21 - O QUE VOCÊ FARIA SE NÃO EXISTISSEM LIMITES?

 Lá no Mato Grosso, com o tempo, Morielle continua a fazer psicoterapia, buscando desenvolver e praticar o autoconhecimento. Conhecer os seus limites e, principalmente, os seus gatilhos mentais, auxiliando no enfrentamento às inseguranças da meia-idade, ressignificando-as.

Em uma dessas sessões, conversando, sua psicóloga explica-lhe:

- Esta fase em que a você está, muitos chamam de crise de meia-idade com contornos desesperantes. Sempre achei errado essa mania que quase todos têm de se referir as fases de vida como crises. Eu prefiro chamar apenas de fases simplesmente. Porque são períodos naturais, os quais passaremos todos nós.

- Concordo com você, doutora.

- Sabe Morielle. Eu sei que a meia-idade é um período de autoavaliação existencial, que ocorre na encruzilhada entre a juventude e a velhice e que pode ter diferentes vivências. Para alguns, essa fase é um verdadeiro desafio, que as leva a comportarem-se de maneira diferente, seja por meio de pequenos ajustes na rotina ou mudanças drásticas na personalidade e crenças. Não escolhe gêneros, homens e mulheres passarão por ela. Tendencialmente as mulheres são mais penalizadas, pois a sociedade continua a impor-lhes a ditadura da beleza eternamente jovem, por oposição ao charme do homem em processo de envelhecimento. 

- Além de que quando os filhos crescem e saem de casa a mulher desenvolve a chamada Síndrome do Ninho Vazio, com as suas consequências inerentes, como aconteceu comigo – observa Morielle.

- Pois é... Do ponto de vista fisiológico, a menopausa e a andropausa continuam a ser os marcos. 

- Eu já estou cuidando disso com o doutor Yuri.

- Por outro lado, há uma pressão social em termos laborais, pois em nossa cultura, aos 40 anos, a pessoa é considerada velha para o mercado de trabalho. Existe a ditadura da imagem, onde a publicidade valoriza o corpo jovem, bonito e sem rugas, contribuindo para uma consciência muito presente da noção do envelhecimento, quando somos confrontados com a finitude da vida.

- Por isso, temos o apoio da psicologia para compreender quais são os acontecimentos da sua vida que possam causar sentimentos de tristeza, incômodo, depressão e ansiedade, pode contribuir para a sua melhora – diz Morielle sorrindo.

* * *

Sempre visionária e por estar convivendo com vários artistas em seu bar, Adriana passa a também investir na chamada Economia Criativa, ao se pensar em novas formas de desenvolvimento que ultrapassem a visão exclusiva de crescimento econômico, buscando estabelecer uma relação entre a tecnologia, a inovação, cultura, criatividade e sustentabilidade. Esse conceito une economia com criatividade, possuindo como matéria-prima o capital intelectual, isto é, carregado por valores simbólicos.

Empolgada, ela explica para Almir quais são os eixos da Economia Criativa:

- Desse modo, o eixo do Patrimônio inclui: expressões culturais tradicionais e sítios culturais. O eixo das Artes engloba: artes visuais e artes dramáticas. O eixo da Mídia: audiovisual e publicidade e mídia impressa. E, o eixo das Criações Funcionais abrange design, novas mídias e serviços criativos. Assim, todos os empregos e ocupações que se relacionam a esses setores são considerados como ocupações criativas.

* * *

Cátia aparece com sua companheira no início da noite de sábado ao Bar 50!. Sentam-se junto com Almir, enquanto Adriana toca piano. À certa altura, ela pergunta-lhe:

- Você está bem, meu amigo?

- Estou me sentindo muito realizado. Está tudo dando certo em minha vida. Tenho até medo disso acabar...

- Será que você tem querofobia?

- O que é isso, Cátia?

- A querofobia é uma fobia, o medo de ser feliz. Uma tendência de fugir de qualquer tipo de felicidade, pois ela se ressente frente a emoções positivas. Pessoas com isso evitam constantemente situações sociais como festas e encontros entre amigos. Rejeitam boas oportunidades promissoras de trabalho, por temer suas possíveis consequências. Creem que demonstrar felicidade as tornam pessoas ruim. Sentem ansiedade só de pensar em socializar, acreditando que tentar ser feliz é uma perda de tempo e temer que, ao se sentir feliz, algo ruim possa resultar disso. Evitam o hábito de ouvir música e assistir filmes de comédia. Necessitam manter uma rotina rígida e livre de “distrações”. 

- Credo Cátia, não sou assim não.

- Resumindo, esses possíveis traumas podem ter criado uma conexão inconsciente entre a felicidade e a dor. Por isso, pessoas que sofrem dessa fobia podem acreditar que algo feliz e prazeroso será necessariamente seguido de algo doloroso e vice-versa.

- Você, a eterna analista – diz ele brincando.

-  Veja o meu caso, Almir. Depois de me descobrir, casei-me com outra mulher. Nós homoafetivos não mexemos com a vida de ninguém. Mas somos atacados, ofendidos quase todos os dias. Principalmente por falsos moralistas oportunistas e/ou religiosos midiáticos que aproveitam para se promover em cima de nós. 

- Só que Cátia, a gente não vê esses mesmos hipócritas falarem do verdadeiro amor de Cristo, da verdadeira caridade, dos enfermos, dos famintos, dos órfãos, dos moradores de rua passando fome e frio.

- Exatamente, meu amigo. Só que, mesmo com esses ataques, a gente não desiste de ser feliz. A gente não desiste de sermos nós mesmas e que se dane a opinião dos outros.

- É por isso que lhe admiro Cátia!

- Almir, quando essas inseguranças baterem, lembre-se das perguntas que lhe fiz um dia. O que você faria se não existissem limites? Se pudesse conquistar qualquer coisa em sua vida, o que seria?

* * *

Sábado à noite, Morielle sai do banho, coloca um short e blusa sem manga devido ao calor constante do Mato Grosso. Joga-se no sofá para assistir um pouco de série. Minutos depois toca a campanhia. Ela vai atender um pouco surpresa por não estar esperando ninguém.

Ao abrir a porta, Yuri, de pé com uma caixa de pizza às mãos, diz-lhe sorrindo:

-  Eu trouxe para a gente comer juntos, enquanto conversamos sobre nossas próximas corridas e outras amenidades...

Ela dá risada, completando:

- Entra, Yuri. Eu tenho um vinho para acompanhar a pizza.

Durante um bom tempo, eles conversam descontraidamente no sofá. É uma amizade cada vez mais forte que faz muito bem um ao outro. 

Depois de umas boas taças de vinho, Morielle mais atirada, comenta:

- Eu não entendo como um médico famoso, boa pinta como você está sozinho...

- Sabe Morielle, eu já tive alguns relacionamentos. Minha profissão no início exigia muito tempo e minhas namoradas não entendiam isso. Fui deixando a vida pessoal de lado e o tempo foi passando.

O silêncio os toma por alguns instantes. O aparelho de som toca “Meu Universo É Você” do Roupa Nova. “Baby, mais que a luz das estrelas / Ah! Meu universo é você / Baby, ah, se eu puder ter a chance / Ah! Eu juro todo o seu amor merecer”.

- Estou criando coragem para lhe dizer algo. Desde a primeira vez que você entrou em meu consultório, encantou-me. Gosto muito de estar ao seu lado, de conversar, rirmos juntos, treinarmos, viajarmos para competirmos em corridas. Mas sinto mais. Tenho vontade de abraçá-la, acariciá-la, beijá-la, protegê-la e ser protegido por você. Às vezes, acordar ao seu lado. Só que ao mesmo tempo, nossa amizade é tão linda e tranquila, que tenho medo de tentar algo mais, não dar certo e perdermos todos esses bons momentos que construímos até aqui de apenas ficarmos em companhia um do outro.

Ela respira fundo, revelando com delicadeza:

- Yuri, para ser sincera, eu sinto as mesmas coisas com relação a você. Pela minha história e por tudo que me disse, também tenho medos de dar um passo a mais oficialmente. Jamais quero perder a sua amizade. Só que, quem disse que precisamos ser oficialmente?

- Não entendi, Morielle?

- A gente não precisa ter rótulos como namorados, noivos, casados, ou seja qual for. Na nossa idade podemos apenas nos permitir. Continuar a cultivar e alimentar nossa amizade. E, às vezes, ficarmos como é moda dizer hoje em dia. Trocar carícias, intimidade, viver intensamente esses momentos quando estivermos afim, sem a obrigação de um compromisso oficial ou cobranças no dia seguinte ou coisas assim. Sem a obrigação de darmos satisfação para ninguém.

- Eu topo. Compartilharmos nossas atividades físicas, as coisas que gostamos de fazer nas horas vagas, hobbies, ler e trocarmos bons livros dos nossos autores favoritos, assistirmos juntos a filmes, séries e reality shows. O que importará será praticar aquilo que nos dará prazer. Como diz o Lulu Santos, “toda forma de amor vale a pena”!

Eles se olham com ternura por alguns instantes. Uma força maior os atraem para um longo beijo. Em seguida, ela propõe:

- Sobre aquilo que você falou de às vezes querer acordar ao meu lado, se quiser, amanhã cedo poderá ser a primeira de muitas!

* * *

  Os dias vão passando corriqueiros. Adriana já tem as chaves do apartamento de seu namorado. Certa noite de segunda-feira, ela chega apreensiva com um envelope às mãos.

- O que foi, meu amor? Você está me assustando.

Sentam-se à mesa da cozinha, onde ele prepara a janta. Adriana conta-lhe:

- Hoje à tarde alguns executivos do meu antigo serviço vieram me procurar. Contaram-me que descobriram que fui vítima de um golpe com aquela reportagem e os responsáveis foram desligados da empresa. Fizeram-me um pedido de desculpas formal.

- Fico feliz que houve justiça, Adriana.

- Não é só isso, Almir. A matriz dos Estados Unidos convidou-me para passar um ano lá ministrando treinamento aos executivos da empresa que virão de todas as filiais mundiais. É um cargo de muita responsabilidade, uma honra esse reconhecimento. O salário é muito alto. Vão oferecer um intercâmbio de todo esse período na Universidade de Harvard aos meus filhos.

- E você aceitou? – Pergunta ele, temendo a resposta.

- Tenho que dar a resposta na sexta-feira, às 15 horas. Pensei que você pudesse vir conosco, amor.

- Vou fazer o que nos Estados Unidos? Nem se quer, sei falar inglês. Agora estou com novo emprego, cargo de supervisor, curtindo fazer faculdade. Não, o meu lugar é aqui mesmo. Desculpe-me.

- Penso que se eu for, será uma oportunidade de falar para esses executivos sobre economia criativa. Convencê-los a apoiar tantos artistas pelo mundo.

- Muito nobre sua intenção. Só que essa é uma decisão que só cabe a você. Não posso dizer nada.

- Será só por um ano. Se acaso eu for, você pode cuidar do Bar 50! para mim?

- O problema Adriana que esse um ano pode se estender por vários outros. Dentro de um ano muitas coisas podem acontecer. Quanto ao Bar, com certeza, você pode continuar contando com o Elias ou encontrará outro bom. administrador.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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