8 - A PRIMEIRA NAMORADA

  Para Henrique aquilo tudo é novidade. Sua primeira namorada. Vários sentimentos novos como gostar e ser gostado por alguém; carícias, sentir-se bem ao lado de alguém. Sentimentos que se tornam novas motivações na vida do rapaz.

Juntos passam a frequentar lugares públicos como bares, restaurantes, teatros, cinemas. Ao aparecerem abraçados como namorados, tornam-se o centro das atenções; várias pessoas com olhares de espanto; outras com os olhares de admiração pelo casal. 

Henrique em algumas ocasiões necessita do auxílio de sua namorada, como por exemplo, cortar os alimentos de seu prato, tomar líquidos onde não tem canudinho, apoio para subir escadarias sem corremão, dentre outros. Esses auxílios são tão rotineiros, passam a ser uma atividade natural para ela, que a limitação de seu namorado parece sumir.

As duas famílias também estão felizes com essa união. Os pais, o irmão de Murielli e a mãe de Henrique aproximam-se cada vez mais.

* * *

De bem com a vida, Henrique está feliz no trabalho e no amor. Na empresa, o programa de computador que ele criou foi aprovado para desenvolver e em fase final de teste. Até que certo dia, ele chega para trabalhar. Liga os computadores e algo está errado.

- Passei por aqui só para lhe dar um beijinho de bom dia, meu amor! – Diz Murielli, aparecendo à porta.

- Não posso acreditar! – Exclama o rapaz de olhos fixos no monitor.

- Poxa, que foi que eu fiz?

- Desculpe, Murielli, não estou me referindo à você. Meu programa foi todo danificado. Isso tem cheiro de sabotagem.

- Está brincando... – Diz entrando, indo também para o monitor: - E agora?

- Eles pensam que estão lidando com um amador. – Vai até sua bolsa, retira uma hd portátil de armazenamento de dados e mostra à ela num sorriso: - Será que eles pensam que eu iria desenvolver todo um programa para uma rede de computadores sem fazer cópias de segurança...?

De fato, Henrique passa sofrer golpes de inveja, comentários maldosos por parte dos rapazes, ser motivo de algumas gozações; alguns até pelos corredores, simulam esbarrarem nele para derrubá-lo ao chão. O que no fundo, revela em seus colegas de trabalho uma forma de frustração, tristeza, mal-estar e acanhamento, é um sentimento intimamente ligado à sensação de inferioridade pela capacidade de Henrique, tanto profissional quanto por estar com Murielli. Rapazes que revelam seus desequilíbrios íntimos, considerando-se inconscientemente alguém menor do que o próprio Henrique. E para eles, sabotá-lo, atacá-lo ou humilhá-lo é quase um instinto de sobrevivência. Quando alguém de destaca por suas virtudes ou competências especiais, certamente despertará a hostilidade alheia.

Murielli também passa a ser perseguida com investidas violentas de alguns rapazes que não se conformam que, segundo seus pontos de vista, “um deficiente teve a capacidade que eles não tiveram em conquistá-la”!!! E essa inconformidade é ainda maior em João.

Certo dia, ao entrar na copa para beber água, Murielli depara com algumas de suas colegas conversando sobre baladas, conquistas e namoros. Uma delas comenta em tão de desprezo:

- Pois é... Enquanto procuramos rapazes de primeira, outras preferem ficar com refugo...

- Ou com coisa que nem pra refugo serve!

Todas riem. E assim passa a ser. Suas colegas de trabalho sempre traçam comentários desestimulantes e preconceituosos. Murielli já não é mais convidada para os barzinhos após o expediente e tradicionais passeios e festas nas casas do pessoal. Só que isso já não mais importa à ela. Está feliz ao lado de Henrique. Passam a viver um para o outro, descobrindo-se mutuamente cada vez mais com lirismo e encantamento.

* * *

Numa manhã de sábado, o casal passeia de mãos dadas em um parque público. Muito sol, muito verde, pássaros, crianças e pessoas caminhando em paz. Outras praticando corridas e exercícios físicos. Em um momento, Murielli pergunta:

- Henrique, você tem vontade de mudar um pouco sua aparência?

- Como assim, amor?

- Tirar essa barba, um corte de cabelo mais descolado, ter algumas roupas mais sociais... Ser, digamos, um homem mais sério!

- Nunca pensei. Na verdade, nem sei como fazer isso...

- Mas eu sei. Confia em mim.

Murielli o leva em um salão de cabeleireiro. Pede para raspar-lhe a barba e modernizar o seu corte. Na saída, pergunta:

- Parece que você rejuvenesceu uns dez anos. Gostou?

- Gostei, mas tem um problema. Com minha coordenação motora não posso me barbear sozinho. Não tenho como ficar sem barba.

- Tem sim. Agora você tem uma namorada para lhe barbear e lhe encher de carinho sempre. E terei o maior prazer em fazer isso e tudo mais por você. Vamos que o dia só está começando.

Passeiam por várias lojas, experimentam e compram várias roupas e sapatos. Murielli parece estar mais empolgada que ele. O relacionamento faz cada vez mais bem à ela. Vê em Henrique muita pureza e sinceridade, o que ela sempre procurou em um homem. Muito mais que aparência física ou status social, seu namorado representa-lhe segurança para um relacionamento estável e para sempre. Alguém que só precisa ser amada para também fazer feliz o seu amado!

- Tudo isso é muito bonito, mas há um problema. – Diz Henrique com as sacolas nas mãos de pé no portão de sua casa: - Não tenho como lhe pagar, Murielli...

- E quem disse em pagar, Henrique!? É tudo presente. Digamos que eu esteja investindo no casal...

- Mas você me deu tantas coisas boas e caras. Eu não posso lhe dar quase nada.

- Não pode hoje. Mas no futuro, quem sabe...

* * *

O tempo continua a passar. Uma empresa parceira de onde o casal trabalha, convida Murielli para uma recepção de alto nível na mansão de um de seus proprietários. Não teve dúvidas em também levar o seu namorado, vestido num belo terno. Aliás, é a primeira vez que Henrique coloca uma roupa dessa natureza.

De fato, o lugar é uma bela mansão, com muitos importantes convidados finos e importantes nas altas rodas. Quando o casal chega, todos param para observá-los, mesmo que disfarçadamente, aquele rapaz de andar e movimentação fora dos padrões estabelecidos como normais. Mas tudo volta ao normal.

Em certo momento, Henrique vai ao banheiro. O dono da residência aproxima-se de Murielli, comentando:

- Muito simpático o seu irmão e muito digno de sua parte trazê-lo para o seio de nosso convívio social...

- Ele não é meu irmão e muito menos estou lhe fazendo um favor. Henrique é meu namorado. O homem que eu amo e pretendo me casar!

- Imagino que ele deva ser filho de algum grande empresário ou banqueiro para ser digno de uma moça tão nobre e interessante como você, Murielli. Uma profissional de brilhante futuro.

- Agradeço a parte que me toca. Ele é apenas um programador da empresa onde trabalho. O nosso namoro não é nem um golpe do baú se é isso que o amigo quer saber.

- Desculpe-me, não foi isto que pensei – disse o moço afastando-se.

Durante toda a festa, ela nota que a figura de Henrique incomoda muita gente, mesmo que de uma forma velada. Evita que ele perceba. Não entendendo aquilo, no dia seguinte, ela conta tudo para seu irmão Marcos Antônio que lhe explica:

- Murielli, uma pessoa com deficiência em público pode incomodar muita gente. Mas não de forma consciente. Sua imagem mexe com os conceitos de um corpo perfeito tão almejado por muitos. No inconsciente das pessoas despertam ameaças, medos que talvez por meios de acidentes possam adquirir uma deficiência e ficar também naquele estado. Ou a figura da deficiência pode não despertar medos desse tipo propriamente ditos, mas submergir outros tipos de deficiências que as pessoas ocultam dentro de si, temendo-os.

- E aí surgem as rejeições com relação a vocês...

- Sim, muitas vezes os preconceitos nada mais são do que mecanismos de defesas... Você está namorando há alguns meses com o Henrique. Já deve ter sacado várias coisas dessa natureza. E se você quiser levar esse relacionamento adiante, ainda vai conhecer vários outros tipos de preconceitos sociais.

- Se esse for o preço de nossa felicidade, estou disposta a pagar, meu irmão...

* * *

Em uma tarde, Henrique sai de sua sala rumo ao banheiro. Ao passar por uma pequena escadaria, tropeça e cai. Murielli observando pelo vidro de sua sala, corre para auxiliá-lo. Ao levantar, o rapaz senta em um banco para descansar um pouco.

- Você se machucou, meu bem?

- Não Murielli, foi só um susto.

- Desculpe-me perguntar, só uma curiosidade. Você já fez terapias?

- Há muito tempo atrás, fiz fisioterapia, fonoaudiólogia e terapia ocupacional, mas acabei abandonando.

- Talvez já seja hora de voltar. 

Murielli começa a incentivar o namorado para voltar aos tratamentos. Mais do que isto, também o incentiva a voltar a estudar, fazer um cursinho pré-vestibular. Cursar uma faculdade. Ela passa a orientá-lo nos estudos, passando com ele as matérias que encontra mais dificuldades. E com carinho, amor e a dedicação de Murielli, o relacionamento deles estabelece cada vez mais com o passar do tempo!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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