1 - QUANDO A MEMÓRIA SURGE DE UMA GAVETA...

 O despertador tocou. Ele acordou assustado, pois, por morar sozinho, só podia contar consigo. Precisava ser rápido para ir ao trabalho. Era um executivo renomado. Agenda cheia e um coração vazio. 

Enquanto se arrumava, ao mesmo tempo, procurava alguns papéis para levar. Entre a bagunça, encontrou um envelope subscrito a mão. Dentro, um antigo cartão de boas festas. Junto, havia duas fotos da época de faculdade, já esquecidas. Nelas, estava abraçado a uma colega de curso. Naquele instante, o relógio pareceu parar. Sentou-se para apreciá-las. Era o ícone de alguém que fora a sua grande amiga desde os primeiros dias de aula. Embora ele tivesse entrado em uma segunda faculdade um pouco tarde, havendo uma diferença considerável de idade entre os dois, foram realmente companheiros. Ela sempre o auxiliava e o olhava com admiração. Quantos trabalhos juntos, pesquisas, trabalhos em classe, conversas na cantina e nos jardins da universidade. Porém, nos últimos dois meses de aula algo diferente aconteceu. Pelo menos da parte dele... O tempo pareceu voltar uns quatorze anos...

* * *

Era o primeiro dia de aula numa nova faculdade. Após uma bem-sucedida carreira jornalística, Leandro decidiu estudar mais, aventurar-se em uma nova profissão: Administração de Empresas. Isso mesmo. Depois de vários anos de viagens, contatos com o mais variado tipo de pessoas, talvez pelo chegar da idade, ele desejou ter uma ocupação fixa num mesmo lugar, dentro de uma sala, atrás de uma mesa. E essa lhe suou como uma boa opção!

Esse moço parecia ser uma pessoa simpática, rosto sereno, cabelos curtos e lisos, olhos castanho-escuros amendoados, estrutura média, nem gordo nem magro, voz calma e pausada, sempre vestido mais para o social. Assim era o Leandro que entrou na sala com muitos alunos. Todos por volta dos dezoito anos, ainda adolescentes. Sentiu-se um pouco desolado, sentando em um canto da sala, para assistir os primeiros momentos de aula, os primeiros momentos dos próximos quatro anos...! 

Durante o intervalo, foi até a cantina e pediu um café. Sorvendo a bebida encostado ao balcão, começou a observar todos aqueles jovens no pátio. Estavam alegres, conhecendo-se. Uma vez que aquela universidade localizava-se em uma cidade no centro do estado, a maioria deles vinha das cidades circunvizinhas. Novas amizades e descobertas estavam gerando raízes naquele instante. Porém, uma insegurança bateu no peito de Leandro. Uma vez, ao iniciar a faculdade de jornalismo aos dezoito anos, também havia vivenciado aqueles momentos; mas agora, com mais de trinta anos, sentiu-se desolado diante de toda aquela juventude.

Ao voltarem à classe, o professor propôs uma dinâmica:

– Agora vocês vão formar duplas e fazer perguntas um para o outro no intuito de se conhecerem. 

Leandro preferiu não tomar iniciativa. Esperou que alguém viesse a ele. E veio. Uma moça de rosto arredondado, semblante tranquilo, olhos castanhos e pouco puxados, sobrancelhas desenhadas, bochechas acentuadas, nariz redondo e empinado, cabelos castanhos, compridos, lisos e desarrumados.

– Posso me sentar com você? – perguntou ela com um sorriso maroto, largo e fechado.

– Sim, por favor... – respondeu ele, virando a cadeira para que sentassem de frente. – Meu nome é Leandro. E o seu?

– Milena. Quantos anos você tem?

– Trinta e três. E você?

– Dezessete. É a sua primeira faculdade?

– Não, sou formado em jornalismo, profissão que já exerço há uns bons anos.

– E por que você resolveu fazer Administração de Empresas?

– Acho que busco um novo desafio para minha vida. Uma guinada. 

Aquela jovem parecia dominar a situação, bombardeando-o com várias questões:

– Você é casado?

– Não, infelizmente não. Vivo sozinho.

– Como assim? Você não tem família?

– Nasci em uma família muito pequena. Meus pais morreram em um acidente de carro quando eu era criança. Fui criado por meus avós. Quando iniciei a faculdade, meu avô morreu de derrame. No último ano, minha avó também se foi. Só me restaram parentes muito distantes. Assim que me formei, resolvi sair pelo mundo. Como meu avô me contava muitas coisas do mundo rural, decidi conhecer tudo de perto. Durante todos esses anos, passei por várias cidades do interior paulista, conheci muita gente e muitas histórias. Especializei-me em jornalismo rural e sempre trabalhei como correspondente de jornais e revistas. Mas agora procuro uma melhor estabilidade profissional e pessoal. Acho que é por isso que estou tentando uma nova faculdade.

– Eu não sabia de sua história. Desculpa...

– Não foi nada, Milena. Mas fale um pouco de você.

– Não tenho muito a falar. Moro com minha família em uma pequena cidade vizinha chamada Guaragudos. Somos muito unidos e felizes. Como somos comerciantes, resolvi fazer essa faculdade para dar continuidade aos negócios do meu pai.

– Afinal, você é a herdeira dele...

– Pois é...

Fim do primeiro dia de aula. Leandro voltou para o seu pequeno apartamento. Ligou o computador para escrever sua próxima reportagem. Sua vida sempre se resumia em muito trabalho. Por viver de viagens e mudanças de cidades, dificilmente fazia amigos. Sair à noite nem pensar. Gostava de dormir e acordar cedo, talvez inspirado no homem sertanejo, sempre personagem central de suas matérias.

Por ter sido criado pelos avós, teve uma educação tradicional. Era um moço fino, respeitador, atencioso com todos, sempre pronto para colaborar com quem dele precisasse. Politizado, era contra as injustiças sociais. Fazia de suas palavras escritas porta-voz das classes menos favorecidas. Acreditava em mudanças sociais, principalmente no campo...

Leandro nunca teve um amor, um relacionamento pra valer? Quem sabe...

Nos próximos dias de aula correu tudo normal. Na segunda semana, uma moça proclamou na classe:

– Pessoal, amanhã à noite vamos fazer uma festa na república para comemorar o início das aulas. Vou passar uma lista. Quem quiser ir, é só assinar.

Ao chegar à carteira de Leandro, ele rapidamente a passou para trás. Sua colega ao lado perguntou-lhe:

– Você não vai?

– Não, amanhã tenho compromisso.

Ele não via motivação para frequentar as festas de seus colegas. Na verdade, sentia-se “velho” para estar entre eles e suas conversas, onde os assuntos eram sempre festas, namoros, “ficação”. Aliás, ele não entendia esse comportamento de “ficar”, que ninguém é de ninguém, que se pode trocar de parceiros ou parceiras por várias vezes durante a mesma noite, sem nenhum compromisso ou envolvimento sentimental. Onde transar com diferentes homens ou mulheres, ir para cama logo nos primeiros instantes, era contado nas rodinhas na faculdade como um troféu. Para Leandro, oriundo de uma educação tradicional, aquilo sim era um grande monumento à banalização do comportamento humano.

Como sempre, na classe formaram-se grupinhos fixos. No de Leandro, além de Milena, sua primeira conhecida, ajuntaram-se Lídia e Luiz, ambos também jovens como a primeira. Esse grupo estudava junto, fazia trabalhos em classe ou fora dela. Reunia-se para bater papo no pátio, onde o assunto era um pouco mais maduro por serem jovens que tiveram uma educação também com ecos do tradicional, com valores e objetivos na vida. Em muitas dessas conversas, gostavam de ouvir Leandro contar suas histórias profissionais, seu modo de ver a vida, seu otimismo diante do futuro. Aquele moço que, junto a um sorriso, sempre tinha um bom conselho, uma ajuda para quem dele precisasse. Carinhoso, que nunca desanimava diante de um desafio, foi conquistando a admiração de todos, colegas, amigos, professores, funcionários da universidade.

Leandro gostava de passar muitas horas caminhando pelas estantes de livros na biblioteca, folheá-los, ou sentar na sala de leitura, enriquecendo o seu conhecimento. E foi em um desses momentos, ainda no primeiro semestre, que Milena foi ao seu encontro, para juntos escreverem um trabalho para um seminário em classe. Em certo momento, visando quebrar a monotonia daquele trabalho, perguntou-lhe:

– Como vai a vida, Milena?

– Tudo calmo, Leandro. Esta semana comecei a namorar um moço lá da minha cidade.

– Você está feliz? – indagou-lhe, com um sorriso.

– Não sei, tudo é tão recente. Tipo assim, vamos deixar rolar.

Ele notava que sua jovem amiga era diferente das demais meninas. Dificilmente participava de baladas, nunca ouvira que ela ficasse com alguém só pelo fato de ficar. Sempre com seu rosto sereno, gostava mais de ouvir que de falar. Estava sempre disposta a qualquer desafio e levava os estudos com seriedade.

– Sinceramente, você é uma moça muito especial. Merece ser feliz.

– Obrigada, meu amigo – agradeceu com um belo sorriso adolescente.

Vários convites eram feitos para baladas, mas Leandro sempre se esquivava de todos. Preferia a solidão de seu apartamento. Introvertido sentimental era o seu tipo psicológico, sempre reprimindo o seu pensamento racional; capaz de emoções profundas, evitava qualquer manifestação externa delas, permanecendo misterioso, inacessível em seus sentimentos, sempre quieto, modesto, mas autoconfiante.

Romperam-se o primeiro, o segundo e o terceiro anos da faculdade. Pela sua maturidade, destacou-se na turma, começando a participar de vários projetos de extensão de seus professores. E, por estar na faixa etária deles, conquistou boas amizades com seus mestres. Com quem podia ter “papos cabeça”. Como, por exemplo, a professora Silvia.

O curso era de cinco anos. Como ele já tinha uma graduação anterior, conseguiu eliminar várias matérias e se formaria ao final do quarto. 

Sua amizade e a convivência com Milena aumentavam cada vez mais. A moça passou a habitar sua mente, a despertar sentimentos há tempos esquecidos. De repente, estava envolvido mais do que deveria. Após longo período com o coração fechado, viu nela uma mulher além de uma amiga. Fina, meiga, delicada, inteligente, humilde, reservada, de pouco falar e muito observar. Cabelo liso e longo, rosto fino e sereno, porte médio. Sempre vestida com simplicidade, calça jeans, tênis e uma blusinha de alça, abraçada ao seu material e uma bolsa pendurada de lado como se ainda fosse uma colegial. Uma linda flor no auge de seus 21 anos de idade...

Quase no final do semestre, em uma manhã bem ensolarada, sentaram só os dois em um banco de cimento embaixo de uma árvore. Conversaram muito sobre vários assuntos. Chegaram a fazer planos profissionais. Só que ele notou tristeza nos olhos da amiga, que realmente confessou:

– Terminei o meu namoro de três anos...

– Quem sabe, logo vocês reatam – desejou, mesmo não querendo isso.

– Não, desta vez não tem volta.

Aqueles momentos pareciam mágicos para ele. Estar tão pertinho dela, numa enorme vontade de acariciar aquele rostinho, afagar seu cabelo, beijar delicadamente aqueles lábios femininos. Só que não podia, pois Milena estava ali apenas admirando-o como um grande amigo. E ele precisava respeitar isso. Foi quando deu uma de filósofo:

– Sabe, Milena, a vida é feita de várias novelas. Quando pequenos, no jardim da infância, temos os nossos amiguinhos, mas depois aquele ano acaba e cada um segue um rumo. E assim nos demais anos escolares, na adolescência, na faculdade, nos ambientes de trabalho, nas residências que moramos; as pessoas vão entrando e saindo de nossas vidas conforme os papéis sociais que vamos assumindo ou deixando para trás. Vejo o fim desta faculdade como mais uma novela que está terminando. Não sei qual o próximo papel a vida irá me escalar. Mas uma certeza eu já tenho. Você é uma personagem que desejo que esteja para sempre no meu enredo.

– Que lindo, meu amigo! – exclamou ela, que, inocentemente, ao abraçá-lo, pensava que Leandro estava fazendo uma declaração de amizade; só que o rapaz desejava algo mais. Soltou-lhe, completando: – Você nunca irá me perder... Posso lhe fazer um convite? Vai passar o sábado lá na minha cidade, tenho muita coisa interessante para lhe mostrar.

Deu a hora do almoço. Despediram-se. Aquele gesto teve um peso muito grande para ele, que desejava não vê-la partir, e sim ficar em seus braços como sua mulher.

Naquela tarde, Leandro teve uma enorme vontade de escrever um poema. E, não se contendo, enviou-lhe por e-mail:

ANOTAÇÕES PARA UM POEMA AMIGO

De repente, deu-me vontade de fazer este poema.

Como um refrescante e sereno vento soprando a face.

O pássaro embalado, trazendo uma canção adormecida.

Um repente que surge nas esquinas dos nossos momentos!


Um poema tolo, que fale, grite a nossa amizade,

Como ondas calmas do mar, trazendo um barco

Com bravos marinheiros. Transportando nos porões

Recordações naufragadas em memórias esquecidas.


Que declame poemas futuros. Sonhos a serem atingidos.

Canções a serem compostas. Trilhas a serem escritas.

Das conversas que ainda surgirão nos bancos do jardim.

E dos papéis que ainda iremos encenar na novela da vida.


À noite, sua amiga respondeu: “Meu grande amigo!!! No início duvidei que aquelas palavras foram escritas para mim. Mas... fiquei sem palavras... Muito obrigada!!! Gostaria de ter esse dom que você tem... mas, infelizmente, só posso dizer ‘OBRIGADA’!”

Os dias que antecederam a visita à cidade natal dela foram cheios de ansiedade para Leandro. Iria conhecer o mundo de sua desejada, passear ao seu lado. Guaragudos era semelhante a muitas das cidades que ele já havia percorrido como jornalista do mundo rural. Um pequeno município de trinta mil habitantes, calma e bem interiorana, inclusive com várias construções antigas. O vento parecia passar mais lento pela rua central do comércio, onde pessoas frequentavam as lojas de sempre. A praça municipal de frente à igreja matriz. Bicicletas disputando espaço com carros. Um sabor de vida sem pressa para acontecer!

Lá, conheceu e almoçou com a simples e trabalhadora família comerciante de Milena. Sentiu o gosto de uma refeição quando todos os membros estão descontraídos e animados em volta da mesa.

Juntos passearam por vários pontos. Em seu íntimo, ele chegou a desejar morar e a viver ali. Poderia ter uma qualidade de vida casado e produzindo profissionalmente. Conviver com ela nas atividades e reuniões familiares de fim de semana. Sentar alguns momentos nos bancos da praça da matriz. Tomar sorvete na mesa da lanchonete, comer pizza ou lanche às sextas-feiras. Frequentar as festas beneficentes, os bailes ao seu lado. Até sua paternidade fora despertada; sim, ansiou gerar filhos com ela e criá-los ali. Estaria realizando o seu grande sonho oculto, que sempre fora de se casar com uma moça do interior! 

No final da tarde, chegou o momento de voltar à realidade. Mais uma vez a dura despedida de alguém que ele não queria que nunca mais saísse de seu lado. E tinha a consciência de que esse sentimento não era recíproco. Para Milena, Leandro era um importante amigo, por quem ela tinha uma admiração declarada e confiança, talvez a figura de um irmão, o que dificultava o rapaz se confessar, tendo medo de perder o afeto dela. Certamente, naquela noite de sábado, a moça iria encontrar sua turma, divertir-se, talvez “ficar” com alguém. E esse alguém poderia até ter a coragem que ele não encontrava dentro de si, conquistando-a como namorada. Sim, pois, para ele, um rapaz da faixa etária dela teria muito mais chances. Só lhe restava voltar ao seu apartamento e continuar a desejá-la ocultamente. Numa dessas noites, escreveu o seguinte poema:

SONETO PARA LIBERDADE

Hoje preciso escrever um soneto.

Um soneto que morra em si mesmo,

Sem transmitir este grande grito,

Permanecendo em meu silêncio.


Hoje preciso escrever um soneto.

Em um grito totalmente mudo,

Mais eloquente que a minha fala,

Capaz de arrancar esta angústia.


Hoje preciso escrever um soneto.

Que crie vida, força e coragem,

Visando cumprir um voo lírico.


Hoje preciso escrever um soneto.

Que rompa esta nossa distância,

Alçando voo rumo ao seu coração!


Uma semana antes da apresentação de seu trabalho de conclusão de curso, Leandro teve um encontro com a professora Silvia para acertar alguns detalhes. Em certo momento, ela observou:

– Leandro, estou notando você diferente nos últimos dias. Está acontecendo algo que posso ajudar?

A confiança e admiração por aquela professora era tanta que ele viu ali a possibilidade de se abrir com alguém. E realmente ela lhe dava essa segurança.

– Estou gostando de alguém...

– Poxa, que bom...! – exclamou Silvia em um carismático sorriso: – Ela já sabe? 

– Não, nem sei se devo contar...

– Mas por quê?

– Ela é dezesseis anos mais nova do que eu. Acho que não vai me aceitar. Sabe, recentemente fui conhecer a sua cidade. Os pais dela são poucos anos mais velhos do que eu. Isso aumentou ainda mais minha angústia, minha insegurança...

– Isso pode ser um preconceito seu. 

– Pode. O problema é que estou sentindo coisas que há muito tempo não sentia. Esses dois últimos meses foram diferentes. Passei a ouvir músicas pensando nela, apreciando suas fotos, tendo alegria por ela existir. Sinto a sua falta em todos os momentos. Caminho pela universidade tentando vê-la; quando não a encontro, entristeço; mas quando ela aparece amiúde, sorrio como uma criança. Gosto de sentar ao seu lado e falar, contar minhas histórias, ideias, planos... Sinto-me à vontade como só se sente ao lado das pessoas que se está gostando. 

– Realmente, você está envolvido por essa moça!

– Posso lhe contar quem é?

– Conta, conta...

– É a Milena.

– Jura?! Ela é uma moça incrível, diferente das demais. Muito ética, será uma grande profissional. Só que tenho achado ela tristinha, muito quieta ultimamente...

– Ela terminou um namoro de três anos com um rapaz da cidade dela. Mais um motivo que me dá insegurança de contar.

– Mesmo assim, penso que você deveria fazer uma confissão. É uma moça que vale a pena. Acho que tem tudo a ver com você, até para viver ao seu lado.

– Tenho medo de ela ficar chateada, perturbada com a minha confissão. A última coisa que quero é vê-la confusa por minha culpa. 

– Como sempre você coloca o bem-estar das pessoas a sua volta antes do seu. Continuo te admirando por isso, meu amigo. Mas... posso lhe fazer uma pergunta íntima?

– Sim, Silvia. Para isso você é uma das minhas melhores amigas.

– Durante todos esses anos, você teve outros relacionamentos amorosos?

Leandro ficou alguns instantes pensativo. Um antigo filme voltou a ser projetado em sua mente. E o enredo, ele entregou de bandeja à amiga:

– Por incrível que pareça para um homem admitir, não. Sabe? Na época da faculdade de jornalismo havia uma moça na minha turma chamada Marion. Embora não tivesse uma amizade com ela, fiquei imensamente apaixonado. Tanto que não me contive e fui me confessar a ela. Mas Marion me esculachou em público no meio de todos os nossos colegas, dizendo que eu não passava de um garoto mimado, criado pelos avós, e que não passaria de um jornalista medíocre. Ela, sim, era uma moça brilhante, de futuro certo, que seria uma profissional renomada. Eu era muito pouco para o nível dela. O fato é que isso criou uma ferida muito grande em mim. Todos esses anos não a esqueci. Todas as noites, imagino-a ao meu lado. Evito sair, ir a festas, bares, porque quando vejo os casais juntos, beijando-se, lembro que eu poderia também estar feliz com ela, mas na realidade ela não está ao meu lado. Imagino que ao final da noite todos aqueles casais vão se amar íntima e intensamente, enquanto vou voltar sozinho para minha cama. Não consegui romper esse amor por Marion; é como se eu fosse culpado por um crime que não cometi.

– Diga-me uma coisa. Você continua tendo contato, vendo a moça?

– Não, assim que terminou a faculdade, nunca mais a vi ou tive notícias dela.

– É, na verdade você não ama Marion. Você sofre pelo golpe da discriminação. E, para suportar ou maquiar esse sofrimento, você idealizou um amor irreal e passou a vivê-lo intensa e fantasiosamente como verdadeiro. Por isso, nunca se abriu a mais nenhuma possibilidade. Você gasta todas as suas energias psíquicas remoendo frustrações passadas, em vez de canalizá-las para as possibilidades futuras.

– Será, Silvia?

– Pode ser. Vou lhe contar uma coisa que acho que você não sabe. Antes de ser administradora de empresa e professora, estudei Psicologia. E acho que sei o que estou falando.

– Então por que agora me envolvi sentimentalmente por Milena?

– Pode ser que a convivência direta de vocês possibilitou-lhe conhecê-la no mundo real. A meiguice e tantas outras belas qualidades que Milena tem foram lhe cativando, mostrando que ela é diferente de Marion. E o sentimento que você está desenvolvendo por ela é verdadeiro e puro, rompendo inconscientemente suas fantasias, despertando novamente o seu coração. Por isso, acho mesmo que você deveria fazer uma confissão.

– Mas estou tão inseguro... Não podemos perder de vista que ela ainda é uma adolescente de 21 anos, ainda cheia de ilusões, sonhos de um amor por um príncipe encantado. Não um “tiozão”...

– Talvez isso seja preconceito seu – observou Silvia rindo. – Essa insegurança é típica dos apaixonados. Ainda mais pelo histórico que você tem. Faz o seguinte, escreve uma carta.

– Uma carta?!

– Sim, além de ser mais fácil para você, a coisa fica documentada.

– Realmente, você é demais, Silvia.

Na semana seguinte, Leandro apresentou o seu trabalho de conclusão de curso sobre a responsabilidade social das empresas. Na plateia, poucas pessoas, mas entre elas, Milena. Por várias vezes, olhou-a. Havia o enorme desejo que ela fosse sua namorada. E, ao final daquela apresentação, ganharia como presente um beijo na boca. Mas tudo o que ele ganhou foi um rápido beijo na face, de despedida, pois ela tinha um compromisso e não podia permanecer ali. Era o início das férias. 

Naquela mesma noite, Leandro não se conteve em escrever a carta que Silvia sugeriu:


Querida Milena,

Certa vez, Fernando Pessoa disse que “toda carta de amor é ridícula”. Vou discordar do poeta em partes. Pois, pra mim, ridículo mesmo é estar gostando de uma pessoa de quem vale a pena gostar e ela não ficar sabendo. Por isso, dou-me ao direito de sangrar o meu coração nesta confissão. Lançar estas palavras ao vento, sem desejar recolhê-las de volta um dia... Como diz Gonzaguinha, “quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda. Que palavra por palavra, eis aqui uma pessoa se entregando”...

Há coisa que acontece em nossas vidas, mesmo que não desejemos. Mas muitas delas merecem e precisam ser manifestadas... Durante muito tempo, estive com o meu coração fechado para sentimentos amorosos. Só que nos últimos três meses meu coração, sem pedir licença, resolveu gostar de alguém mais do que deveria. Foi tudo tão natural que de repente estava revivendo sensações de gostar, desejar, sonhar em ter alguém ao meu lado como mulher... Almejar ser feliz como eu achava que nunca mais seria, pois, como escreveu certa vez Lima Barreto sobre o amor, “já passei da idade de tê-lo”! Alguém que me faz tão bem que também desejei fazer isso por ela. E esse alguém é você, Milena.

Talvez esteja se perguntando por que fui gostar de você. Na verdade, já há um bom tempo tinha esse sentimento em oculto, mas você era comprometida. Porém, quando ficou sozinha, permiti ao meu coração renascer; aliás, ele nem pediu licença para isso, lançando-se em sua direção... Você é exatamente tudo que um dia eu sonhei pra mim; rosto e jeito angelical, meiga, delicada, esforçada, tem um jeito todo fascinante de ser e, dentre tantas outras qualidades que me atraem, você é muito companheira. Deve ser por isso que há muito tempo meu coração ficou adormecido, pois, nesses longos anos de solidão, não me apareceu ninguém com uma alma tão linda como a sua!

Aliás, por causa de você, voltei a fazer poemas, escrever contos, como há vários anos eu não escrevia... Lembrando Roupa Nova, “confessar sem medo de mentir que em você encontrei inspiração para escrever / vai lembrar de um cara como eu que sente amor, mas não sabe muito bem como vai dizer!”.

Sabe, eu tenho muitos planos e objetivos para realizar e, por alguns momentos, almejei tê-la ao meu lado para juntos dividirmos o que ainda há por ser conquistado; do mesmo jeito que eu gostaria de apoiá-la e incentivá-la em sua carreira e em todos os passos da sua vida – pois acredito que você também será uma profissional brilhante. Você é a pessoa que sinceramente eu gostaria de ter ao meu lado, não só formando um casal, mas também como o porto seguro um do outro. Mas sei que isso é uma utopia. Acho que a vida nos reserva destinos diferentes. Por isso, vamos esgotar este assunto por aqui. Aliás, não lhe peço nada, não lhe cobro nada, só que esta confissão morra aqui, ficando confidencialmente entre nós dois. Apenas, se possível, continue minha amiga-irmã, continuemos a ter as nossas tão gostosas conversas. Só o fato de que por você voltei a ter alegria no coração, voltei a escrever, a sonhar, a ser feliz, a ter esperanças, esse sentimento já valeu. Já deve ter cumprido o seu objetivo de me devolver o sorriso por causa de uma mulher!

Perdoe-me, mas realmente tive uma grande necessidade de lhe escrever esta carta, apenas para que você soubesse algo: que em meu coração você é muito mais querida e desejada do que pensa...!


Por inúmeras vezes, Leandro viveu uma grande angústia de enviar essa carta pelos correios ou por e-mail, não sendo capaz. Imaginava que ela já pudesse estar comprometida e ele não tinha esse direito. Não tiveram mais contato. No próximo ano, sua turma voltaria para o último ano de faculdade. Como ele eliminou um, não mais voltaria. Leandro teve a sensação de estar saindo da história, como já havia saído tantas outras vezes de cidades e círculos de amizades que havia passado, sem criar raízes!

Como se destacou durante o curso de administração, logo foi chamado para um emprego na capital. Algo estável, como ele desejava. Partiu levando uma estranha sensação com relação a Milena. Como se ficasse sua vida toda esperando por ela. E quando ela chegou, já era tarde demais. Ele tinha que seguir seu caminho. Infelizmente, sem ela.

Por que não tentou? Por vários motivos. Eles eram muito amigos. Ela havia acabado um longo namoro, ainda estava vivenciando uma espécie de luto da separação e precisava ter o seu momento respeitado. Talvez a diferença de idade fosse um empecilho; ela estava no momento de curtir a vida, conviver com pessoas de sua idade, com seus pares e diversões. Quem sabe, não... 

Diante de uma tentativa, poderia haver uma cumplicidade entre eles; ela lhe traria juventude e alegria para sua vida, e ele lhe oferecia paz e tranquilidade de uma pessoa um pouco mais madura. O medo da tentativa calou-o, em nome da manutenção da boa amizade. Teria sido um erro ele tomar uma decisão, sem ao menos ter tentado? Sem ao menos ter se revelado a ela, deixando-a também se manifestar? A história de ambos poderia ter sido outra e muito feliz? Hoje seriam marido e mulher? Estaria ele hoje livre desse vazio existencial e sentimental no qual sempre viveu? Indagações que ficaram perpetuadas sem resposta.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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