8 - NOVA VIAGEM DE TRABALHO

 Uma bola acertou a perna de Leandro, fazendo-o voltar para o mundo real. Um menino veio apanhá-la. Passou a mão na cabeça dele e voltou à empresa para uma reunião de diretoria, sendo comunicado pelo presidente:

– Na próxima semana, as nossas filiais do interior de São Paulo vão fazer uma convenção geral para os funcionários na cidade de São José do Rio Preto. E você, Leandro, foi escolhido para a conferência de abertura, fazendo um balanço do nosso projeto de responsabilidade social.

– Fico muito honrado com a lembrança, senhor presidente.

Após vários assuntos, a reunião foi encerrada. Leandro pediu para que o diretor de Comunicação Social ficasse mais um pouco, entregando-lhe um envelope, explicando:

– Isto é o currículo de uma velha amiga jornalista. Gostaria que, algum dia abrindo vaga no seu setor, por favor, o amigo desse uma olhada com carinho.

– Pra falar a verdade, no momento estamos mesmo com uma vaga aberta. E sendo indicada por você, Leandro, já é um excelente currículo. Pode ficar tranquilo que ela será muito bem-vinda ao grupo.

À noite no quarto, Leandro desligou a televisão durante a chatice da Propaganda Eleitoral Gratuita. O sono demorou um pouco. Em seu lugar veio novamente a fantasia. Como seria um período político partidário em Guaragudos?

* * *

Os domingos passaram a ser de muita união, quando todos se encontravam no Centro Comunitário para realizar festas, jogos, bate-papos. Durante a semana, as reuniões para discutir os problemas e apresentar soluções continuavam frequentes. 

Em certa ocasião, representantes do narcotráfico invadiram uma reunião, chegando autoritários.

– Aí, o nosso chefe mandou parar com essa bagunça de melhorar o “Morro”. Isso está prejudicando o nosso negócio.

– Agora somos nós que ditamos as regras do bairro – disse o coordenador da reunião. – E decidimos que neste bairro não tem mais espaço para vocês.

A população uniu-se em massa. Proibiu a entrada dos compradores de droga. Expulsou os traficantes dali.

O pessoal passou a frequentar as sessões semanais da Câmara Municipal, um antigo prédio situado na Praça Central da cidade. Propunha aos vereadores projetos para a melhoria do bairro. O número de frequentadores aumentava cada vez mais. Às vezes, a galeria interna e a praça ficavam lotadas. Principalmente quando na pauta do dia estavam em discussão ou em votação projetos de lei referentes a eles. E com essas pressões públicas conseguiram saneamento, asfalto, uma escola municipal, um posto de saúde, nomes e placas nas ruas. O estigmatizado “Morro dos Excluídos” passou a ter CEP e um nome oficial: Bairro União. 

A Cooperativa das Costureiras progredia cada vez mais. Além da parceria com as agora cinco lojas de Milena, passaram a vender para outras regiões e estados. A Ong de Reciclagem também ia bem. Recebiam o material de toda Guaragudos e cidades circunvizinhas para ser processado e vendido às indústrias. O poder aquisitivo local aumentou. Casas comerciais foram instaladas ali. Devagar as casas de madeira e os barracos foram sendo substituídos por construções de alvenaria. Outras, reformadas, pintadas. O caminhão do Depósito de Material de Construção ficava quase o dia inteiro entregando mercadoria naquele bairro. Seus moradores passaram a gastar mais no comércio da cidade.

O Bairro União fez escola. Outros bairros da periferia guaragudense seguiram o seu exemplo, uniram-se e mudaram sua realidade. Estava morrendo a cultura de acreditar desde a infância que as formas de organização do cotidiano pertencem de forma natural a uma esfera misteriosa superior; que os governantes e políticos são autoridades acima do povo. Conscientizaram-se do contrário: por serem pagos com dinheiro dos impostos, são, sim, funcionários do povo, que deve exigir e não abaixar a cabeça perante as necessidades a que têm direito. Deixaram de ser pacíficos, não mais permitindo que terceiros determinassem o cotidiano da coletividade. Aprenderam que quando se mora em um bairro que não agrada, não é necessário mudar dele; é possível unir-se e transformá-lo para melhor!

Certa noite, em reunião, um morador disse ao grupo:

– Nós conseguimos mudar a nossa realidade. Agora, que estamos entrando em um ano eleitoral, não acho justo que esse prefeito, que nada fez por nós, seja reeleito.

– Mesmo porque, além de não ter feito nada, ainda tentou nos atrapalhar – observou um dos presentes.

– O prefeito não quer o progresso da cidade – comentou uma senhora. – Se ela continuar pequena, ele mantém os eleitores de sempre e se perpetua no cargo. Se a cidade cresce, significa muito mais gente votando, novas consciências, o que é uma ameaça para ele. Lembram? Quantas empresas e indústrias já tentaram instalar-se na cidade e ele impediu.

Um jovem no meio da plateia também emitiu a sua opinião:

– Segundo li em um livro da Biblioteca Municipal, uma cidade bem dotada de infraestrutura oferece novos empreendimentos, permitindo às empresas existentes encontrar uma série de condições básicas para funcionar de maneira eficiente. Consequentemente, outras empresas se animarão a vir para o município. 

– E o que vocês propõem? – questionou o coordenador da reunião.

– Que lancemos um candidato nosso à Prefeitura. Alguém com nova visão, que represente não só o nosso bairro, mas toda a periferia de Guaragudos. Alguém comprometido principalmente com a educação de nossos jovens, com a saúde e bem-estar da população em geral. Que faça investimentos públicos para melhor funcionamento das empresas já existentes e nascimento de outras, possibilitando assim a geração de novos empregos!

Um mês passou. Fim de tarde. Leandro encontrou Paulinho no bar de sempre.

– Leandro, que belo trabalho você implantou naquela comunidade. Eles criaram união, acreditaram e mudaram a realidade não só deles, mas de toda a cidade. Despertaram para o poder local e agora até para uma consciência política.

– Pois é, Paulinho. Agora lançaram candidato a prefeito. Chegaram até a me convidar, mas eu não aceitei porque política nunca foi a minha praia. Escolheram um nome entre eles mesmos, em uma assembleia que reuniu toda a periferia. Um voto garanto que ele vai ter.

– Dois!!! – acrescentou o fazendeiro, rindo. – Mas me diga uma coisa. Por que você se afastou deles?

– Não me afastei. Minha missão foi atingida. Ensinei-os a pescar e caminhar pelas próprias pernas. Por outro lado, quando comecei todo esse trabalho, a mulher que eu amo me compreendeu, apoiou-me, não reclamou a minha ausência durante o tempo que precisei estar no projeto. Agora quero passar mais tempo, ser mais companheiro da minha guerreira.

Ao chegar em casa, encontrou Milena muito feliz. Tinha uma carta à mão.

– Leandro, acabo de ser comunicada de que a Associação Comercial de Guaragudos me elegeu a Empresária do Ano. Vou ser homenageada na próxima sexta-feira à noite, em cerimônia solene no auditório da Prefeitura, durante as comemorações do Dia do Comerciante. 

– Estou muito orgulhoso da minha mulher.

Abraçaram-se com força, depois um demorado beijo.

– Preciso de um favor seu. Quero todas as costureiras da Cooperativa na cerimônia. Vou pedir para elas ficarem nas primeiras filas.

Uma semana depois. O estabelecimento estava cheio. Autoridades locais. Todos os comerciantes da cidade, a diretoria da Associação, convidados, o pessoal do Bairro União. Em certo momento, Milena foi chamada ao palco. O presidente começou a discursar:

– Estamos aqui hoje para homenagear essa jovem empreendedora que, acreditando no potencial de nossa cidade e região, tem ampliado cada vez mais sua empresa idônea, gerando empregos, oferecendo produtos de qualidade, vestindo a nossa sociedade com bom gosto. Por isso, vou convidar o senhor prefeito para que lhe entregue o Troféu “Empresária do Ano”.

O chefe do Poder Executivo pegou o troféu. Milena aproximou-se do microfone, dizendo:

– Já que sou a homenageada da noite, quero proferir algumas palavras antes de receber o troféu. Agradeço muito por ser lembrada pelos senhores diretores e associados. Mas quando o nosso presidente mencionou a qualidade de meus produtos, isso me reportou às costureiras da Cooperativa do Bairro União, aqui presentes a meu convite. Se hoje tenho essa mercadoria de ponta, se nossa sociedade está mais bem vestida, devemos isso à criatividade e à produção delas, realizada com muito amor e dedicação. Elas são parte fundamental de uma grande transformação positiva que Guaragudos sofreu nos últimos tempos. Pessoas conquistaram melhor qualidade de vida e poder aquisitivo. Consequência foi que passaram a consumir mais no comércio local, alavancando nossa economia. Aprendi, sim, com isto. Aprendi que ajudar, estimular o pobre não é caridade, é investimento! Por isso, tomo a liberdade de pedir ao senhor prefeito a gentileza de entregar esse troféu a elas, em vez de a mim.

 Milena foi aplaudida em pé por um bom tempo. Paulinho virou-se para trás, dizendo ao ouvido de Leandro:

– Tenho que tirar o chapéu para sua esposa.

– Acho que o prefeito ficou contente pra caramba – comentou ironicamente Leandro.

Teve início a campanha eleitoral. De um lado, o prefeito querendo se reeleger, gastando um bom dinheiro com publicidade e cabos eleitorais. Do outro, o candidato do povo, um homem novo, que nunca fora político. Escolhido pela assembleia dos bairros da periferia, trazia consigo o dever de representá-la, se eleito; de olhar pelos interesses dos menos favorecidos na história de Guaragudos. Sem condições financeiras, sua campanha era modesta. Feita pelo próprio povo, de boca em boca. Nos comícios, alguém emprestava um velho caminhão para servir de palanque. Os shows eram feitos pelos artistas das comunidades, o que também era uma forma de eles expressarem sua arte. O clima eleitoral, como sempre, contagiou toda a cidade, só que dessa vez era diferente. De um lado estava o velho modelo de governo elitizado, que há muitas décadas se revezava no comando; do outro, uma nova proposta representando toda uma coletividade. E nas urnas, mais uma vez a voz do povo fez valer a sua união!!!

Nas ruas, a comemoração contagiava a todos. Leandro, Milena e Paulinho estavam em um canto observando.

– Também renovamos quase toda a Câmara Municipal. Só espero que o prefeito e novos vereadores não se contaminem pelos cargos, esquecendo por quem e para que foram eleitos – comentou o fazendeiro.

– Pode deixar, Paulinho – disse Leandro. – Se isso acontecer, o povo que o colocou lá será o mesmo povo que irá tirá-lo daqui a quatro anos. Aproveitando o momento, posso lhe fazer uma séria pergunta?

– Diga...

– Naquela época foi você quem mandou o material de construção para o Centro, não foi?

– Para aprender a pescar, eles precisavam no mínimo contar com as varas e as iscas – deu uma risada. – Bem, vou procurar minha mulher no meio desta festa.

Paulinho se foi. Milena abraçou o marido sugerindo:

– Você poderia escrever um livro contando toda a história dessa experiência de transformação. Afinal, você é um “velho” jornalista com habilidade de escrever.

– Até que não seria má ideia. Só que escrever um livro requer dedicação e tempo. E você sabe. Eu sou funcionário de uma rede de lojas. A madame da minha patroa não iria me liberar.

– Quem sabe? Se você for bonzinho com ela...

Beijaram-se. Leandro olhou novamente a multidão, exclamando:

– A democracia está finalmente nas ruas...!

– E o meu marido cada vez mais dentro do meu coração!!!

O livro foi escrito. Enviado para análise e aprovação por uma editora da capital, foi aprovado, publicado e comercializado em todo o país. Chegou até a ser adotado em várias universidades em cursos de Administração de Empresas, Sociologia, para citar alguns. Inspirou outras transformações em várias cidades. Leandro, tendo em vista que aquela história não era dele, e sim do povo, destinou os direitos autorais a novos projetos sociais. 

Tudo corria tranquilamente, quando ele foi comunicado de que, por indicação do projeto de lei do prefeito e aprovação unânime dos vereadores, a Câmara Municipal lhe concederia o título de “Cidadão Guaragudense”. A sessão solene estava lotada. O povo compareceu em massa para homenageá-lo. Ao receber o título, em seu discurso, após os agradecimentos e fazer uma retrospectiva do projeto e seus frutos, ele finalizou dizendo:

– Vejam bem, senhores. Quando me formei em Administração de Empresas, recebi um bom convite para trabalhar em uma multinacional. Hoje eu poderia ser um alto executivo, longe daqui. Se fiquei nesta cidade, foi porque houve uma moça que me recebeu em seu coração e aceitou o desafio de dividir sua vida comigo. Uma guerreira que soube entender os meus ideais, incentivou-me, muitas vezes abriu mão da nossa privacidade e fins de semanas para eu estar lá na comunidade, estimulando os injustamente menos favorecidos. E os resultados todos aqui já conhecem. Então, se fiz o que fiz, o grande motivo foi o amor que sinto e o amor que recebo de minha esposa. Milena, meu amor, este título dedico a você!!!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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