1 - FORÇAS DO DESTINO

Anos noventa. Era hora do intervalo de aula naquela escola de periferia na cidade de São Paulo. Sexta-feira à noite. Marli, uma moça magra, cabelos lisos e cumpridos, roupas simples, conversava animadamente com seus amigos. Entre eles Luiz, um moço de estrutura mediana, bem animado, comunicativo, por quem a moça se sentia bem à vontade em estar em sua companhia. Ele era filho de um comerciante local.

- O ano já está terminando e o ensino médio também. Logo vou prestar vestibular para economia. E você Marli, já sabe para o que irá prestar?

- Imagina Luiz, eu nem tenho condições de se quer sonhar com uma faculdade – respondeu ela com quase lágrimas nos olhos como quem não tinha o direito de ter projetos de vida.

- Você pode não ter hoje, mas um dia terá! - Disse-lhe o amigo em um sorriso.

Outras moças se juntaram a eles e o papo continuou muito animado.

De volta à sala de aula, enquanto a professora dava explicações da matéria, Marli pegou o seu caderno e desenhou à caneta e com traços simples uma praia com coqueiro e grama, um sol com carinha sorrindo entre nuvens, o mar, peixinhos e um barco com uma vela pequena.

Luiz na carteira ao lado, olhou e elogiou o desenho. Ela lhe retribuiu com um sorriso. Arrancou a folha do caderno e o presenteou.

Por volta das dez e meia terminou a aula e todos voltavam em um grupo animado à comunidade. Já perto de casa, ao passarem por uma rua pouco iluminada, observaram um rapaz loiro, forte, de bermuda e camiseta, encostado em um poste, que lançou um sorriso à Marli. A moça simplesmente abaixou a cabeça tímida e prosseguiu com os amigos.

Ao se afastarem, uma colega comentou:

- Acho que tem alguém aqui sendo paquerada...

- Imagina gente, não tem nada a ver – disse Marli sem graça.

- Quem era o gato? – Perguntou uma das moças, tendo a resposta de Luiz:

- Eu nunca o vi por aqui, sei não.

Domingo pela manhã, Marli foi até o orelhão na rua principal da comunidade onde morava. Com um cartão telefônico fez uma ligação por quase quinze minutos. Ao colocar o fone no gancho, virou-se enxugando algumas lágrimas.

- Você está chorando, princesa?  - Indagou alguém que estava logo atrás.

Ao olhá-lo, ela o reconheceu como o rapaz loiro de sexta-feira à noite. E respondeu simpaticamente:

- É que estou emocionada. Fico sempre assim quando posso ligar aos meus pais.

- Você aceita tomar um suco comigo ali na padaria? Aí você se reestabelece um pouco. Aliás, eu nem sei o seu nome.

- Marli, sim eu aceito. Ia mesmo à padaria comprar um frango para o almoço.

- Muito prazer. Marli – diz o rapaz em um sorriso cativante, oferecendo-lhe um aperto de mão, apresentando-lhe: - Meu nome é Giorje.

Já na mesa da padaria, eles conversavam como se já se conheciam a tempos. 

- Me fale um pouco de você?

- Não tenho muito a falar. Sou filha de um casal muito humilde de camponeses. Meus pais moram em um sítio no interior paulista. Tiveram quatro filhos contando comigo. Éramos muito pobres e à medida que íamos crescendo, fomos saindo de casa para arrumar emprego melhor e cada um foi para um canto. Até que chegou a minha vez, a caçula. Aos dezesseis anos vim trabalhar em uma casa de família aqui na capital. Não deu certo. Uma família amiga de meus pais me abrigou aqui na comunidade e estou morando com eles até ter um lugar melhor para ficar ou eu voltar para o interior. 

- E por que você estava chorando agora há pouco?

- É que domingo sim, domingo não, meus pais vão à uma venda lá na cidade no horário marcado e eu ligo para matar saudades. Hoje trabalho como atendente em uma loja de móveis e estudo à noite. O que ganho ajudo um pouco na casa que me abrigaram e mal dá para pagar minhas despesas pessoais. Há três anos não vejo meus pais...

- Marli, posso imaginar a falta que você sente de seus pais. Pelo menos eu moro com os meus. Tenho uma irmã casada, bem de vida que nem liga para nós. Meu pai é aposentado como gari da Prefeitura, ganha um salário mínimo. Eu não dei valor aos estudos, hoje trabalho como chapa, recebo por dia para descarregar caminhões. Morávamos no outro estremo da comunidade. A coisa foi se dificultando e a gente veio morar aqui há uns vinte dias.

- Mas Giorje, nunca é tarde para estudar, melhorar de vida.

- Eu sei. Quem sabe mais pra frente.

- Bem, preciso ir, o pessoal lá em casa está esperando o frango para o almoço.

- Posso lhe acompanhar até a porta de casa, Marli?

Juntos saíram da padaria e caminharam conversando pelas ruas da apertadas.

À noite, como era comum na comunidade, os jovens foram para uma brincadeira dançante no Centro Comunitário. Estava tudo animado, quando Marli resolveu ir comprar um refrigerante no bar.

Já voltando, ela encontrou Giorje. Cumprimentaram-se, trocaram rápidas palavras por causa da alta música. Até que a moça lhe perguntou:

- Você quer ir conhecer meus amigos? Será legal você se enturmar conosco.

- Desculpe Marli, hoje estou com pressa. Tenho que acordar cedo. Só que eu não queria embora sem antes dançar uma música com você. Aceita?

Ela ficou sem jeito de recusar. Dançaram uma música lenta. Era a primeira vez que Marli dançava colada em alguém. Acabada a canção, ele se despediu e a moça voltou para o grupo de amigos. 

Na tarde do dia seguinte, Marli ia saindo da loja onde trabalhava, Giorje a esperava na calçada.

- Olá, você por aqui? – Questionou surpresa em um sorriso.

- É, eu estava voltando do serviço, lembrei-me que você trabalha aqui, então resolvi esperar para irmos embora juntos.

Caminharam três quarteirões até o ponto de ônibus. Dentro da condução sentaram-se juntos. O tempo todo em uma conversa descontraída. Marli não sabia o por quê, mas se sentia muito bem em sua companhia.

 À noite na escola a turma de quatro amigas conversava durante o intervalo. Ela contou desses encontros ocasionais com o rapaz.

- Ocasionais? Sei... – Brincou uma das amigas.

- Marli, eu acho que você ganhou um pretendente – observou outra moça.

- Pelo menos ele é legal?

- Sim, é um rapaz simples, trabalhador. Tem um papo legal.

- E o Luiz, como fica? – Perguntou uma das moças indiscretamente.

Marli respondeu em um tom sério:

- Eu nunca tive nada com o Luiz além de uma forte admiração. E outra, o ano está acabando, ele vai embora cursar economia e certamente nunca mais nos veremos. Eu vou continuar aqui nesta vidinha de sempre. Pelo menos o Giorje está mais dentro da minha realidade...

Na próxima brincadeira dançante, o casal estava dançando uma música lenta, quando ele tomou a iniciativa:

- Marli, você quer casar comigo?

- Casar, Giorje??? – Espanta-se.

- Sim, eu sou um rapaz simples. Mas posso lhe oferecer um lar, cuidar de você...

Os dias foram passando. Chegou o dia da formatura, uma festa simples no pátio de escola. Após um mês, eles se casaram só no civil. Marli foi morar na casa dos pais do rapaz. Continuou a trabalhar na loja e ele em sua humilde profissão. 

Alguns meses depois, a moça engravidou e veio o primeiro filho, Lucas. Foi a maior felicidade do casal.

Tudo corria tranquilamente, quando numa noite, uma amiga bateu à porta. Marli foi atender. A amiga estava tensa.

- O que foi mulher? Você está me assustando...

- Você precisa ser forte, Marli. Houve uma batida policial aqui na comunidade. Aconteceu um tiroteio e o Giorje, voltando do serviço, foi baleado por engano. Não resistiu.

Marli despencou ao chão. Trêmula, muita dor por dentro e choro. Seu mundo parecia ter acabado ali.

No dia seguinte, ao voltarem do enterro, entraram na humilde casa. Marli, ainda com lágrimas nos olhos, levantou a cabeça, olhou os pais de Giorje, bem idosos, abraçados, chorando no sofá. Olhou seu bebê sereno, dormindo sem ao menos ter noção do que se passava. Ela sabia que teria que encontrar forças para cuidar deles.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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