7 - O CONCERTO

Tudo certo... O piano em cima do palco. Ao lado, o coral com as cores da escola, vermelho e branco, com o maestro à frente. As cadeiras espalhadas pela pista, onde os convidados se sentariam. Noite quente, agradável dia de novembro. Denise, juntamente com seus pais, recepcionava os convidados à porta. O Clube já estava quase cheio. Não tinha visto uma pessoa entrar. Henrique... “
Será que ele vem?” – Pensava ela. Minutos depois, acompanhada por sua mãe e Carminha, foi para o camarim arrumar-se.

- Estou emocionada. - Disse Donana.

- Vai se sentar com Seu Valmir, Dona Donana. Eu ajudo Denise.

-Tudo bem, filha?  

- Tudo bem, mamãe. Pode ir. A Carminha me ajuda.

Donana saiu.

- Ele não veio...

- Ele quem, Denise?

- O Henrique...

- É, realmente eu não o vi entrando. Bom! Isso não importa. O que importa é que a noite hoje é sua. E hoje você vai brilhar!

- É, isso não importa. – Deu um suspiro: – Mas bem que eu queria ver ele na plateia.

                No palco a diretora fez a abertura.

- Boa noite a todos. Estamos aqui hoje para assistir ao concerto da nossa querida amiga Denise Arruda. Esse não será um grande concerto, como daqueles grandes músicos já consagrados mundialmente. Mas sei que será muito valioso na vida dessa jovem. Pois esse é seu primeiro concerto. Bem! Agora quero convidar para entrar no palco e tomar lugar ao piano, a jovem pianista Denise.

Muitos aplausos. Denise entrou ajudada pela amiga. E pegou o microfone:

- Muito boa noite. Quero agradecer primeiramente, por vocês estarem aqui. Como Dona Norma já falou, esse será o meu primeiro concerto. Confesso estar um pouco nervosa e muito emocionada. Vamos lá. Sei que todo mundo aqui, deve estar ansioso para ver-me tocar, como também estou eufórica para tocar. Mas antes gostaria que conhecessem um pouco mais da história desse instrumento. Passo o microfone a Dona Norma, que irá ler o resumo que preparei.

- Piano, um instrumento musical de cordas e teclado surgido no século XVIII e deve-se sua invenção a Bartolomeu Cristófori, italiano de Florença.  Os franceses reivindicam para si o aparecimento do primeiro piano, com o instrumento construído por Marius e apresentado à Academia de Ciências de Paris, em 1716, com o nome de “clavecin à mailles”. Em 1717, na Alemanha, Schoeter e Silbermann apresentaram instrumentos semelhantes aos de Cristófori e Marius. Coube, entretanto à Inglaterra, aperfeiçoar o invento. Em 1770 já havia pianos muito bem construídos, substituindo os antigos cravos, nas orquestras inglesas. O piano com duas cordas duplas surgiu em 1777, na França com Sebastião Erard e foi construído com cinco oitavas. Hoje conhecemos dois tipos de pianos: o vertical e o de cauda. Esse último é o que já conhecemos desde 1711, inventado por Cristófori; O piano vertical, que se espalhou rapidamente, por ser mais cômodo e menor, teria sido construído pela primeira vez por Domingos Del Mella,em 1739. no século XVIII, entretanto é que se desenvolveu decisivamente o aperfeiçoamento do nobre instrumento. Em 1856, Stenway, americano, lançou em Boston, os pianos de cordas cruzadas, com extraordinários resultados em sonoridade. Famosas tornaram as seguintes marcas de piano: Pleyel, Steinway, Ibach, Bechstein, Erard, Gaveau, etc. No Brasil temos as seguintes fabricações, já em grande escalas: Brasil, Liszt Schwartzmann, Essenfelder e Pianofatura Paulista, (SP) a maior da América do Sul, commais de 20 marcas e produção de 200 pianos mensais. Em Stutgart, na Alemanha o pianista Heinz Arntz bateu o recorde de resistência. Tocou durante 720 horas consecutivas, isto é, durante um mês. Seus dedos percorreram 110.000 quilômetros sobre as teclas.O regulamento do concurso concedia apenas duas horas diárias de descanso com proibição expressa de uso de estimulantes. Durante a prova Heinz fumos 3.600 cigarros. Agora o microfone fica à disposição de quem queira falar.

O prefeito da cidade fez um pequeno discurso e, entre sábias palavras, ele disse:

- Tomara que Denise seja uma pianista muito famosa e toque até no exterior!

A Delegada de Ensino, falou do grande valor, o que representava aquilo para cultura da cidade. Entregou um cartão de prata para Denise, que ela leu ao microfone: Denise: / Você lutou e conseguiu. Parabéns pela vitória! / Siga em frente! / Projeto Viver: Arte e Cultura.”

Um jornalista, conhecido na cidade como Seu Jário, também deu o seu recado. Entre muitas palavras, que emocionaram a todos, disse:

- Somos importantes à medida que acreditamos em nós, que somos capazes de concretizar um sonho. A família a motivou, e, motivada, ela nos dá uma lição maravilhosa. Quantos duvidam de si mesmo. Enquanto Denise Arruda acreditou em si. Todos nós somos capazes de vencer a vida quando vencemos nossas próprias limitações. Denise dá uma lição que deve ser exemplo em todo país. 

Dona Norma também usou da palavra:

- Eu quando quero homenagear alguém, eu faço uma crônica. Também fiz uma para Denise. Agora para finalizar, peço permissão para ler, com o fundo musical do coral.

E ela leu: 

PARA VOCÊ... DENISE.

 

Há dias comuns... que não sei como se passa ou o que se passa. São dias rotineiros. São na verdade o cotidiano. Como dizia Toquinho e Vinicius.

... Eu abro meu Neruda e apago o Sol.

Misturo poesia com cachaça, e sempre acabo discutindo futebol.

Acordo de manhã, pão com manteiga... Vou ao trabalho... encontro toda a garotada lá...

Semana... trabalho... escola...

Crianças... jovens... fim de Semana.

Aos sábados tomo uma cerveja e quando vem o sono, morre a noite e dia conta histórias sempre iguais... Guaraçaí... escola... casa... já é o meu cotidiano... Tudo já é natural...

Hoje... tudo é diferente... o mês é novembro... o dia é vinte e dois... na Semana é sábado... Todos reunidos... alegres... Tudo me parece natural... Mas não... Hoje a nossa garota... a nossa aluna... a nossa amiga... e porque não dizer, a nossa filha... Denise... realiza um sonho... após anos e anos de dedicação... de luta... de persistência...de resignação e de amor...

Das notas mal tocadas no começo... até o seu primeiro concerto...

Denise... exemplo vivo...

Nesta noite... queremos juntos... numa só voz... e em coro...dizer-lhe...

Denise... você é uma dádiva do Senhor... Muito Obrigada!!!

 

- Bem. Agora vamos ao recital. Irei tocar nessa primeira parte, algumas músicas amigas, mas conhecidas por todos e algumas valsas. Alguns números serão cantados pelo coral. Irei começar com uma música mexicana, “Besame Mucho!”

Começou a tocar. A plateia ouviu silenciosamente aqueles momentos de fascinação, aplaudindo a cada número. Depois de meia hora de concerto, ela disse:

- Agora vamos ter um intervalo de quinze minutos.

E saiu auxiliada por Carminha... No caminho para o camarim, Denise era cumprimentada pelos mais íntimos. Viu seu pai.

- Estou indo bem, papai?

- Ótima, minha filha. Ótima!

Ao entrar no camarim, só ela e Carminha, ela viu uma rosa vermelha sobre a velha penteadeira.

- Quem será que mandou? – Perguntou para a amiga.

- Deve ter sido algum fã.

Ao aproximar-se da rosa, percebeu um cartão. Abriu e leu:

 

DENISE

 

“Fiquei muito emocionado, ao ver seus dedos percorrerem o teclado do piano. Imaginei só eu e você, sobre o som de seu piano. Talvez algum dia isso aconteça. Mas por enquanto, peço apenas que dedique um número pra mim, com prova que você está gostando de meus bilhetes”.

Parabéns!

“UM FÔ

 

- É dele! – Suspirou.

- “Um fã”?

- É. Mas como você sabe, Carminha?

- Eu já conheço seu suspiro, quando você recebe um bilhete dele.

- Ele pede que eu toque uma música especialmente para ele.

- E você vai tocar?

- Vou. E já sei até qual será.

- Qual?

- Você verá... Mudando de assunto. O Henrique não veio. É, acho que errei mandando aquela carta.

- É, Denise. Pensando bem, você errou. Foi muito de repente. Ele nem sonhava com isto, recebeu de surpresa a sua carta, ou melhor. Uma direta daquela.

- É errei, mas não me arrependo nem um pouco. Ou melhor. Eu não me arrependo nem um pouco de meus atos.

 

Recomeçou o concerto.

- Agora vou tocar alguns números sertanejos. Acho que aqui tem muitos que gostam desse estilo de música. O coral de minha querida escola me acompanhará nesses números.

Tocou três músicas sertanejas e voltou a falar:

- Agora eu quero dedicar esse número a uma pessoa muito especial para mim. Eu não o conheço. É um fã anônimo, que diz me amar. Mas tenho certeza que um dia vou conhecê-lo. A música chama-se “Seu amor ainda é tudo”. A você, “Um fã”!

Começou a tocar, acompanhada pelo coral. Ao acabar, confessou:

- É, meu fã misterioso. Eu acho que também te amo...

Todos aplaudiram. A diretora voltou a pegar o microfone:

- Denise agora irá tocar uma seleção de músicas composta por ela mesma. Pois além de ser pianista, também é uma sábia compositora. E mais uma vez, o coral irá cantar as letras dessas lindas músicas, que falam de amor, alegria, tristezas e solidão. Músicas lindas, que certamente serão muito aplaudidas pela plateia.

Depois dessa seleção, a pianista acrescentou:

- Para finalizar, irei tocar uma música muito importante para mim. Eu gostaria que todos prestassem atenção na letra e entendam o que quero transmitir nela. Ela se chama: “Poema para um novo amanhecer”!

 

Espero que o Sol hoje

Nasça diferente,

Nasça alegre

Que as pessoas não olham-me

Como sempre olharam.

 

Quero hoje, viver como todos vivem

Não quero ser visto com dó

Desejo neste dia

Ser como todos são.

 

Peço-lhes apenas uma chance

De mostrar o que realmente sou

Não quero que pessoas se afastem de mim

E que me olhem com pena.

 

Quero amar, e ser amada

Hoje quero o amor

Peço-lhes que esqueçam o preconceito

E venham até a mim.

 

Hoje não quero ficar sozinha

Quero somente alegria

Viver um verdadeiro amor

Sem a ilusão de uma poesia.

 

Hoje quero viver

Visto como todos

Viver momentos de amor

Quero hoje, começar uma nova vida.

 Terminou o concerto.Foi cumprimentada por muitas pessoas. Entre elas um anão moreno lhe cumprimentou com um belo sorriso. A alegria em todos era geral. 

Já saindo do Clube, sendo empurrada pelo seu pai, Denise se deparou com uma pessoa que lhe tirou a atenção de todos.

- Parabéns...

- Obrigada, Henrique.

- Você merece...

Ele disse saindo. Ela tentou gritar: “Não vá”! Só que a multidão era muito grande.

- Bem. Agora vamos todos para o CESE, comemorar.

- É vamos... – Concordou ela desanimada por ele ter ido embora.

 

Henrique chegou ao bar, perguntando ao atendente:

- Tem Vodka?

- Tem. Quer uma dose?

- Não. Quero um litro!

* * *

 No dia seguinte, à tarde, Denise estava no seu quarto, lendo “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva, quando entrou sua mãe:

- Denise, tem visita pra você.

- Quem, é mamãe?

- Você não deve conhecer. É o Zé Baixinho.

- Sim, mamãe. Diga que eu já estou indo.

Denise ao chegar na sala, reconheceu-o. Era o mesmo anão que na noite anterior tinha lhe cumprimentado pelo seu concerto.

- Minha mãe falou que você quer falar comigo?

- É Denise. Primeiramente eu quero mais uma vez parabenizá-la por ontem.

- Obrigada, Zé Baixinho.

- Poxa. Você não imagina como eu fiquei contente de lhe ver dando aquele show. Foi uma emoção tão grande, que sei lá viu...

- Mas por quê, Zé? Você também queria ser pianista?

- Não é isso. Você sabe, Denise... Nossa classe, ou seja, os deficientes físicos, são muito discriminados. Muito rejeitados. Então quando eu vejo um de nós se realizar profissionalmente, eu vejo como uma conquista.

- É. Realmente as coisas para nós são mais difíceis.

- Pelo o que eu vi em suas composições, você ama muito uma pessoa, não é?

- Amo, Zé. – Confessou desanimada.

- E essa pessoa sabe disto?

- Sabe.

- Mas não corresponde?

- Não, Zé. Nem se quer me cumprimenta. Ou melhor, ele foge de mim.

- É. Sempre assim... Sabe Denise, hoje de manhã eu estive conversando com minha namorada, ela também percebeu que você ama muito essa pessoa. Nas descrições das suas letras, você fala de três pessoas. E tem um que você fala com mais amor. Ele também percebeu isso, agora ele também vai passar a sofrer por você...

Nesse momento, ela pensou: “Henrique não irá sofrer por mim. Mesmo porque ele tem tantas mulheres aos seus pés, que não terá tempo para pensar em uma paraplégica.

- ... sabe por que ele vai sofrer, Denise? Quer queira, quer não, é o nome dele, ou é ele que você está citando na sua música. Isso se tornará um delírio pra ele. Ele irá sofrer por ter lhe rejeitado.

- Só sei, Zé, que eu sofro muito com isto.

- Sabe o que você tem que fazer, Denise? Faz de conta que o esqueceu. Não tocar mais no nome dele. Não o procurar mais em versos. Não mais pensar nele. Não mais cumprimentá-lo. Se ele lhe cumprimentar, faz de conta que não ouviu, passa direto. Aí sabe o que vai lhe acontecer? Ele vai perguntar coisas para suas amigas, e elas vão dizer que você nunca mais falou dele. Ele virá até você, perguntar se você ainda gosta dele. E você responde: “Eu? Eu nunca gostei de você. Você deve estar me confundindo com alguém”. Ele passará por bobo. Ai ele que passará a correr atrás de você.

Que ideia ótima. Vou fazer isto!” - Pensou Denise.

- Você é tão nova ainda. Tem uma brilhante carreira musical pela frente. Tente esquecer ele. Um dia você vai encontrar um amor verdadeiro. Alguém que lhe ame de verdade. Eu levei quarenta e cinco anos pra encontrar uma namorada. Você também pode esperar um pouco. Eu sei que tem muito preconceito sobre nós. Já sofri muito com isto. Já fui muito rejeitado. Na época da faculdade, eu via as pessoas se amando e as moças se afastando de mim. As pessoas não gostam de nós pessoas com deficiências. Elas julgam umas às outras, pela beleza física e não pela beleza interior. Elas têm é vergonha de saírem com um deficiente, uma paraplégica.

- Verdade, Zé. Antes do acidente, era muito paquerada. Muito cobiçada. Depois do acidente, nunca mais ninguém veio até a mim. Eu vejo nos bailes, casais namorando, beijando-se. E eu olhando ali. Aquele lindo espetáculo que é o amor, e as pessoas não me deixam participar desse show, só por ser uma deficiente física.

- Então, Denise. Faz o que eu lhe falei. Amanhã ou depois, você verá; vai fazer sucesso. Ele virá atrás de você ai você diz: “A hora que eu quis, você não quis. Agora é eu que não quero.” Você ainda vai descobrir um alguém que lhe ame de verdade.

- É, você tem razão. Vou fazer tudo o que você falou.

- Isso. Agora tenho que ir embora. Tchau... - Ele ai saindo, quando virou e disse: - Afinal, para que a tristeza, se existe a alegria?

 Denise voltou ao quarto e pensou: “Como que pode tanta sabedoria, em tão pequeno homem!?” E, refletindo em tudo o que ele disse, ela compôs:

 

REDESCOBRIR

 

O amor chega.

Pede licença e entra.

Se estala, faz-me sofrer.

Eu estou amando você!

 

Crio sonhos que se tornam ilusão.

Por você sofro uma paixão.

Dentro de meu coração!

 

Vou mudar.

Esquecer a palavra Amar.

Chega de sofrer, chega de dor.

Talvez algum dia eu redescubra o amor!

 * * *

 Denise contou para Carminha o papo que teve com Zé Baixinho.

- Sabe que ele me deu uma boa ideia...

- Você vai fazer isto?

- Vou tentar, Carminha. Mas vai ser difícil. Quando a gente ama, enxerga tudo de bom naquela pessoa.  Eu não vejo ninguém melhor do que o Henrique. Vou tentar. Se ele tiver que ser meu, como disse o Zé, ele virá atrás de mim. Vou dedicar-me somente a minha carreira e aos meus estudos.

- É isso aí Denise. Agora vamos para o CESE?

 * * *

 Logo na entrada, Denise viu Henrique olhando-a. Disfarçou, olhou para outro lado e entrou, sendo empurrada pela amiga. Sentaram-se à beira do salão, em uma mesinha. Estava cheio de pessoas, muito gostoso! Aproximou-se da mesa dois rapazes, conhecidos de Carminha.

Ela os apresentou para Denise. Um era Rodolfo e o outro Mário.

- Querem se sentar, rapazes?

- Sim, queremos.

Estava relando um bom bate-papo entre eles, quando começou a tocar uma seleção romântica. Rodolfo olhou para Carminha.

- Faz tempo que não danço com você. Vamos dançar?

- Vamos. Mário, você faz companhia à Denise?

- Pode deixar...

Eles foram dançar. Mário disse.

- Eu fui ao seu concerto.

- É. E você gostou?

- Eu achei maneiro. – Mário era hippie: – Só não gostei de uma música sua. Aquela, “Poema para um novo amanhecer”

- Mas por quê, Mário?

- Sei lá, entende? Eu acho que não é nada daquilo. Não é assim. Muito é fantasia sua, entende? Não existe esse preconceito.

- É, Mário, você pode ter razão. Mas por que será que depois do meu acidente, ninguém mais veio até mim?

- É aquela velha história, né meu, “já que Maomé não vai até a montanha, a montanha vai até Maomé.” Você fica sempre pelos cantos, só olhando os outros. Você também tem que ir atrás, lutar pelos seus ideais amorosos.

- Eu já tentei. Fracassei. Por isso, tenho medo de fracassar outra vez.

- Aí, mais um erro seu. Se você errou uma vez, não significa que você irá errar sempre. Eu sei que em cidade pequena como essa, realmente tem muito preconceito. As pessoas aqui têm uma mente mais atrasada. Mas nesse meio, tem gente boa. Você vai encontrar um alguém. Quer ver como preconceituosa é você?

- Quero...

- Vamos dançar?

- Dançar! Mas eu não posso.

- Está vendo que você mesmo bota obstáculo no seu caminho.

- Realmente eu não posso, Mário. Como eu vou dançar de cadeira de rodas?

- Quer ver!? - Ele empurrou-a até o centro do salão: - Licença, Denise. – Sentou-se em seu colo. Passou o braço esquerdo atrás de seu pescoço; pegou a mão esquerda de Denise; colocou a perna esquerda no apoio de pé da cadeira. Colou seu rosto ao dela: - Vamos?

- Vamos...

Com a perna direita, ele começou a dar impulso à cadeira que começou a andar lentamente em pequenos círculos.

- O que eles estão fazendo? - Perguntou Carminha a Rodolfo.

- Apenas, dançando, como nós.

- Estar gostando, Denise?

- Muito. Nunca pensei que poderia...

- Você pode. Isso e muito mais. É só tentar.

Acabou a seleção. Eles voltaram para mesa.

- Vamos andar, Mário?

- Vamos Rodolfo.

- Obrigada, Mário.

- Não, Denise. Você não tem nada que agradecer. Apenas lembre-se de uma coisa: “Cobra que não anda, não engole sapo!”

“É, você tem razão, Mário. Pensando bem, eu vou continuar a fazer o jogo do Zé. Mas isso não significa, que eu não vou dar o bote em alguns sapinhos...” - Pensou Denise. 

* * *

 No domingo à tarde, Denise estava em seu quarto, pensando nos conselhos que Zé Baixinho e Mário haviam lhe dado. Por um lado, a ideia de fazer pouco caso de Henrique, era boa. Iria mexer com sua cabeça. Mas por outro lado, o que Mário lhe dissera, era válido. Se existia algum preconceituoso ali, era ela.

Sua mãe entrou:

- Filha, deixaram esse envelope pra você.

- De quem é, mamãe?

- Não sei filha, não tem remetente.

Deve ser dele...” - Pensou ela, abrindo e começando ler:

 

QUERIDA DENISE!

“Sei que demorei um pouco para escrever, pois tive que viajar. Mas aqui estou. Seu “Um Fã!” Fiquei muito emocionado quando em seu concerto, você dedicou-me àquela música. Comprei o disco que tem essa música e ouço ela quase o dia inteiro. Emoção maior, foi quando você disse que acha que também me ama.

Eu senti naquele momento, que você deve ter vontade de se comunicar comigo. Por isso, se você quiser, pode escrever-me uma carta. Escreva no envelope: “Para “Um Fã!”, e deixe na caixinha de correspondência da farmácia. Ficarei muito feliz se receber uma carta sua.”

Com amor,

“Um Fã !”

 Denise, na hora, pegou papel e caneta, respondendo:

 

QUERIDO “UM FÃ!”

 

“Aqui estou, alegremente respondendo sua carta. Eu não sei quem é você, onde mora ou o que faz. Mas sei lá... Sinto você cada vez mais perto de mim. 

Será que eu o conheço? Ou será que não? Seja quem for, já é bem-vindo em meu coração!

Por favor, escreva-me falando um pouco de você. Por que você não se revela logo, para compormos um sonho há dois?

Vou esperar a sua carta. Por favor, escreva-me breve.

Um beijo:

“DENISE”

 Dobrou a carta, pôs no envelope, pedindo para Carminha levar até a farmácia. 

* * *

 O tempo foi passando. Chegando o fim do ano. A classe de Denise, sabia que seria o último ano deles naquela escola. Por isso, planejaram uma excursão. Marcaram uma reunião para tratar os detalhes. Todos estavam animados. Principalmente Denise.

 * * *

  Sábado à noite, Denise foi para o CESE com as amigas. Carminha não pode ir, pois voltou para o sítio de seus pais. Lá, as amigas encontram seus namorados e a deixaram sozinha na mesa de sempre. Às vezes, algum conhecido passava, a cumprimentava e ia embora. Em um momento, quando ela estava solitária com seus tristes pensamentos, quem ela amava, passou por ela. Cumprimentando-a:

- Como vai, Denise?

- Bem. E você, Henrique?

- Vou indo...

E continuou a caminhar.

Ela parada ali, teve vontade de correr atrás dele, mas sua cadeira de rodas não alcançaria entre aquela multidão. Continuou ali, com tanta coisa para dizer, mas sufocadas em seu silêncio. Começou a tocar música lenta. Denise viu Henrique dançando com uma linda loura. A pianista solitária, lembrou de quando também dançou assim com ele.

Isso só aumentou seu sofrimento.

Seu irmão ia passando.

- Zezinho? Você está acompanhado?

- Por enquanto não. Por quê?

- Dá para me levar pra casa?

- Sim, vamos.

Em casa, sua mãe já havia dormido. Ela novamente só, foi para o seu quarto e escreveu:


ELEGIAS

 

É noite... Madrugada!

Mais uma vez, estou em meu quarto. Esse meu templo sagrado de solidão.

A tristeza, companheiras de todas as horas, está ao lado dessa pobre poetisa. Ela parece caçoar de mim, que de tanta ilusão em versos, desiludiu-se. Portadora de sonhos e composições que nunca foram correspondidas.

As lembranças se fazem presentes a todo instante. Sempre lembro de tudo o que se passou. Do que fiz e deixei de fazer. De minhas ex-escolas. Dos colegas que tive e perdi. Das paixões e amores que tive e não lutei por elas. Deixando o medo e a timidez tomar conta de mim. Que tola fui!

Como era bom o tempo de criança! Os amiguinhos. As brincadeiras. A escolinha. Minha bicicleta.

Fui uma criança, que soube a hora certa de tornar-se mulher. Depois poetisa. Mas quando descobriu o amor, sentiu necessidade de voltar a ser criança.

Minha vida é sempre igual...

Somente amor contido em versos, que todos aplaudem, mas ninguém os corresponde.

De casa para escola, da escola para casa. À tarde converso com uma amiga. Sempre ilusão de romance que não irão acontecer. De vez em quando, sento-me em meu piano e componho alguma coisa.

À noite, às vezes, saio. Vou para um bar acompanhada por uma amiga. Lá bebemos, comemos, conversamos e brincamos. Dou uma de louca, para espantar a tristeza, que é o que realmente o que sinto naquela hora.

Se fico em casa, vejo televisão. Não telejornal, pois de tragédia já chega a minha, rotina que nunca muda. De preferência, vejo programa humorístico.

Quando durmo, sonho com quem amo...

Fim de Semana, é tudo igual...

À noite vou para um barzinho com amigas. Depois o clube. Lá todas os caras são iguais. Todos dançam e se amam. Enquanto eu fico triste e sozinha pelos cantos.

Conhecidos passam por mim e perguntam: “Como vai? Cadê o namorado?”

Mas ninguém pergunta: “Quer namorar comigo?”

Vai indo. Entristeço-me, saio, vou para casa e, mais uma vez, componho...

Como eu gostaria de ser Denise, sem ser Arruda! Ter passado, sem ter lembranças. Ser alegre, sem conhecer a tristeza, a solidão. Nunca ter amado. Não ser poetiza, mas ser como todo mundo. Nascer, brincar, estudar, crescer, trabalhar e casar. Levar as contas na ponta do lápis. Se preocupar se o salário vai dar no fim do mês. Ter filhos. Criá-los, educá-los, vê-los crescerem. Aposentar-me e morrer. Isso sim deve ser vida.

Mas não! Sou poetisa. Sou triste e solitária. Nunca sou correspondida, ou entendida. Sou apenas compositora de elegias!

 

(16-17/05/87)


  Ao acabar, pensou: “Não sei se isso é uma crônica ou não. Mas é tudo o que eu sinto nesse momento.” 

* * *

 Foi para cama e adormeceu. Seu subconsciente começou a funcionar, sonhando: 

“Por um amplo gramado repleto de flores, ela passeava sendo empurrada por Carminha. As duas riam. Estavam felizes. Mas ela não sabia o motivo de tanta alegria. De repente, tudo escureceu. Carminha sumiu. Ficou só Denise e sua cadeira naquela extensa escuridão.

- Carminha? Carminha?...

Gritava, mas ninguém respondia. No auge daquele pesaderio, ela rolava na cama.

Na escuridão, vozes ferozes, como de dragão, sons de serpentes, começaram aparecer. Ela desesperada, tocava sua cadeira com todas suas forças. De repente uma luz, uma voz: “Se algum dia, sentires perdida com medo na escuridão, não apavore. Pois eu serei sua luz, no fim do túnel.”

Acordou assustada. Com sacrifício, passou da cama pra cadeira de rodas, indo ao banheiro, lavando o rosto e dizendo olhando para o espelho:

- Eu conheço essa voz...

Voltou para cama e deitou-se. Ao apagar o abajur, lembrou de quem era a voz:

- É claro. Essa voz é dele!

 No outro dia, contou o sonho só pra Carminha.

- Você reconheceu a voz?

- Sim, era voz de... – Revelou de quem era a voz.

- Tem certeza, Denise?

- Sim, tenho, Carminha.

- Então vamos esperar que a luz acenda logo no fim desse túnel, chamado Monotonia.

- Também espero...

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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