12 - VENTOS ÀS ORIGENS

  Era quase final de tarde. O taxi chegou à pequena cidade do litoral nordestino. Atravessou ruas, algumas asfaltadas, outras não. A maioria das casas com fachadas altas nas calçadas, cores vivas, alegres. Pessoas chegando do trabalho, algumas crianças brincando juntas, outras sentadas olhando celulares.

Logo ao passar a praça principal, o carro parou em frente de uma simples residência com portas abertas. Izabela desceu, o motorista colocou suas malas na calçada. Uma senhora simples, dona Ângela, vestido de renda, rosto enrugado pelo tempo e cabelos soltos e cumpridos, surgiu à porta.

- Filha, que surpresa – correu para um abraço apertado e longo que guardava muitas saudades.

Dentro da simples sala, com algumas poltronas, toalhas de renda, uma velha televisão e fotos de antigos parentes pelas paredes, elas conversavam animadamente. Seu pai, seu Manuel, um homem magro com marcas de anos de luta e chapéu, chegou da rua. A moça correu para abraçá-lo com carinho.

Mais tarde, jantando arroz e frango com quiabo à mesa da cozinha, seu pai lhe perguntou:

- Que bons ventos lhes trazem para nos visitar, menina?

- Não sei dizer se é uma visita, meu pai. Talvez eu fique pra sempre por aqui...

- Pra fazer o quê, minha filha? – Indagou sua mãe: - Nesse fim de mundo não há serviço pra uma moça estudada como você. Graças ao bom Deus, seu pai e eu conseguimos essa aposentadoria rural. Vivemos nessa casa alugada. Temos a ajuda de seus irmãos e o que você nos manda lá da cidade grande.

- Nesses anos eu fiz algumas economias e tenho aplicações em ações na bolsa de valores.

- Que bicho é esse? – Indagou seu pai sem entender nada.

Ela achou graça, respondendo com carinho:

- Depois lhe explico com calma, pai. Quanto ao futuro, Deus proverá!

Na hora de dormir, Izabela deitou-se naquele quarto simples. Dona Ângela veio cobri-la.

- Mãe, a senhora nem imagina como eu senti falta desses momentos...

Na manhã seguinte, a moça levantou-se cedo para tomar o café com seus pais. Depois, acompanhada de seu Manuel, foi visitar as residências de seus irmãos e irmãs, seus sobrinhos. Todos praticamente trabalhavam na Prefeitura ou no comércio local.

Logo após o almoço, ela decidiu andar sozinha pela cidade. Várias recordações de sua infância foram ressurgindo à memória. Chegou à praia, sentou-se em uma pedra à sombra e ficou observando os pescadores voltando do mar depois de um dia de trabalho, o comércio de peixes. O vento nas velas das pequenas embarcações, levando-as e trazendo-as. Assim como o vento um dia bateu na vela imaginária de seu barco, levando-a para uma cidade tão longe, em busca de seus sonhos e objetivos!

- A boa filha à casa torna – disse uma voz vindo por traz, interrompendo os pensamentos longínquos de Izabela.

Ao virar-se, a moça respondeu sorrindo.

- E a boa irmã também!!!

Levantou-se, abraçando alegre Corina, sua irmã do meio, muito parecida com ela. 

- Iza, estou indo lá para o Centro Comunitário, onde damos aulas de artes e reforços extracurriculares para a meninada – contou sua irmã, uma educadora social contratada pela Prefeitura: - Vem comigo conhecer.

Lá mais de cem crianças de todos os níveis, mas principalmente as humildes, participavam de várias atividades, oficinas, salas de aulas. Corina, sempre bem animada, foi lhe mostrando tudo, apresentando o pessoal. Até que chegaram à uma classe onde o pessoal estava guardando o material.

- Vocês já vão embora?

- É que a professora de matemática deixou o projeto para ter seu bebê. Não tem ninguém para dar aula pra gente.

A educadora, sempre com muitas ideias e animada, apresentou-lhes:

- Pessoal, essa é minha irmã Izabela, mora em São Paulo. Ela é uma craque em matemática.

- Dá aula pra gente, tia! – Pediu um menino.

Todos empolgaram-se, pedindo ao mesmo tempo.

- Eu nunca dei aula em minha vida – disse a moça à sua irmã.

- Mas você não vai negar um pedido de crianças, vai?

No início da noite, já em casa, Izabela estava exausta, pois nunca lidara com tantas crianças ao mesmo tempo. Mesmo assim, ela quis ajudar sua mãe preparar o jantar, como em outras tarefas da casa.

Na manhã seguinte, como seu Manoel já era aposentado, pode ir caminhar com a filha pela cidade, conversar descontraidamente. Rever aquela região do Brasil tão rica em manifestações culturais, festas juninas, Reisado, poesia popular, artesanato, capoeira, frevo, culinária e religiões afro-brasileiras. A região Nordeste é muito conhecida pelo seu aspecto cultural forte e marcante. É de lá que vem as características do nosso “jeitinho brasileiro”. As comidas típicas, a dança, as músicas, as paisagens mais bonitas de todo o país, e, claro, todo o sotaque e a malemolência deste povo sempre animado e festeiro.

Pai e filha sentaram-se no banco da praça e ele lhe contou histórias de seus antepassados. Parecia outro homem, não mais aquele senhor do passado que trabalhava o dia inteiro sem saber se a seca deixaria vingar sua roça; aquele homem que tinha a obrigação de sustentar toda a família, sempre calado, exausto pelas obrigações da vida. 

Ao voltarem para casa, faltava farinha de rosca para sua mãe terminar o almoço. Ela se prontificou à buscar. Ao sair da venda, uma menina simples, vestido e pés no chão, abordou-lhe à calçada:

- Tia, hoje você vai dar aula de matemática de novo pra gente?

Izabela a olhou com ternura o rosto da garota. Por traz daquela pergunta, estava o brilho nos olhos de uma criança procurando uma oportunidade de ser alguém na vida.

A rotina de Izabela passou a ser ajudar com alegria sua mãe nos deveres de casa. Passear com seu pai, às vezes, abraçada a ele, o que lhe deixava tímido. Ir às casas de seus irmãos e irmãs, brincar com seus sobrinhos. E nas tardes, dar aulas como voluntária no Centro Comunitário. Ali, parecia estar livre dos pensamentos que a incomodava em São Paulo.

Um mês passou-se. Certa tarde, após dar aula, ela foi tomar água de coco à beira da praia com Corina. Olhavam as pequenas embarcações, quando ela observou:

- Sabe mana, sou como um barco desses. Um dia o vento bateu, levou-me para muito longe. Chegou o momento e o vento trouxe-me de volta...

- E por que o vento lhe trouxe de volta, Izabela? De que você fugiu? Foi de uma decepção amorosa? 

- Não Corina, muito pelo contrário. Eu namorava um rapaz maravilhoso, tínhamos até planos de casamento. Tinha um emprego, um cargo de confiança acima do que sonhei um dia. Na verdade, não fugi de nada. Apenas estou procurando eu mesma. Quem sabe, eu me reencontre por aqui...

Voltando para casa, Izabela reparou escrito na fachada de uma casa: “Gabriela Rocha – Psicóloga Clínica”. Achou graça ter um consultório de psicologia naquela pequena cidade.

Mais meio quarteirão, ela ficou de fronte com um grande casarão parecendo abandonado, fechado a muito tempo. Recordou-se que, quando menina, ali morava um coronel dono de muitas terras na região. Seus filhos tinham as melhores roupas, melhores brinquedos, pessoas para cuidar deles e até professores particulares que vinham dar aulas à residência. As crianças da cidade só podiam lhes observar de longe.

Estava uma madrugada bem quente. Virando-se na cama, a moça sonhou com Eliseu dizendo-lhe: “É mesmo um TOC de Sofrimento. Não Iza, você não quer ficar livre dessa culpa”.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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