13 - O MÉDICO DE CABEÇA DE LOUCOS

  Um dos irmãos de Izabela passou à residência de seus pais. Ele era pedreiro da Prefeitura, mas também fazia serviços particulares. E tinha uma novidade.

- Pai, o velho casarão do coronel foi vendido. Vai começar uma grande reforma e eu já fui chamado para fazer um orçamento de mão de obra.

- E quem será que comprou? – Perguntou seu Manoel.

- Sei não, os novos proprietários não foram divulgados. O pessoal anda dizendo que foi um médico de cabeça de loucos.

No Centro Comunitário, os dirigentes cogitaram em fazer uma Festa Junina, mas não havia recursos para isso. Izabela, sentada em um canto da mesa, lembrou-se de quando conversou com Júlio sobre comunicação assertiva. Sugeriu criarem uma carta-ofício e saírem pelo comércio e moradores arrecadando doações. Prontificou-se a cuidar disso.

No dia seguinte, ela, sua irmã Corina e outras pessoas já estavam caminhando pela cidade. Ela em particular, teve algumas alegrias. Foi reencontrando amigos e amigas do seu tempo de criança e escola. Todos que ficaram ali mesmo na cidade, casaram-se cedo e tinham suas famílias.

No final da tarde, voltando para casa, Izabela parou novamente em frente da casa de Gabriela, a psicóloga. Olhou por um tempo a placa. Voltou à mente a frase de Eliseu: “Não Iza, você não quer ficar livre dessa culpa”.

Em um impulso maior, ela bateu palmas. Uma moça afrodescendente saiu com um sorriso simpático. 

- Oi, você é a Gabriela, psicóloga?

- Sim, sou. Posso ajudá-la?

- Muito prazer, meu nome é Izabela. Voltei a pouco tempo de São Paulo. Lá eu já fazia terapia. Penso em continuar – revelou a moça espontaneamente.

Estava anoitecendo, Izabela arrumando-se em seu quarto, quando viu sua Bíblia no canto da cama. Sentiu muita vontade no coração de estar novamente dentro de uma igreja. Arrumou-se e foi a um culto de uma dominação evangélica ali mesmo em sua rua. Depois voltou e dormiu com o coração cheio de alegria.


Na manhã seguinte, estava varrendo a calçada, quando parou um carro, descendo um casal, dirigindo-se à ela:

- Olá, você deve ser a Izabela - disse a moça: - Somos da imobiliária que vendeu o antigo casarão do coronel. Seu irmão foi contratado como mestre de obras e nos disse que você é economista, teve experiência administrando uma empresa e agora está de volta à cidade.

- Sim, acho que ainda ficarei um bom tempo por aqui...

O moço continuou o papo:

- Que bom saber disso. O novo proprietário do imóvel nos pediu para encontrar uma pessoa capaz de coordenar os custos, compras de materiais, pagamentos do pessoal, notas fiscais, enfim. Coisas de uns dois meses. Você teria interesse?

- Sim, um trabalho extra sempre é bom. Mas afinal, quem é esse proprietário? Dizem que é um tal de médico de cabeça de loucos.

A moça riu, respondendo-lhe:

- Esse povo fala demais. Desculpe-me Izabela, mas essa é uma cláusula contratual. Os compradores querem que suas identidades sejam mantidas em segredo.

A moça logo deduziu tratar-se de uma pessoa famosa que queria fazer dali um refúgio de descanso.

Izabela foi visitar o casarão junto com a arquiteta da obra. Ao entrar, uma grande sala de estar, móveis de época, cômodos altos como as janelas, corredores. Tudo muito velho, abandonado, empoeirando. Izabela voltou ao passado, quando menina, a realidade em que vivia na época. Lembrou-se de todas as vezes que passou ali em frente e ficava imaginando como a residência seria por dentro.

Suas lembranças foram interrompidas pelas palavras da arquiteta:

- Tudo isso será renovado por dentro. Inclusive, o proprietário pediu à imobiliária que fizéssemos um consultório na parte da frente.

- Deve ser mesmo esse tal de médico de cabeça de loucos como dizem!

E as duas deram gargalhadas.

Após a visita, Izabela foi à primeira consulta com Gabriela. A psicóloga a recebeu na sala de sua simples casa. Aquilo já a deixou à vontade por ser aconchegante. Depois de contar-lhe tudo que passou em São Paulo, disse-lhe:

- O que mais me tortura é a sensação que não consigo me amar, eu vivo procurando justificativas culpando outras pessoas por isto. É muito difícil mudar esse pensamento.

- Sabe Izabela, as pessoas gostam de dizer que isso é muito difícil. É um processo que exige tempo e perseverança. A grande dificuldade normalmente reside em se dar conta do problema. A pessoa internaliza suas "verdades" de tal maneira que não consegue perceber que está se autossabotando. Sem essa percepção, nenhum progresso é possível.

- O pior é que sei disso, Gabriela.

- Como você já tem consciência de sua própria realidade, só têm dois caminhos. Fugir de si mesma e continuar sofrendo. Ou encarar as mudanças e ressignificar tudo e seguir sua vida equilibrada.

- Agora vai ser diferente. Eu estou aqui porque eu quero estar aqui!

- E sobre as coisas que você construiu em São Paulo e deixou para traz?

- Sinto muita falta do Eliseu, o meu grande amor – correu lágrimas: - Mas eu tinha que me afastar para aprender a me amar primeiro, longe daquela codependência. Não queria ter com ele o que li em um livro que há pessoas que, talvez por necessidades inconscientes, o modo precário com que se aprende a amar e a ser amado na infância. Por isso, tem cônjuge que depende o tempo todo da aprovação do outro, como um filho inseguro.

- E vocês não tiveram mais contato?

- Não Gabriela, acho que depois de todos esses meses em silêncio, nem tenho esse direito de reaparecer do nada. De repente, ele até já encontrou outra na faculdade. Se tiver que ser, um dia Deus mandará em minhas mãos.

A vida da moça ganhou uma rotina. Levantar-se cedo animada, ajudava sua mãe em deveres domésticos. Papeava com seu pai descontraidamente. Ia para obra do casarão ainda antes do almoço. Dar aulas de matemática voluntárias no Centro Comunitário, Duas vezes por semana frequentava os cultos em uma igreja ali mesmo em sua rua. Terapia com Gabriela. Aos finais de semana, visitava os irmãos, irmãs, sobrinhos, amigos.

A Festa Junina foi realizada. No Centro Comunitário era uma alegria só. Mas eram os olhos de Izabela que mais brilhava ao ver tudo aquilo. Dias depois, ela confessou em uma sessão da terapia:

- Estou feliz com minha vidinha atual. Mas de tudo isso, o que mais me realiza são as aulas voluntárias no Centro Comunitário. Estar com aquelas crianças me faz muito melhor ao vê-las aprendendo, progredindo. É meio esquisito pensar. A antiga menina pequena e insegura que só queria ter mais atenção dos pais, cresceu e agora realiza-se dando amor e apoiando a tantas outras crianças.

- Já que você tocou nesse ponto, como vai sua relação com seus pais?

Nesse momento, veio a imagem de Eliseu à mente de Izabela no momento em que ele apresentava o trabalho na faculdade: “Muitos que possuem uma baixa autoestima, culpam seus pais que só lhes cobraram, julgaram-lhes, não acreditaram neles. Culpam os pais por dar tudo errado em suas vidas, por não terem uma boa autoestima. Em parte, estão certos. Mas os pais são os culpados sem terem culpas. Muitas vezes eles só repetiram o modelo comportamental que receberam dos pais deles”.

- Hoje os vejo de forma diferente do que na infância. E sou capaz de entender o comportamento deles pela grande responsabilidade que tinham comigo e meus irmãos. A luta pela vida diante de tantas privações. Eles só repetiam os modelos pelos quais foram criados. Hoje, adultos, estamos construindo cada dia mais uma relação de amor e cumplicidade.

- Muito bom ouvir isso, Izabela – disse Gabriela: - Você sabe que essa será uma reconstrução que precisará praticar diariamente. Um exercício que recomendo é o mapeamento das crenças. Pegue uma folha de papel e relacione suas crenças. Avalie cada uma delas, separe aquelas chamadas de fortalecedoras, que impulsionam em direção aos objetivos e desafie as demais, questionando-se para especificar o significado e, talvez, decidir pela mudança. O que exatamente você quer dizer com isso? Todas as pessoas do seu relacionamento têm essa mesma visão da sua crença limitadora? Se mudasse a sua crença limitadora, o que isto lhe proporcionaria? E você conseguindo isto, como se sentiria? E com esse sentimento, o que você faria de diferente? Quem vai se beneficiar com isso? Quem mais?

Certa tarde, Izabela ficou em um canto do Centro Comunitário observando sua irmã Corina, sempre alegre e pra frente. Lembrou-se também de Júlio da empresa que partiu sem medo, rumo a outro país em busca de seus sonhos. Em nossos círculos familiares, amigos e colegas de trabalho têm pessoas com padrões de pensamentos otimistas. Aquelas entusiastas que descrevem tão bem os seus sonhos que você, praticamente, consegue ver a realização e, surpreendentemente, depois de algum tempo, presencia a celebração do que foi anunciado. 

 Seria a motivação por um propósito maior, um projeto de vida? A moça sentiu em seu coração que estava encontrando o seu lugar no mundo. As mudanças em nossas crenças ocorrem com motivação. Formamos nossa identidade a partir das crenças e valores que orientam nossa vida. Estamos sempre em busca de mais escolhas e, a partir das modificações que ocorrem em nossas crenças, obtemos mais opções para orientar nosso comportamento frente às diversas situações.

A Prefeitura Municipal abriu concurso púbico para várias áreas. Izabela resolveu prestar para o setor financeiro, pois a reforma do casarão havia terminado e ela precisava reconstruir sua carreira profissional, ter uma renda garantida. 

No dia e local da prova, uma escola, ela caminhava de cabeça baixa checando seu estojo, quando trombou em alguém. Ao levantar a cabeça para pedir desculpas, surpreendeu-se:

- Eliseu, o que faz você aqui?

-  O mesmo que você, Iza, prestar concurso público, mas para psicologia. Estou no último semestre da faculdade e até sair uma possível nomeação do concurso, já estarei com o diploma. 

Foram interrompidos pelo último sinal de entrada para as salas e cada um deslocou-se para lados diferentes. A moça estava sem concentração em sua carteira. Respirou fundo e começou a responder as questões. Ao terminar, Izabela voltou ao pátio, esperou um pouco, mas ele não apareceu.

Em casa, a moça foi tomar banho. Sentiu que o aparecimento do rapaz mexera novamente com suas emoções. Um misto de alegria e um pouco de ansiedade em saber o que viria pela frente.

Arrumou-se, jantou com seus pais e foi ao culto da igreja. Sentada em comunhão, quando olhou para o lado. Eliseu estava sentado no outro banco com sua Bíblia à mão.

Ao terminar o culto, à porta do templo, trocaram algumas palavras:

- Eu moro aqui nesta rua.

- Posso acompanhá-la até sua porta?

Caminharam lentamente. Em frente de sua residência, ela disse:

- Não vou lhe convidar para entrar porque meus pais já estão dormindo.

- Relaxa, Iza. Amanhã também levanto-me cedo, preciso apresentar-me ao Posto de Saúde.

- Como assim, Eliseu?

- Na faculdade estou na fase dos estágios supervisionados. Consegui um clínico aqui em sua cidade.

- Mas como?

- Nada que um telefonema não resolva. O Esteves é amigo antigo do prefeito daqui, cliente dele.

Izabela ficou à porta. Ele foi afastando-se pelo meio da rua, quando virou-se revelando-lhe:

- Sabe por que estou aqui, Iza? É porque um dia minha mãe me pediu para não desistir de você...

Ela ficou sorrindo, apenas observando-o sumir no horizonte da noite.

O irmão de Izabela passou pela manhã na casa de seus pais para tomar café e comentou:

- O médico de cabeça de loucos chegou. Está lá no casarão.

- Bom, saber, hoje antes de ir dar aula no Centro Comunitário, vou passar lá, agradecer pelo serviço que ele me confiou e entregar a documentação da obra.

A moça chegou em frente do casarão. Apesar de ter as chaves, achou prudente não entrar e bateu à porta. Minutos depois, alguém abriu por dentro, surpreendendo-a mais uma vez.

  - Eliseu, o que você está fazendo aqui? Você não deveria estar hospedado no hotel? Você é conhecido do novo dono do casarão?

Ele deu uma risada:

- Entra, eu já lhe explico.

Sentados na sala, o rapaz revelou-lhe:

- Quem comprou o casarão fui eu. Ou melhor, o Esteves e minha mãe. A Corretora de Investimentos que você ajudou a implantar, está dando muito lucro e eles estão investindo na compra de imóveis. Quando comentei minha vontade de vir para cá depois de formado e desenvolver minha clínica no nordeste, tiveram essa ideia. Única coisa que lhes pedi foi que contratasse a melhor economista da região para cuidar da reforma.

Izabela o olhou por alguns instantes. De repente ela explodiu em uma gargalhada, perguntando-lhe:

- Então você é o tal de médico de cabeça de loucos?

- Pois é, Iza... É isso que as pessoas simples pensam de nós psicólogos.

E riram muito. 

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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