5 - A ANGÚSTIA DE UMA VIDA ESTAGNADA

 

Ao chegar em casa na madrugada, sua irmã lhe espera à sala. 

- O que foi, Eliane?

- Nossa mãe está tossindo demais. Precisamos ir para o hospital.

- Sim, ela está coberta pelo convênio médico de minha empresa. Vamos...

* * *

Na sala do hospital, Almir e sua irmã esperam os resultados dos exames. Naquele silêncio da madrugada, Eliane adormece na cadeira. Ele se levanta, indo até a entrada da unidade para dar uma esticada nas pernas. Lá, o porteiro ouve rádio baixinho. Tim Maia canta: “Paixão antiga sempre mexe com a gente / Basta um sorriso e pronto / Começa tudo outra vez...”

Sua mente viaja para a época do colegial. Lembra-se do jeito porra-louca de Cátia à época, do interesse platônico que teve por ela. Na verdade, cada momento, cada história romântica de nossas vidas, tenha ela sido vivida ou não, é uma memória registrada em nossa mente, recheada de fatos da ocasião. 

Ter reencontrado Cátia recentemente, compartilhado com ela há poucas horas atrás momentos tão descontraídos, é como se sua mente acessasse àquelas lembranças adormecidas. Algo que foi desejado, mas não vivido lá no passado. Inconscientemente, é como a volta de uma esperança no presente.

Aquilo é interrompido quando sua irmã lhe busca para ir à sala do médico, onde são comunicados:

- Bem, não farei rodeios. A mãe de vocês tem câncer nos pulmões. Sugiro que iniciemos o tratamento imediatamente. De nossa parte, faremos o melhor para ajudá-la.

* * *

Alguns dias se passam. Almir e sua irmã acompanham o agressivo tratamento de sua mãe...

E a rotina cotidiana precisa continuar. Naquele dia, ele passa a tarde no escritório da empresa onde gerencia os vendedores de móveis planejados. No fim do expediente, resolve não ir para casa, parando no Bar 50!.

Automaticamente, senta-se à mesa de sempre, pede a mesma bebida. Só que, diferentes das outras vezes, sente uma dor maior. O medo de perder sua mãe, o único porto seguro de sua vida desde sua infância.

Almir sempre teve uma vida estagnada, onde fazer a mesma coisa todo dia pode atingir um patamar exaustivo. Em muitos a previsibilidade torna a vida sem graça e contribui para o aparecimento de diversas condições psicológicas, como a depressão, a ansiedade e até o pânico. No caso dele, nunca modificou a maneira como faz as coisas, períodos de descontração, a não ser no Bar 50!. Nunca se interessou por um curso ou um esporte, sair com um colega de trabalho, viajar para um local nunca visitado. Sem objetivos a conquistar, modificar, buscar novas convicções, alterar suas metas.

Olha para a porta, desejando que Cátia apareça do nada para poder conversar, compartilhar aquela angústia. Só que desde que a encontrou, ele não teve a iniciativa de perguntar nada sobre sua vida. Nem se quer trocaram números de celulares.

O tempo vai passando e nada dela dar o ar da graça. Seu telefone toca, ele vê no visor que é Adriana. E como ela é uma potencial cliente, atende.

- Seu Almir, desculpe-me ligar fora do horário de atendimento. Eu queria muito conversar sobre os móveis do meu apartamento. Como meus filhos foram para casa do pai, estou com essa vaga na agenda. O senhor pode me atender?

- Agora, dona Adriana?

- Se for possível, eu mesma vou até o senhor. É só me dizer onde está?

- Estou no antigo Bar 50! – deixa escapar naturalmente.

- Eu o acho pelo aplicativo. Já já estou aí – diz ela desligando.

Almir começa a soar frio. O que uma mulher fina, alta executiva de uma grande multinacional vai pensar ao vê-lo em um ambiente daquele? Pelo menos, sua angústia inicial é trocada por aquela de momento.

Quarenta minutos após, Adriana entra e para à porta, observando todo o ambiente. Ele treme por dentro. Levanta-se, indo ao seu encontro. 

- Uau, que lugar mágico é este? – Pergunta ela com brilho nos olhos.

- Venha se sentar, dona Adriana. Eu já vou lhe explicar.

O garçom aproxima-se da mesa. Ela fica à vontade para pedir um drinque. Enquanto Almir lhe conta toda a história e glamour do local, a executiva ouve fascinada. Um senhor de camisa branca, colete preto e gravata borboleta, vem trazer a bebida em uma bandeja.

- Este é o Elias, dono do bar – apresenta Almir.

- Não por muito tempo, amigo. Eu comecei a trabalhar aqui muito rapazinho. Nos anos 80 quando eles quiseram fechar, eu assumi, rebatizei o nome e estou aqui até hoje. Só que agora estou muito velho para essa vida.

Adriana aponta:

- Olha, um piano de caldas preto.

- Ele está ali desde a fundação do bar. Muita gente boa e famosa já tocou nele. Se não me engano, há mais de cinco anos ninguém o toca.

- Eu posso?

- À vontade, senhora – disse Elias.

Ela vai ao piano e toca a música “She”. Todos param as conversas para ouvir. Ao terminar, eles a aplaudem e assobiam. Sem graça, Adriana volta à mesa e, sem falarem deles mesmos, os dois conversam algumas amenidades da vida.

* * *

No dia seguinte, Adriana conta para sua secretária o que fez:

- Sabe, apesar de ter sido uma coisa tão singela, a muito tempo eu não me sentia tão bem. Senti-me eu mesma.

- Fico feliz pela senhora, dona Adriana. Desta sua coragem de fugir do cotidiano, do normal.

- Pois é, nossos dias intermináveis são preenchidos por vários verbos: fixar objetivos, planejar, analisar, conhecer os problemas, solucioná-los, organizar e alocar recursos financeiros, tecnológicos e humanos, comunicar, dirigir, motivar, liderar equipe, tomar sérias e fundamentais decisões, mensurar e avaliar negociações. Usamos roupas das melhores grifes e marcas do momento, o celular e computadores de última geração. Viajamos o mundo inteiro em nossas férias, alimentando-nos nos melhores restaurantes. Aplicações bancárias serão gordas, carro do último lançamento. Muitos moram naquele apartamento em um bairro de classe média alta. 

- Concordo - diz a secretária.

- É aí que, mais do que sua chefe, como sua amiga, eu lhe pergunto. Mas será que você precisa ser igual a todo mundo? Será que você quer também ser mais uma na multidão de alienados consumistas, projetando sua felicidade no ter enquanto ela está no ser? Será que você quer ser mais uma bem-sucedida profissional, mas ter um coração vazio? Você optará por viver ou se deixará apenas ser vivida pela vida? Ou será que você será capaz de pegar a sua própria história nas mãos e provar que não precisa ser igual a todo mundo? Afinal, qual o legado que você deseja deixar na sua história pessoal?

Elas se olham por alguns instantes. Começam a rir e Adriana recomenda:

- Bem, deixamos esse papo filosófico de lado e vamos trabalhar...

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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