14 - TANTOS VENTOS EM TANTAS VELAS

 Durante à tarde, lecionando no Centro Comunitário, Izabela reparou algo. Nos cadernos de várias crianças, em traços simples, haviam barquinhos com velas se distanciando da praia, o sol sorrindo e nuvens. Desenho que também era feito por ela durante sua infância e adolescência. O desejo de ganhar o mundo!

No final do período, no portão, ela se despedia das crianças a sua volta, todas felizes.

- E aí, professora, você pode me mostrar um pouco da cidade? – Perguntou-lhe Eliseu aproximando-se.

Caminharam por um bom tempo, até chegarem à praia para tomar água de coco e ver o pôr do sol sentados no calçadão.

- Eu acho que lhe devo um pedido de desculpas por não ter lhe ligado ou dado notícias todos esses meses. Eu precisava desse tempo em silêncio para me reencontrar.

- Entendo e respeitei o seu momento, Iza. Mesmo sendo tão duro esse período para mim de muitas saudades – confessou o rapaz, fazendo uma pausa: - Você se reencontrou?

- Nesses meses foi como se eu reaprendesse a me amar novamente, querida por mim mesma. Voltar pra cá, reconstruir minha relação com meus pais, meus irmãos, sobrinhos amigos de infância, lecionar e conviver com as crianças, voltar à terapia decidida a não fugir dela, ou seja, desconstruindo antigas crenças sobre mim mesma, foi como em colocar diante de um espelho e dizer em voz alta minhas potencialidades e lugar neste mundo.

- Que bom ouvir isso. Sabe, quando você me disse que estava tendo vontade de morrer, eu percebi que era uma Pulsão de Morte, ou seja, não necessariamente o desejo de deixar de existir fisicamente, mas o desejo inconsciente de fechar um círculo e iniciar outro em sua vida.

- Agora vejo que era isso mesmo, Eliseu.

- Se você me permite, Iza, vou dizer. Você foi aquela menina que um dia ouviu que não conseguiria chegar a ser como aquelas personagens de telenovela. Você lutou muito, foi em frente, sacrificou-se, isolando-se em terras estranhas longe de sua família. Chegou lá, mas em seu inconsciente aquilo perdeu o sentido. Por isso, acredito que voltaram os medos e inseguranças que você evitava encarar e resolver, fugindo das terapias e de si mesma. Eu até dei o nome disso de TOC de Sofrimento.

- Nossa, naquele momento eu fiquei com tanta raiva de você – lembrou ela rindo.

- No fundo, eu só estava lhe desafiando a procurar sua essência. Foi o que você fez, embora longe de lá e de mim. Mesmo me doendo muito, Deus tocou em meu coração naquele momento, precisava deixar você partir em direção ao seu verdadeiro eu.

Foram interrompidos com a chegada de seu Manoel que parou sério em frente deles. A moça apresentou-lhe sem jeito:

- Pai, este é o Eliseu, filho da Marli, a minha amiga com quem eu morava em São Paulo.

- Izabela, vê se você não demora para voltar para casa – disse o homem de cara fechada, indo embora.

- Acho que ele ficou com ciúmes de pai – comentou o rapaz.

- Viu que fofo, ele só quer me proteger dos mal rapazes – riu a moça.

Eliseu levantou-se e a puxou pela mão:

- Vem, vamos fazer a coisa certa.

Tempos depois, estavam os dois sentados à sala com os pais dela.

- Nós agradecemos muito a sua família por ter cuidado bem de nossa filha lá em São Paulo – disse dona Ângela.

- Na verdade estou aqui hoje por um motivo bem sério. Seu Manoel, com todo o meu respeito, quero pedir o seu consentimento para namorar a Izabela.

- Eu não sei se é uma boa ideia minha filha namorar com um médico de cabeça de loucos – disse o pai sério.

- Garanto que é seguro – declarou Eliseu rindo.

Izabela e dona Ângela também riam. Seu Manoel rendeu-se, gargalhando. O rapaz ficou para o jantar. Depois, na despedida à porta da casa, a moça indagou-lhe: 

- Eliseu, como você pede ao meu pai para namorar comigo sem me perguntar se eu queria voltar a namorar com você?

- Precisava??? – Perguntou-lhe sorrindo, dando o beijo esperado por meses.

De volta à psicóloga, Izabela confessou:

- Antigamente, eu não conseguia me amar e culpava as pessoas por isto. No entanto, agora tenho consciência de como funciona as crenças limitantes que me foram impostas inconscientemente, aprendi a minimizá-las e conquisto dia a dia o meu amor próprio. E já sei as estratégias certas para alcançar meus objetivos.

Gabriela observou:

- Você Izabela, conseguiu que seu Ego se desligasse desse papel de quem não merecia nada, para experimentar outros papéis. No passado, quando essa Persona se aderiu ao seu Ego, certamente havia alguns ganhos secundários e inconscientes para ele. Ser a “vítima” da falta de atenção também possibilitava vantagens, entre elas a de não enfrentar o mundo de frente e assim de não se frustrar. No entanto, quando você começou a ter as crises em São Paulo, era porque sua Persona estava desadaptada e inútil a uma adulta que queria seguir crescendo.

Os dias foram passando, tudo correndo tranquilo. Izabela ajudando em casa, convivendo com seus pais, lecionando e colaborando no Centro Comunitário. Eliseu estagiando no Posto de Saúde e morando no casarão. Como ele tinha as tardes livres, tiveram uma ideia. O moço passou a desenvolver algumas atividades com a criançada no Centro Comunitário.

Saiu o resultado do concurso público da Prefeitura e ambos foram aprovados. Agora era esperar a nomeação no próximo ano.

Em uma tarde, após as atividades no Centro, eles resolveram passar no casarão, deixar algumas coisas e ir jantar à casa dela. Mas ao entrarem, ouviram um som duplo:

- Surpresa!!!

Eram Esteves e Marli sorrindo. O jovem casal correu para abraçá-los muito felizes.

- Viemos passar uma temporada, conhecer a cidade de vocês e essa região nordestina.

Sentaram-se para um papo animado. Até que Eliseu comentou:

- Como eu não estava esperando ninguém, não tenho janta. Vou buscar algumas marmitas.

- Eu vou com você, meu filho.

- Vai mesmo bem, curtir sua cria – brincou Esteves como sempre.

Saíram.

- Esteves, foi bom ficarmos sozinhos. Eu lhe devo um pedido de desculpas. Você me confiou um dia a direção de sua empresa e eu deixei a missão pelo caminho.

- Pelo amor de Deus, Izabela, nunca mais diga isso. O tempo em que você ficou no cargo, foi brilhante. E ajudou a implantar a Corretora de Investimentos que está dando muito certo. Só que aquele projeto de vida era meu. Você foi muito corajosa em deixar tudo e ir procurar o seu projeto de vida. E a admiro muito por isso!

- Fico aliviada e feliz por ouvir isso.

- Só que tem um detalhe, Iza. A Corretora está indo de vento em popa e aqui no nordeste há muita gente com capital para aplicar. Penso em trazer uma filial pra cá. Eu não posso me mudar, porque meus tratamentos são todos em São Paulo, preciso estar perto da sede da empresa. Além disso, toda a família da Marli mora lá, como os pais dela residem com a gente. Existe alguma possibilidade de você assumir a nossa filial?

- Esteves, fico honrada pelo convite e agradecida pela confiança. Mas eu estou feliz com o meu trabalho voluntário. Passei em um concurso da Prefeitura e aguardo a nomeação. Não sei, esse convite foi uma surpresa. Preciso pensar um pouco...

- Pense o tempo que você precisar. De repente, você não precise ser a diretora geral e se dedicar só à Corretora. Pode ser a supervisora da minha confiança e ter tempo livre para outras atividades.

No domingo, organizaram um grande almoço no casarão. Estavam os pais, irmãos, irmãs e sobrinhos de Izabela. Alguns de seus amigos mais próximos. Muitas conversas, crianças correndo, seu Manoel contando casos para Esteves. Dona Ângela papeando com Marli. Após o almoço servido por uma equipe contratada por eles, Eliseu pediu um minuto de silêncio:

- Pessoal, a vida foi muito dura comigo. Só que Deus é maravilhoso, permitiu-me conhecê-lo de verdade. Curou muitas de minhas feridas, devolveu-me minha mãe, avós, tios. Deu-me um grande pai, o Esteves, mesmo não sendo de sangue. Está me permitindo a formar na profissão que escolhi, como vocês dizem na inocência e acho muita graça, médico de cabeça de loucos, como a nossa amiga aqui, a Gabriela.

Todos riram. Ele continuou:

- Além de tudo isso, Deus permitiu-me conhecer essa filha Dele, a Izabela. Uma mulher maravilhosa que quero ter para sempre ao meu lado. – Ele tirou do bolso um estojo de alianças, virou-se à ela: - Meu grande amor, você aceita casar-se comigo?

Ela o olhou por alguns instantes, respondendo-lhe sorrindo:

- É claro que aceito casar-me com o homem da minha vida!

Trocaram as alianças e se beijaram aplaudidos por todos em uma só alegria pelo noivado. Anunciaram os preparativos do casamento para depois da formatura de Eliseu.

A animação corria durante à tarde. Em certo momento, em um canto da sala, Marli perguntou à Izabela: 

- Você está feliz com o casamento?

- Feliz e segura que é isso que desejo, minha segunda mãe! – Sorriu a moça: - É como criar a realidade que desejo em minha mente, visualizando o resultado a alcançar.

Se o domingo foi feliz, o dia seguinte nem tanto. O prefeito da cidade foi ao Centro Comunitário, reunindo todos os funcionários e voluntários, comunicando:

- Eu nem sei como dizer isso a vocês. O governo estadual cortou do orçamento do próximo ano boa parte da nossa verba social. Não teremos como manter este projeto aqui. Temos só recurso para mais um mês. Lamento...

A tristeza tomou conta de todos. Foi uma tarde de desânimo, mas não podiam deixar as crianças perceberem. 

Depois, caminhando em passos lentos pelas ruas, Izabela comentou:

- Isso não pode acontecer, temos que fazer alguma coisa.

- Com certeza. E se a gente fosse atrás de empresários, comerciantes, fazer promoções para arrecadar recursos? – Sugeriu Eliseu.

- A gente teria que fazer isso todos os meses. No começo pode até causar uma euforia. Depois, quem garante que eles continuariam ajudando?

- Eu só sei uma coisa, meu amor. Temos um problema pela frente. Só que nosso Deus é muito maior para prover a solução. Vamos ter fé!!!

Izabela chegou chateada em casa. Jantou e foi deitar-se mais cedo. Não conseguia dormir, pensando em todas aquelas crianças que ficariam desamparadas. Sem as aulas de artes para desenvolverem suas sensibilidades. Os reforços escolares, aumentando suas chances no futuro. As oficinas de artesanato, cursos de capacitação para os adolescentes.

Orou algumas vezes de joelho durante a madrugada pedindo uma direção a Deus e veio à sua mente o trecho da Palavra que ouviu no último culto em São Paulo: “E o Senhor lhe enviará para longe para o início de uma grande obra. Só não se esqueça uma coisa. Aconteça o que acontecer, Ele estará contigo!” 

Adormeceu quase já na manhã. 

Ao acordar, saltou da cama, arrumou-se, não tomou café, saindo rapidamente pelas ruas.

Chegou ao casarão onde Esteves, Marli e Eliseu tomavam café à mesa. Ainda de pé e sem nem dá um “bom dia”, ela foi direta:

- Esteves, dentro daquele seu projeto de trazer uma filial da Corretora de Investimentos para cá, existe a possibilidade de vocês apoiarem financeiramente uma ong para crianças e jovens?

- Com certeza, Iza. Hoje é fundamental que as empresas tenham um papel social na sociedade. E depois, com os contatos da Investidora, você conseguirá mais apoiadores que fazem isso para abater Imposto de Renda. Além de que, se feita corretamente, uma ong pode ter verbas governamentais.

- Senta menina, tome café com a gente – falou Marli.

 - Eu gostei de sua ideia, meu amor – observou Eliseu: - Só que toda ong precisa ter uma sede. E não pode ser em um equipamento público como o Centro Comunitário.

Esteves levantou os braços, sugerindo-lhes:

- Essa solução pode estar aqui em nossa volta. Este casarão é muito grande para só um casal. Daria um lindo espaço de educação e cultura.

- Lá nos fundos há duas boas casas dos antigos funcionários que ainda não reformamos – completou Marli: - Uma delas pode ser a futura residência de vocês.

- E a outra dos pais de Izabela que sairiam do aluguel – sugeriu o rapaz.

O jovem casal se olhava muito feliz.  

- Precisamos ir agora mesmo comentar isso para o pessoal – disse a moça empolgada.

- Aproveitem e falem para os pedreiros que reformaram o casarão virem conversar comigo sobre a reforma das casas – pediu Esteves.

Ao saírem, Marli comentou:

- Meu amor, às vezes ainda me surpreendo com sua capacidade de achar caminhos para tudo e sempre ser tão generoso pensando no próximo.

- Minha linda, eu só estou proporcionando a eles algo que todas as pessoas deveriam ter. Um chamado da vida para se viver!!!

O casal voltou para São Paulo. Izabela começou a reunir o pessoal do projeto social, discutirem e elaborar o estatuto. Aprovado, foi registrado em cartório. Assim como ela passou a correr atrás de outras documentações necessárias.

Paralelo a isso, a jovem economista coordenava a implantação da filial da Corretora de Investimentos de Esteves.

Eliseu coordenava a reforma das casas e terminava o seu estágio curricular no Centro de Saúde do município.

Todos unidos, incluindo os pais das crianças, foram adaptando, transformando os espaços do casarão para o funcionamento da futura ong. Salas de aulas, de arte, de música, uma biblioteca, um pequeno refeitório, pátio coberto para atividades esportivas. A clínica onde Eliseu atenderia e dividiria espaço com outros profissionais de saúde do projeto.

Um mês depois, uma pausa. Izabela com Eliseu foram para São Paulo assistir sua apresentação final na faculdade. Ele defendeu em sua monografia o que intitulou de TOC de Sofrimento. Foi aprovado pela banca, recebendo o diploma de psicólogo.

Dias após, Esteves e Marli vieram junto com o jovem casal para a inauguração da ong, já ficando hospedados em uma das casas reformadas.

Na manhã do grande dia, Izabela acordou e, ainda deitada, fez uma oração a Deus, agradecendo àquela obra. Ao sentar-se à cama, reparou um envelope na mesinha ao lado. Ao abrir, era uma carta escrita à mão pelo seu noivo:

“Meu lindo amor! Há algumas palavras que preciso lhe falar. Neste final de semana você está dando um grande passo na sua vida. Acreditou em você, no seu potencial. Ao tomar a frente e criar essa ong, você deixou a grande guerreira que habita aí dentro gritar alto. Gritar que deseja ser feliz doando-se a tantas outras pequenas vidas que estão começando a escrever suas histórias. Você resolveu se movimentar para isto. Digo movimentar porque estes foram os primeiros, mas fundamentais passos de uma caminhada que precisa ser alimentada todos os dias. Viver cada dia com o grande potencial que a vida nos oferece pelas mãos de um Deus que nos ama incondicionalmente! Você é grande e, ao retornar às suas raízes, retomou em suas mãos o destino da sua própria história. Uma história a ser preenchida com alegrias e vitórias. Que momentos difíceis ou frustrações passarão a ser coisas efêmeras e circunstâncias a serem vencidos e não mais farão ninho em sua mente. Você é uma guerreira. E guerreiros não desistem nunca! Tenho cada vez mais a convicção que quero ficar com você e envelhecer ao seu lado. Desta linda mulher em todos os sentidos. Desta guerreira que se levantou da zona de conforto e está guerreando por si, tomando importantes atitudes. Desta mulher tão feminina que sabe exatamente completar a minha alma e minha existência. Jesus colocou uma linda estrada a nossa frente. Vamos agora dar as mãos como sempre fizemos e percorrê-la pela história que Ele traçou para nós! Estou profundamente feliz e orgulhoso por você meu amor... Obrigado Senhor pela linda filha que concedeu à minha vida!!!”

Estava um dia ensolarado. A praça em frente ao casarão lotada de pessoas e de todas as crianças do projeto. Uma banda local tocava. Houve a presença de autoridades. Muitos fogos e aplausos quando Esteves e Marli foram convidados de surpresa e cortaram juntos a fita de inauguração.

À fachada do antigo casarão, agora todo reformado e imponente, estava escrito em letras grandes: “FUNDAÇÃO EDUCACIONAL VENTOS NAS VELAS”

No meio de toda a euforia, Eliseu abraçou forte sua amada:

- Iza, só falta organizarmos nosso casamento.

- Com certeza, meu amor. Esse é o projeto mais urgente de nossas vidas agora.

E beijaram-se apaixonadamente.

FIM

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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