11 - TOC DE SOFRIMENTO

 Izabela chamou Luiza em sua sala. Conversaram um pouco, até que ela pediu.

- Luiza, tomei uma decisão. Acho que me afastarei por algumas semanas da direção da empresa. Você pode assumir?

- Mas logo agora em que estamos na reta final de convencer o conselho sobre a implantação da Corretora de Investimentos?

- Por isso mesmo, tenho medo de fazer ou falar alguma coisa que não devo e colocar tudo a perder.

- Está certo, mas você vai estar ao meu lado nessa até o fim – disse a executiva sorrindo.

Logo após ao almoço, Júlio foi procurar Izabela em sua sala.

- Licença chefinha. Eu quero lhe contar sobre uma aula extracurricular que tive semana passada na faculdade – foi sentando-se entusiasmado em sua fala: - Foi sobre a Comunicação Assertiva, o modo de nos comunicarmos corretamente sobre o que queremos, o que desejamos. Uma habilidade que temos de expressar as nossas ideias, os nossos pensamentos, as nossas necessidades de uma forma clara, objetiva, precisa, respeitando esses nossos direitos, os nossos sentimentos, sem agredir os direitos dos pensamentos e o modo de ser das outras pessoas.

- Ainda não ouvir falar disso – comentou a moça sorrindo.

- Quantas vezes nos vemos numa situação em que tínhamos já uma opinião formada sobre um assunto, mas não conseguimos expor isso e depois pensamos assim: “Ah, devia ter falado aquilo né?” Ou oposto, já chegamos falando mesmo, sem pensar, não quer nem saber, e depois nos arrependemos: “Acho que falei bobeira”. 

- Isso é muito comum de se vê, Júlio...

- Na primeira situação nós temos uma pessoa que age com passividade, anulando a sua própria opinião, não sendo honesta com ela mesma em prol do outro. Por outro lado, nós temos uma pessoa que age com agressividade na comunicação, ela é mais impositiva, ela é mais autoritária. Por meio desse autoritarismo ela impõe a sua opinião sem pensar no outro.  Não importa, o outro que se vire.

- Acho que me encaixo na pessoa passiva – riu Izabela.

- Esses dois extremos são ruins. Então, é preciso existir um ponto de equilíbrio em que você consiga se colocar, expor, falar o que precisa ser dito e, ao mesmo tempo, respeitar a pessoa com quem você está lidando, e isso é ser assertivo na comunicação.

- Sabe Júlio, às vezes, queremos idealizar as pessoas como nós gostaríamos que elas fossem. Que elas mudem e sejam do jeito que desejamos. Mas não... Cada pessoa é de um jeito e como sua história e vivências lhe permite que ela seja. As pessoas não pensam como nós, não agem como nós, não passaram pelo que nós passamos, elas não acreditam nas mesmas coisas que nós. Nós somos diferentes. Só comunicando corretamente nossos desejos e necessidades, é que vamos conseguir o que queremos.

- Exatamente Izabela. A assertividade não nasce com a pessoa. Ela é uma aptidão. Você aprende, pode treinar essa habilidade. Ela evita conflitos, ela minimiza ruídos na comunicação. É mais fácil você compreender e você ser compreendido. A comunicação assertiva permite relações mais construtivas, tanto na vida pessoal quanto na vida profissional.

Chegou o grande dia de convencer o Conselho da empresa a autorizar a montagem da Corretora de Investimento. A sala estava lotada. Izabela e Luiza fizeram novas apresentações com gráficos e dados.

O conselho conversou um pouco entre eles e um senhor disse:

- Ainda estamos inseguros para autorizar esse novo passo em nossa empresa. Acho que precisamos de mais um tempo.

Izabela lembrou-se o que Júlio lhe ensinou sobre Comunicação Assertiva. E respondeu ao Conselho:

- Os senhores podem ter o tempo que quiser para pensar. Enquanto somos conservadores em dar passos a frente, o mundo aí fora está evoluindo, as empresas estão se renovando aos novos desafios e necessidades do mercado. Enquanto empresas como a nossa, agarradas ao passado, ficam para traz fadadas à falência, mingando os investimentos de sócios acionistas como os senhores. Afinal, tempo é dinheiro, já diz o ditado.

O pessoal do Conselho começou a murmulhar entre eles. A economista-chefe deu um tempo e perguntou-lhes:

- E aí senhores, podemos encaminhar a documentação solicitando autorização de funcionamento ao Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários?

Minutos depois, estavam todos comemorando à sala da diretoria.

- Izabela, você foi brilhante! – Exclamou Luiza.

- Imagina, isso foi uma conquista de toda a equipe. 

A festa continuava, quando Júlio pediu a palavra, falando com o seu entusiasmo de sempre:

- Pessoal, sei que o momento é de comemoração, mas quero aproveitar que estão todos aqui e fazer um comunicado. No final deste mês deixarei meu estágio. Termino a faculdade e ganhei uma bolsa de aperfeiçoamento nos Estados Unidos. Não vejo a hora de começar a desbravar aquele país!

Seis meses se passaram, Esteves e Marli voltaram da Europa. Muita alegria por parte de todos. Izabela, ao mesmo tempo que estava feliz, ficou com medo em ter crises de revoltas em frente deles.

  Já na cama, Esteves comentou com a esposa:

- A Izabela veio me contar que por razões pessoais teve que deixar um pouco a direção da empresa, mas não me contou o motivo. Sabe, às vezes fico pensando se não me precipitei dando uma responsabilidade tão grande para uma pessoa jovem como ela.

- Não foi erro Esteves, a Iza é muito competente no que faz. Com certeza, ela deve ter um bom motivo para pedir esse afastamento do cargo. Aliás, todos nós passamos por momentos que teremos que nos afastarmos um pouco da rotina. Vamos respeitar o tempo dela.

- Falou a mãezona – brincou Esteves.

Na tarde seguinte, Eliseu e Marli estavam sozinhos abraçados no sofá.

- Eu estava com tanta saudade desse colinho de mãe!

- Também estava meu filho. Tenho algo para lhe perguntar. O que está acontecendo com a Izabela? Por que você não apareceu ontem à noite e hoje veio de dia?

- Ela teve alguma crise de raiva ontem, mãe? – Perguntou o rapaz apreensivo, soltando sua mãe.

- Crise de raiva? Você está me assustando, Eliseu.

Ele contou tudo, inclusive com mais detalhes:

- Tenho estudado o caso, converso com meus professores. A levei em várias psicoterapeutas. Eu compro livros de autoajuda para ela, indico vídeos. Mas parece que nada ajuda.

- Pois é filho, eu convivi dois anos no mesmo quarto com ela. Sei que essa não é a verdadeira Izabela.

- Mãe, eu me sinto culpado por isso. Quando ela falou em fazer terapia, apoiei. Mas foram disparados gatilhos adormecidos em sua mente e agora ela não está conseguindo controlá-los.

- Nem de longe você pode pensar em culpa meu filho. Será o mesmo que desacreditar na própria profissão que você escolheu. Um dos papéis da psicologia é mesmo trazer à tona coisas que nos incomodam e resolvê-las. Uns vão lidar melhores com isso e seguir em frente. Outros vão ter comportamentos como a Iza, mas no tempo deles vão ressignificar e amenizar essas dores.

- Nossa mãe, você parece uma das minhas professoras falando.

Marli deu uma risada.

- A vida é uma grande escola. Tudo que Izabela está passando, eu já passei em meus anos de solidão e incertezas. Só que eu não tive ninguém para me ajudar, apoiar. Teve sempre que curar minhas dores sozinha e seguir em frente. Izabela, mesmo com os sofrimentos pelos fantasmas liberados de sua mente, tem você, têm a nós para ajudá-la. Essa é a sua missão, filho. E como vocês evangélicos dizem, ela está sendo passada pelo fogo por Deus para uma grande obra lá na frente. Por favor, Eliseu, por mais difícil que fique essa situação, não desista dela.

Depois da janta, Marli foi ao quarto de Izabela, onde a moça estava deitada pensativa.

- Iza, nesses dias você anda tão quieta. O que houve, minha menina?

Ela levantou-se a correu-se para abraçar a amiga e chorou muito. Sentaram-se à cama. 

- Tenho muita vergonha desse monstro de pessoa que me tornei, uma desequilibrada, uma louca. Não sou assim, sei que sou uma pessoa boa.

- Ei Izabela, não repita mais isso – Marli falou com firmeza, reparando o sofrimento no olhar da moça: - Eu melhor que ninguém aqui conheço a pessoa maravilhosa que tem dentro de você. A melhor amiga que já tive na vida. A filha que escolhi de coração. E tenho muita fé em Deus, a futura mãe de meus netos.

A moça volta a abraçar a amiga e a chorar compulsoriamente. Depois confessou:

- Estou cada dia mais angustiada.

- Sabe Iza, nossas angústias surgem no exato momento em que percebemos estar em uma situação totalmente sem saída. E, no meio de momentos angustiantes, encontraremos forças internas, soluções e forças para agir que nós mesmos desconhecíamos possuir. E a partir das soluções de nossas angústias, podemos alcançar a felicidade como uma perspectiva de melhorar de vida.

- Eu não consigo vencer isso. É muito maior do que posso aguentar. Parece que o vento na vela de meu barco tornou-se uma tempestade incontrolável!

- Sim, mas as tempestades incontroláveis vêm e passam, elas não ficam. E essa nós vamos passar juntas!!!

Eliseu estava no auditório da faculdade com seus colegas de classe apresentando um trabalho de final de semestre. Izabela entrou em silêncio e ficou sentada lá nos fundos, enquanto ele falava com imagens no telão:

- Muitos que possuem uma baixa autoestima, culpam seus pais que só lhes cobraram, julgaram-lhes, não acreditaram neles. Culpam os pais por dar tudo errado em suas vidas, por não terem uma boa autoestima. Em parte, estão certos. Mas os pais são os culpados sem terem culpas. Muitas vezes eles só repetiram o modelo comportamental que receberam dos pais deles.

Izabela lembrou-se da figura de sua mãe dizendo: “Isso é demais para você. Procure algo que esteja ao seu alcance.”

- Por isto, seus pais podem ter influenciado a sua autoestima – disse outra moça da turma: - Mas você não precisa estacionar, e sim realizar mudanças em você mesmo. Não é certo pensar que você está condenado a viver assim para o resto da vida. Agora você é uma pessoa adulta. É possível mudar todo esse quadro de sentimentos de auto rebaixamento se trabalhar consciente e intencionalmente para isso.

O professor deu sua contribuição, observando:

- Todos nós estamos nos construindo a cada dia. Mesmo que o nosso passado não tenha contribuído, agora a nossa autoestima está em nossas mãos. Aliás, se ninguém pode respirar por você, também não pode pensar por você. Sua cabeça depende dos pensamentos que você tem hoje e de como você enxerga o mundo a sua volta. Mesmo que ideias de autodesvalorização tenham entrado em sua mente você pode retirá-las. 

Ao terminar a apresentação, todos estavam comemorando a nota e final de semestre, quando Eliseu viu sua namorada e foi até ela.

- Podemos conversar? – Perguntou a moça sem jeito.

- Claro, Iza, vamos até lá fora.

No jardim iluminado da faculdade estava uma noite fresca. Sentaram-se em um banco em frente a fonte de água.

- Eu nem sei como começar, Eliseu. Estou morrendo de vergonha do meu comportamento, das coisas que tenho dito nos últimos meses. Por favor, eu preciso do seu perdão.

- Você não precisa me pedir perdão, linda – segurou suas mãos: - Estamos juntos em tudo.

- Você é um moço muito bom, não merece uma moça como eu. É por isso que preciso do seu perdão para eu seguir meu destino em paz...

- Não estou lhe entendendo, Iza.

- Eu quero terminar nosso namoro. Também vou entregar meu cargo na empresa e voltar para morar com meus pais no nordeste. Será melhor para todos.

Eliseu ficou de pé e começou a falar, gesticulando os braços:

- Quer dizer, você decide sozinha o que é melhor para todo mundo e os outros que se dane?

- Eu sou muito agradecida por tudo que você fez por mim, mas meu caso não tem jeito. 

- Não tem porquê você não quer que tenha jeito.

- Quer dizer que agora a culpa é minha???

Ele levantou a voz:

- É isso mesmo, Izabela. Sabe o que você tem? Algo que vou chamar de TOC do Sofrimento. Um Transtorno Obsessivo-Compulsivo pode ser crônico e duradouro com obsessões ou compulsões. Atrás de um TOC, esconde-se uma culpa muito grande. Inconscientemente, você se culpa pelo o que passou em sua infância. E não quer se livrar dessa culpa. Basta observar a construção recente de suas frases e palavras mais usuais, os indícios de crenças limitantes: “eu não consigo”; “eu não posso fazer isso”; “é difícil”; “isso não é para mim”; “todo mundo é assim”.

- E com que direito você pode falar isso, senhor aspirante a psicólogo?

- É fácil, todas às vezes que uma psicóloga fala em reação, em deixar aquela menina no passado, você abandona a terapia. Tudo que a gente fala para você fazer em termos de reação para sair desse estado, você já tem uma desculpa pronta para não reagir. É cheia de desculpas tranquilizantes, culpando todos a sua volta pelas as coisas não deram certo para você.

Izabela apenas o olhava com silêncio e com olhos em lágrimas.

- É mesmo um TOC de Sofrimento. Não Iza, você não quer ficar livre dessa culpa.

A moça começou a chorar muito, confessando:

- Eliseu, estou com medo, tenho tido cada vez mais vontade de morrer...

Na noite seguinte, após vários meses, Izabela voltou em um culto de sua igreja. Sentiu muito a presença de Deus em seu coração. Abriu sua Bíblia e leu o Salmo 93,19. “Quando em meu coração se multiplicam as angústias, vossas consolações alegram a minha alma”.

Na hora da pregação, a Palavra falou diretamente com ela:

- Deus lhe deu uma importante vitória profissional. Mas assim como você, o profeta Elias sentiu-se profundamente deprimido, mesmo depois de uma vitória sobre os quatrocentos profetas de Baal. Por causa do desgaste emocional durante a batalha, ele se deprimiu diante de uma simples ameaça de Jezabel. Ele se sentiu tão angustiado que chegou a pedir a morte para si mesmo, ou seja, chegou ao fundo do poço.

A moça chorava no banco. O pastor continuou:

- Em contrapartida às nossas vitórias, os processos de infelicidade também funcionam como um momento para amadurecer, pensar e repensar as atitudes, os projetos. Por meio dessa perseguição futura da felicidade, surgem muitas de nossas angústias, inseguranças, falta de humor, ressentimento, dor e ferida na alma. Lembranças traumáticas ou de perdas que dilaceraram ou fragmentaram o nosso ser. Na verdade, Deus permite isso em nossas vidas para deixarmos o antigo ser e nos tornarmos pessoas melhores buscando Suas misericórdias. Talvez o seu tempo nessas terras terminou. E o Senhor lhe enviará para longe para o início de uma grande obra. Só não se esqueça uma coisa. Aconteça o que acontecer, Ele estará contigo!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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