes.

 

À noite, em casa, enquanto seu pai já dorme e sua mãe assiste com seus irmãos um pouco de novela na televisão bem velhinha, Aninha sentada na mesa da cozinha, com uma iluminação bem fraca, escreve uma carta em seu caderno. Destaca a folha, deixando-a dobrada dentro do mesmo.

 

MEU AMIGO HENRIQUE

 

No dia seguinte, logo nas primeiras aulas, Henrique vai até a mesa da professora e joga seu material ao chão. A professora o olha firme, dizendo:

- Eu sei Henrique que você quer que eu lhe mande à diretoria. Mas não vou mandar. Volte já ao seu lugar.

Ele obedece.

Neste dia, Verônica faltou. No intervalo, Aninha chega ao refeitório, um local apenas coberto, sem paredes em volta. Coloca seu caderno em cima da mesa e vai pegar sua bandeja. Bate o vento, abrindo seu caderno e virando algumas folhas. Ela volta e o fecha novamente.

Terminada a refeição, ela está caminhando pelo pátio, quando vê Henrique sentado em um banco sozinho. Vai e se senta ao seu lado.

- Por que você se sentou aqui? – Perguntou o menino sério: - Todos tem medo de mim, Aninha...

- Mas eu não, Henrique. – Coloca sua mão em cima da dele: - Sei que aí dentro tem um menino bom.

Estão caminhando de volta à classe, a dentista Mariana vem de encontro, perguntando-lhe num sorriso:

- Aninha, vamos ao consultório terminar sua limpeza bucal?

Henrique toma a liberdade de lhe dizer:

- Pode ir, depois eu lhe passo a lição que a professora der enquanto você estiver fora...

No consultório, Aninha coloca seu caderno bem na beira da mesa da dentista. Enquanto Mariana trabalha, vai falando mais algumas coisas sobre comunicação assertiva.

- E tem outra Aninha. Às vezes, queremos idealizar as pessoas como nós gostaríamos que elas fossem. Que elas mudem e sejam do jeito que desejamos. Mas não... Cada pessoa é de um jeito e como sua história e vivências lhes permitem como elas sejam.

A assistente sem querer, esbarra e derruba o caderno de cima da mesa. Abaixa-se e apanha o caderno e as folhas espalhadas.

Ao se levantar da cadeira, Mariana entrega uma folha para Aninha.

- Toma, aqui tem um texto sobre comunicação assertiva para você conhecer mais um pouco.

 

Ao chegar em casa, sua mãe está novamente preparando a refeição com o seu ar de cansada. Aninha corre ao seu encontro e a abraça, dizendo:

- Como vai a mãe mais linda do mundo?

Sua mãe timidamente retribui o abraço.

À tarde, a menina vai fazer sua lição de casa. Procura dentro do caderno a carta escrita na noite anterior. A mesma sumiu. Triste, Aninha pensa: “É realmente nem na imaginação tenho direito em ter uma festa de aniversário...”

 

AS PRIMEIRAS CARTAS

 

                Sábado de manhã. Enquanto seu pai carpina no quintal de terra, Aninha sentada na varanda, começa a imaginar como seria morar lá no centro da cidade em uma boa casa, vários quartos para seus irmãos, com muitas coisas gostosas para comer, muitos brinquedos, computador e celular. Estudar em uma boa escola. Seu pai ter um trabalho menos cansativo, assim como sua mãe com menos tarefas domésticas, podendo dar mais carinho e atenção aos filhos.

                De repente, Aninha volta ao mundo real. Repara no jeito calado de seu pai, ali carpinando, um gesto de amor ao estar cuidando do pouco que sua família tem. Corre para abraçá-lo, exclamando:

                - Te amo, meu pai. Do jeitinho que o senhor é!

                Ele sem entender nada, não sabe como reagir.

                No período da tarde, com as meninas de sua idade que moram no bairro, Aninha sugere:

                - Vamos brincar de escolinha?

                - Lógico que não... – Diz Verônica taxativa: - Nós vamos brincar de desfile.

                E sempre era Verônica que ditava e escolhia as brincadeiras.

                No domingo, perto da hora do almoço seu pai volta da venda ali do bairro, trazendo doces e algumas garrafas de guaraná. Aquilo é a grande e única alegria de Aninha e seus irmãos aos finais de semanas. Ainda mais em um bairro longe de tudo, sem qualquer praça ou lugar para passeios.

 

Na manhã seguinte, o pessoal está chegando à escola. Henrique está no portão discutindo com outro menino. Aninha chega, puxa-o pelo braço:

- Vamos Henrique. Você não precisa disso...

Durante a aula, a professora comenta:

- Eu gostaria de levá-los à biblioteca, incentivá-los a consultar e pesquisar nos livros, na internet. Mas nem isso temos aqui na escola.

Aninha em sua carteira, começa a imaginar como seria ter uma biblioteca escolar com muitos livros, revistas, mesas para leitura, computadores conectados à internet. Naquele devaneio, num repente, ela levanta a mão, dizendo em voz alta:

- Professora, e se a gente usar a comunicação assertiva para montarmos uma biblioteca?

Todos mudos a olham sem entender nada. Aninha, percebendo o seu impulso, vai baixando o seu braço timidamente.

- Aninha, queremos entender a sua ideia. Venha aqui à frente explicá-la - pede a professora.

Tremendo por dentro por sua timidez, ela vai. Conta um pouco sobre comunicação assertiva. E sugere:

- Então a gente pode conversar, escrever cartas aos nossos parentes, amigos e conhecidos, pedindo doações de livros e outros materiais.

O pessoal empolgado, aplaudiu a ideia da menina.

No pátio, Verônica vem falar brava com Aninha:

- Você deveria ter dado essa ideia pra mim. Eu que deveria ter passado para o grupo.

- Lógico que não, Verônica. A ideia foi dela. – Diz Henrique aproximando-se.

- Quem lhe chamou na conversa, seu moleque?

Aninha puxa-o pelo braço.

- Vem Henrique, vamos sair daqui...

A ideia das cartas é levada para as outras séries. Várias cartas são escritas. Alunos começam a trazer livros doados. Uma carta coletiva é enviada e publicada no jornal de maior circulação da cidade. Pessoas enviam à escola computadores que estão parados em suas residências. Um empresário presenteia a escola com um bom plano de acesso à internet. Editoras infantojuvenis e livrarias, ao lerem a matéria do jornal, também enviam obras infantis e juvenis.

No dia da inauguração todos estão empolgados. E a diretora fala em seu discurso:

- Além dos inúmeros doadores e de nossos alunos que escreveram centenas de cartas, também somos gratos a nossa aluna Aninha que teve a grande ideia. Achamos justos que, junto à nossa bibliotecária, você seja uma das monitoras nesta biblioteca.

Aninha timidamente responde:

- Eu agradeço o convite. Mas o Henrique pode ser monitor também?

Todos olham espantados.

Saindo dali, Verônica lhe diz:

- Ainda bem que você não me chamou. Odeio esses trabalhos voluntários...

Aninha sem nada dizer, vai rumo ao banheiro. A dentista Mariana, chegando por traz, diz à Verônica:

- Desculpe-me, mas sem querer, eu ouvi a conversa de vocês. Se eu fosse você, me espelhava em sua amiga que está ganhando a simpatia de todos justamente por estar tendo ideias para ajudar aos colegas.

 

A REALIDADE DE VERÔNICA

 

Verônica chega a sua casa poucos metros da residência de sua amiga. Como sempre, não tem ninguém. Sua mãe está no centro de reabilitação lá no centro da cidade. Seu irmão mais novo nascera com uma deformação congênita. O pai de Verônica foi embora de casa logo que seu irmão fora diagnosticado. Cabe a sua mãe a cansativa rotina de carregar todos os dias o filho no colo nos transportes coletivos para tratamentos gratuitos em centros públicos.

                Sempre sozinha e sem atenção, Verônica vai esquentar o seu próprio almoço. Tão nova, aos nove anos, a vida já lhe obriga a se virar sozinha. Não tem ninguém para fazer algo por si.

 

                No começo da noite, pensativa sentada em sua cama, Aninha decide comentar com seus pais o desejo de ter uma festa de aniversário. Levanta-se, dirige-se até a porta da cozinha e fica encostada no batente. Ouve a conversa de seus pais enquanto jantam.

                - Eu queria tanto ter uma máquina de costura nova para adiantar minhas costuras, pegar serviço de fora para ajudar nas despesas de casa. Estou sofrendo muito nessa máquina que mais quebra do que funciona.

                - Eu sei mulher. Mas o que ganho, mal está dando para pagar as prestações deste terreno e alimentar a gente...

                Sem entrar à cozinha, Aninha se vira em silêncio e volta para o quarto.

 

                Os dias vão passando. Vários alunos procuram Aninha para ela ensinar mais sobre comunicação assertiva e escrita de cartas. Ela tem uma ideia, reúne o grupo em um intervalo e convida a doutora Mariana para conversar com o grupo:

- Quantas vezes nos vemos numa situação em que tínhamos já uma opinião formada sobre um assunto, mas não conseguimos expor isso e depois pensamos assim: “ah, devia ter falado aquilo né? Ou oposto, já chegamos falando mesmo, sem pensar, não quer nem saber, e depois nos arrependemos: “Acho que falei bobeira”.

                Todos riem. Mariana continua:

                - Explicando melhor, na primeira situação nós temos uma pessoa que age com passividade, ela anula a sua própria opinião, não sendo honesta com ela mesma em prol do outro. Por outro lado, nós temos uma pessoa que age com agressividade na comunicação, ela é mais impositiva, ela é mais autoritária. Por meio desse autoritarismo ela impõe a sua opinião sem pensar no outro.  Não importa, o outro que se vire. Esses dois extremos são ruins. Então, é preciso existir um ponto de equilíbrio em que você consiga se colocar, expor, falar o que precisa ser dito e, ao mesmo tempo, respeitar a pessoa com quem você está lidando, e isso é ser assertivo na comunicação.

 

AS NOVAS CARTAS DE ANINHA

 

                Durante uma aula de educação física, o professor comenta:

                - No próximo mês haverá um campeonato interescolar numa cidade aqui perto. Eu gostaria de levá-las, mas a escola não tem verba para isso.

                Sentada na arquibancada por mais uma vez não ter sido escolhida para nenhum time, Aninha tem uma ideia. Abre seu caderno e escreve uma cartinha.

 

Prezado comerciante,

Meu nome é Aninha, sou aluna da escola do bairro e estou escrevendo para ajudar o nosso time de vôlei. No próximo mês haverá uma competição aqui perto e nós queremos muito participar, mas nossa escola não tem recursos.

Acredito que com uma pequena ajuda dos comerciantes do nosso bairro, algo que não pesará para os senhores, conseguiremos a quantia necessária para nossa viagem.

Será uma quantia pequena aos senhores, mas muito significativa para o nosso time realizar esse sonho. E outra, vários dos senhores também têm filhas nesse mesmo time.

Peço que encaminhe essas doações à diretoria de nossa escola e Deus abençoe a todos!

 

                Ela corre até a biblioteca, faz várias cópias dessa carta à mão. Chama seu amigo.

                - Henrique, agora você pega essas cartas e distribui nos comércios aqui em volta.

 

Após distribuir, Henrique volta ao abrigo onde mora com muitas crianças órfãos. Sempre sozinho em seu canto, ele abre o livro de matemática, sua matéria preferida. Começa a fazer os exercícios. Acha aquilo desafiante e prazeroso, passando toda a tarde fazendo todas as atividades até o final do livro.

 

                Na aula da próxima semana, o professor chama o time de vôlei para o centro da quadra. Acena para que Aninha também venha.

                - Pessoal, já temos o dinheiro da viagem...

                Todos comemoram.

                - Mas como foi isso, professor? – Pergunta uma aluna.

                - Vocês nem vão acreditar. A nossa amiga Aninha aqui teve a iniciativa de em silêncio, escrever cartas aos comerciantes locais pedindo apoio para viagem. Eles só não deram o dinheiro, como também toda alimentação para o time.

                - O Henrique também me ajudou, professor - comenta a menina.

                - E tem mais. Como vocês dois fizeram isso, vamos falar com seus pais e vocês vão viajar com a gente. Agora a Aninha é a relações públicas oficial do nosso time!

                Todos do time a abraçam numa comemoração coletiva.

                Verônica puxa Aninha para o canto, ordenando:

                - Você vai dizer ao professor que você não pode ir e é para ele me colocar no seu lugar!

                - Eu não, Verônica. Eu não tenho mais que lhe obedecer... Participe de projetos assim e verá como é bom ser útil. Fazemos o bem e muitos amigos naturalmente.

                Aninha solta-se da amiga e volta à comemoração.

 

HENRIQUE VAI À OLIMPÍADA DE MATEMÁTICA

 

                De volta à classe, a aula é de matemática. A professora passa em cada mesa para ver as atividades dos alunos. Ao chegar em Henrique, nota algo diferente:

                - Que isso, menino? Você preencheu as atividades do seu livro de uma vez que era para até o final do ano?

                - É que eu não tinha nada para fazer professora, e gostei do desafio.

                - No intervalo você vai ficar na classe e apagar tudo com a borracha.

                - Sim senhora – responde ele calmamente.

                Todos saem e ele fica sozinho ali apagando. Minutos depois Aninha volta, trazendo um lanche para o amigo.

                Após todos voltarem e reiniciar a aula, a diretora entra na sala. Todos se colocam em silêncio para ouvi-la:

                - Henrique, fiquei sabendo o que você fez no livro de matemática.

                - Peço desculpas, diretora – fala Henrique sem a velha agressividade: - Minha mão está doendo de tanto apagar.

                Todos riem. Inclusive ele e a própria diretora que o surpreende:

                - Só por essa sua iniciativa, conversei com a professora e com a coordenação pedagógica e vamos lhe dar um voto de confiança. Vamos escrevê-lo para representar nossa escola na Olimpíada Estadual de Matemática.

                Todos os alunos correm para abraçá-lo.

 

Usando a comunicação de forma assertiva, Aninha vai ganhando autoconfiança, autocontrole. Fica uma pessoa mais segura, corpo reto, olhando as pessoas de cabeça erguida nos olhos. Mas um vazio há dentro dela. Consegue sempre pedir, conseguir as coisas para todos, ajudar seus amigos individualmente, mas sem coragem de pedir algo para si mesma.

 

UMA ONG NO BAIRRO

 

Algum tempo passa e Aninha, ao assistir na televisão a matéria de uma ONG que ajuda a transformar lugares humildes, tem outra ideia. Reúne várias crianças de seu bairro e as ensina a escrever cartas falando de suas necessidades. Verônica chega, perguntando-lhe:

- Aninha, posso ajudar?

- Claro, amiga – responde sorrindo, entregando-lhe papel e caneta.

Com o apoio de seu pai, as cartas são colocadas nos correios.

A iniciativa dá certo. Duas semanas depois, na manhã de sábado, mais de cem pessoas e caminhões com materiais de construção e outras doações chegam no bairro. Com a ajuda dos moradores tudo vira um grande mutirão. Casas são reformadas, móveis trocados, brinquedos distribuídos às crianças. Inclusive a casa de Aninha.

                Tudo foi coberto pela imprensa. O poder público, vendo-se pressionado a olhar para àquele bairro, durante a semana mandou as máquinas da prefeitura a arrumar e a asfaltar as ruas.

 

                Com a autorização do juiz que cuida das crianças do abrigo, Henrique viaja com a diretora e a professora para a cidade das olimpíadas de matemática. Ficam em hotel por cinco dias, cuidado e paparicado por elas. E o menino vai avançando na competição.

 

                Algumas semanas se passaram. A dentista Mariana foi procurar a menina durante um intervalo de aula:

                - Aninha, em breve vou me casar e quero que você seja uma das minhas damas de honra. Você aceita?

                - Claro, doutora – responde a menina sorrindo.

                - Sábado vai ter um ensaio e prova de vestido. Eu vou lhe pegar em sua casa.

                Mariana lhe dá um beijo e se vai.

 

                Henrique chega e os dois caminham pelo pátio.

                - Poxa Aninha, você é uma amiga que gosto demais. Aprendo muito com você, sabia?

                - Fico feliz em ouvir isso, Henrique. Também reparo que sua agressividade diminuiu muito.

                - Tenho até vergonha em dizer. Mas antes eu era triste por ver todos vocês terem pais e mães e eu não.

                - Aí é que tá, meu amigo. As pessoas não pensam como você, não agem como você, não passaram pelo que você passou, elas não acreditam nas mesmas coisas que você. Nós somos diferentes. Só comunicando corretamente nossos desejos e necessidades, é que vamos conseguir o que queremos.

                - Esse é um dom que você é que tem, Aninha.

                - Não senhor. Li no papel que a doutora Mariana me deu que a assertividade não nasce com a pessoa. Ela é uma aptidão. Você aprende, você pode treinar essa habilidade. Ela evita conflitos, ela também minimiza ruídos na comunicação. É mais fácil você compreender e você ser compreendido. Ela permite relações mais construtivas, tanto na vida pessoal quanto na vida profissional.

                - Poxa, você estudou mesmo a folha...

      - Era o nosso caso. Quando sua comunicação que transmitia agressividade, as pessoas ficavam com medo de você. Ou ao contrário, pela minha passividade, as pessoas estavam sempre te pedindo coisas e eu sempre dizendo sim. Todos que usam a comunicação assertiva consegue diminuir a sua ansiedade, o seu stress, a sua frustração. Porque agora conseguimos expressar nossas emoções.

                - Minha amiga, tenho uma novidade que você não vai acreditar. Àqueles dias da viagem por causa das olimpíadas de matemática foram mágicos. A minha convivência com a diretora foi tão legal, que ela resolveu entrar com um pedido na justiça para me adotar.

                Os dois se abraçam felizes.

 

UM DIA DE PRINCESA

 

                O sábado amanhece, mas não é um dia comum. É o dia do aniversário de Aninha. Ela se levanta, vai tomar café. Seu pai, sua mãe, seus irmãos, ninguém a cumprimenta. Ela se sente esquecida, sem ao menos ter a coragem de lembrá-los daquela data tão importante para ela.

                Perto da hora do almoço, Aninha vai tomar um rápido banho. Ali no banheiro, onde ninguém a vê, a menina chora num desabafo de tristeza.

                Mariana chega de carro para pegá-la para o ensaio de seu casamento. Também não a cumprimenta.

                Primeiro a leva em uma lanchonete onde comem para enfrentar a tarde de atividades. Depois vão ao salão, onde o cabelo e as unhas de Aninha são arrumados. Em seguida, Mariana vai pegar no carro um lindo vestido cor-de-rosa. Aninha é vestida como uma princesa.

                Olha-se no espelho, permitindo-se no dia de seu aniversário, pelo menos, a sonhar um pouco...

                - Agora vamos para a igreja ensaiar a cerimônia – diz Mariana.

                Rodam alguns quilômetros, chegam em frente a um buffet. Ao descerem, a menina tem uma surpresa. À entrada há um enorme arco de balões de gás escrito: “Aninha, Parabéns Pelos Seus Dez Anos!”

                Mariana segura sua mão e entram. Muito emocionada, a menina chora. Estão todos lá. Sua família, todos arrumados. Os amigos, professores e funcionários da escola.  O salão está todo decorado pelos seus colegas.

                Ela é recebida com muitas palmas. Corre e abraça seus pais e irmãos com muito amor!

                Minutos após, Mariana pega o microfone, contando:

                - Tempos atrás, caiu em meu consultório, uma folha do caderno de Aninha e ficou debaixo de minha mesa. Ao encontrá-la, suas palavras tocaram meu coração. Resolvi reproduzi-la e distribuir para várias pessoas. A cartinha dizia...

                Verônica com uma folha à mão, pega o microfone e lê:

 

Olá amigos, professores e família!

Dentro de alguns meses mês será o meu aniversário de 10 anos. E por isto, estou muito feliz em lhes convidar para a minha festa.  Sua presença será significativa para mim, por favor, nem pense em faltar.

Só tem um pequeno detalhe que acredito que não fará diferença. Um segredo cá entre nós. Eu ainda não tenho uma festa de aniversário e nem sei como fazer uma.

Mas agora que lhe contei o meu segredo, esse desafio passa a ser nosso. Que tal a gente pensar juntos e organizar a minha festa de 10 anos?

Isso mesmo, juntos seremos capazes de organizar uma linda festa onde “empresto” a data do meu aniversário e unidos nos alegraremos todos juntos.

Estou feliz, porque sei que, como vocês são pessoas amadas e importantes em minha vida, estão alegres e já aceitaram o meu convite.

Então mãos à obra, pois temos pouco tempo para organizar toda uma festa de aniversário!

Beijinhos a todos!

Aninha

 

                Sua amiga baixa a folha e completa:

                - Juntos Aninha, aprendemos como se faz uma festa de dez anos. Mas eu em particular lhe agradeço, porque aprendo com você que viver no mundo real é bem melhor do que viver fugindo nas fantasias. E com isso, vou ganhando novos amigos seguindo o seu exemplo, ajudando em suas ideias malucas.

                Henrique toma coragem e pega o microfone:

                - E com você eu aprendi a controlar minhas emoções e comunicar minhas reais necessidades e desejos. E quando mostrei quem realmente sou, ganhei até uma família. Não posso lhe dar um bom presente – retira algo do bolso: - Mas quero lhe dar a minha primeira medalha de matemática para que nunca se esqueça de mim. Você sempre será minha melhor amiga!

                Juntos todos brincam, dançam, comem lanches, tomam refrigerantes. Em uma mesa com muitos doces e um lindo bolo, a aniversariante se coloca ao lado de seus pais e irmãos. E o salão inteiro canta um sonoro “Parabéns à Aninha!

 

O TEMPO PASSOU...

 

Os anos voaram... Aninha foi construindo sua vida e trajetória sempre pautada em falas e comunicação corretas em buscas de seus desejos. Tornou-se uma linda moça muito estudada.

                O bairro onde Aninha morava progrediu. Seus irmãos, cada um construiu sua vida. Seu pai aposentou-se e hoje vive tranquilo com sua mãe na mesma casa, mas toda reformada e aconchegante.

                Após visitar seus pais, Aninha vai até a sua ex-escola. É recebida pela a atual diretora, Verônica. Trocam um caloroso e demorado abraço. A diretora reúne todos os alunos no pátio, dizendo ao microfone:

                - Hoje é um dia de festa para a nossa escola. Estamos recebendo a visita da Aninha. Uma ex-aluna que hoje trabalha na Organização das Nações Unidas. Sabem o que ela faz lá? Ela é a responsável em escrever todas as comunicações oficiais da ONU.

                Aninha conversa um pouco com os alunos. A diretora Verônica volta com a palavra:

                - Agora a minha eterna amiga Aninha vai receber um buquê de flores das mãos do nosso professor de matemática amado por todos vocês.

                Ele entra por trás do palco. Ao vê-lo, Aninha tem outra emoção. É Henrique em um sorriso. Mais um longo e afetuoso abraço.

                 Depois, Aninha ao descer do palco e caminhar pelo pátio, vê uma menina pequena, sozinha sentada em um banco comendo seu lanche, enquanto as outras crianças brincam. Identifica-se com ela. Senta-se ao seu lado, pega sua mão, olha dentro de seus olhos e pergunta-lhe com ternura:

                - Flozinha, você conhece uma tal de comunicação assertiva?

 FIM

 

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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