8 - REENCONTROS

No começo da tarde, Marli estava de pé na sala com sua mala ao lado. Luiz Esteves a olhava.

- Chegou a hora do vento soprar a vela do meu barco, Luiz.

- Você não quer mermo que alguém vá junto?

- Não, meu amor. Essa volta ao passado precisa ser só minha. 

- Sim, minha querida. Vá em paz. Não tenha pressa de voltar e nem medo do que você encontrará ou não pela frente. O enfermeiro passará os dias inteiros aqui comigo. E qualquer coisa, a Izabela estará por perto. Agora desça. O Eliseu já está lá embaixo, esperando para levá-la à rodoviária.

Marli embarcou em um ônibus rumo à sua cidade de origem. Chegou lá no início da noite. Por ser um local muito pequeno e interiorano, não havia mais ninguém nas ruas. Soprava um vento muito gelado. Ela foi logo procurar o hotelzinho para passar a noite.

Eliseu chegou no começo da noite no apartamento. Esteves estava lendo no escritório. Junto com Izabela, sentaram-se na sala. Ele chorava muito.

- Que foi, meu amor? Você está me assustando...

Depois de se acalmar, o rapaz contou-lhe que já há algum tempo estava fazendo terapia. Tomou coragem de ir resgatar a sua própria história. Naquela manhã fora de encontro de sua tia. Relatou para a namorada toda a conversa que teve. Tirou do bolso sua certidão de nascimento:

- Toma, veja os nomes que estão aí.

- Lucas. Esse é o seu verdadeiro nome? – Questionou Izabela.

- Sim, mas veja o verdadeiro nome da minha mãe... 

- É o mesmo nome da Marli. Deve ser coincidência. Ela nunca me disse que teve um filho.

- Mas teve – confirmou Esteves, entrando na sala com sua cadeira de rodas elétrica: - Só que esse é um assunto bloqueado dentro dela. Desculpe-me ter entrado de repente e ouvido o final da conversa de vocês. Vou contar a história que sei dela.

Tudo bateu direitinho. Eliseu observou:

- Hoje à tarde eu a levei à rodoviária e não comentei nada com ela.

- Foi melhor assim. Como disse, esse assunto dói demais na Marli. Acho que precisamos ter uma prova realmente concreta. Um DNA, por exemplo. 

- Concordo, Esteves. Mas como fazer isso sem que ela desconfie? – Questionou o rapaz.

Izabela teve uma ideia:

- Acho que sei. Ela se arrumou antes de sair. Lá no banheiro do quarto de vocês, a Marli se penteou e deve haver fios de cabelos na escova. Podemos pegá-los para o teste de DNA.

Na manhã seguinte, Marli acordou cedo, alugou um táxi e foi até o sítio onde morava com seus pais procurar pistas. A propriedade mudara algumas vezes de donos, ninguém daquela época estava mais lá. Afinal, três décadas se passaram...

Ela voltou para o centro da cidade. Lembrou-se da venda onde seus pais vinham telefonar aos domingos. Foi até lá. No local havia sido construído um supermercado. Saiu andando pelas ruas, chegando à praça municipal. Sentou-se para apreciar a tudo. Várias das recordações de sua humilde infância voltaram à mente. Entre boas e tristes recordações, um senhor de bengala passou em sua frente, indo se sentar em outro banco. Marli sentiu que o conhecia. Animou-se e foi até ele.

- Senhor, desculpe-me o incômodo. Só uma pergunta. O senhor é seu Manuel que tinha uma venda na rua do comércio?

- Sim, minha filha, sou eu – respondeu simpaticamente: - Eu te conheço?

- Meu nome é Marli. Sou filha do seu Antônio e dona Maria – respondeu ela, sentando-se ao seu lado: - Eles trabalhavam no sítio Ponte Pequena. Vinham aos domingos fazer compras e telefonar em seu armazém.

- Lembro-me deles, sim. Nossa menina, você ficou muito bonita.

- Obrigada, seu Manuel. O senhor tem alguma notícia de meus pais?

- Minha memória ainda está boa. Na última vez que atendi seu telefonema, disse-lhe que seus pais foram despedidos do sítio e contratados por um sitiante de outra cidade. 

- Exatamente – concordou Marli sorrindo.

- Só que depois de uns três anos, seus pais voltaram para cá e se estabeleceram na cidade. Até uns cinco anos atrás, eu os via por aí, estavam bem judiados pelo tempo e pela profissão. De repente, sumiram. Sinto muito em não poder ajudá-la mais do que isso.

- Eu agradeço muito ao senhor – disse ela desapontada.

Logo após o almoço, Marli teve uma outra ideia, embora um pouco radical. Foi até o cemitério, um lugar retirado do centro. Descampado, o local ventava demais. Perguntou ao coveiro se havia algum túmulo com os nomes de seus pais. O mesmo respondeu não se lembrar e a aconselhou ir procurar a administração na entrada do campo santo. Ela voltou pela grande alameda que cortava o local, chegando no portão principal, entrou na sala ao lado e conversou com o administrador que lhe sugeriu:

- Olha moça, o que posso fazer por você, é lhe emprestar os livros de registros dos óbitos dos últimos anos. Lembrando que este é o único cemitério de toda a região. Se seus pais faleceram, devem estar sepultados aqui. 

- O senhor faria isso por mim? Nem sei como agradecer.

- Não precisa, moça. Eu vou resolver algumas coisas na Prefeitura, senão eu lhe ajudava. Você pode usar minha mesa para consultar os livros.

  Marli passou a tarde consultando aos registros naquela sala apertada. Ficou até com um pouco de renite pela poeira dos volumes. Não encontrou o que procurava. Se mortos, não era ali que seus pais foram sepultados.

À noite, sozinha e deitada na cama do hotel, ela chorou muito. Um misto de saudades de seus pais, medo de nunca mais os revê-los. Ao mesmo tempo pensou sobre onde poderia estar seu filho. Naquele momento, Marli era o misto de uma filha procurando seus pais e uma mãe sem a mínima pista para procurar seu filho.

Na manhã seguinte, sem saber o que fazer, ela decidiu sair pelas ruas perguntando às pessoas se alguém conhecia seus pais. Todas as respostas eram negativas. Andou por umas cinco horas. Nada.

Triste, Marli entrou em um pequeno restaurante para almoçar. Enquanto comia, uma mulher sentada em outra mesa começou a olhá-la sem disfarçar. Aquilo a incomodou um pouco, mas ela não deixou transparecer.

De pé na fila do caixa para pagar, a mulher veio abordá-la:

- Vou ser inconveniente, mas por acaso, você é a Marli, filha do Antônio e Maria do Sítio Ponte Pequena?

- Sim, sou. Desculpe-me, não estou lhe reconhecendo.

- Sou a Luciana, fui sua amiga de escola. Que bom lhe encontrar assim tão bem.

Abraçaram-se alegres. Na calçada do restaurante, conversaram um pouco.

- Eu me formei assistente social. Voltei prá cá, casei-me e hoje trabalho na Prefeitura. Que bons ventos os trazem por aqui, Marli?

- Estou desde ontem procurando notícias dos meus pais. Acho que não vou conseguir nada. Estou pensando em voltar hoje para São Paulo.

- Vem comigo, amiga...

Luciana a puxou pelas mãos por várias ruas até a casa de repouso municipal. Entraram e passaram por vários idosos ali cuidados com atenção. Chegaram ao jardim central do prédio. De costas, um casal tomava sol sentados em um banco de madeira. A assistente social apontou-os, dizendo:

- Os ventos estão soprando a seu favor, Marli. Eles estão ali. Faz cinco anos que cuidamos deles. Às vezes, seus irmãos vêm visitá-los, ajudam à medida do possível.

Ela começou a tremer de emoção. Foi até a frente deles, abaixou-se, colocou as mãos nos joelhos de cada um e disse em lágrimas:

- Papai, mamãe, sou eu, a Marli.

Eles a olharam por algum tempo. Sua mãe foi reconhecendo-a, lágrimas rolando e, finalmente, o forte abraço dos três esperado por muitos anos, acabando com as dores da separação de três corações.

À noite, Esteves e Izabela estavam jantando, quando Eliseu chegou com Marli e o casal humilde, tímidos e com muitas marcas de canseira pelo tempo. Eles se espantaram ao ver o tamanho e beleza do apartamento.

- Pessoal, estes são meus pais. Eu os trouxe para São Paulo para cuidar deles.

Esteves falou sorrindo:

- Eu não tive a oportunidade de pedir a mão de sua filha, mas posso pedir um abraço desses tão simpáticos senhores?

Foram abraçá-lo em sua cadeira de rodas.

- Bem, papai e mamãe, vão lá para dentro tomar um banho para descansar da viagem que vou preparar uma refeição. Iza, você pode ajudá-los, por favor?

- Claro, Marli. Acabo de ganhar avós do coração. Eu os levo para o quarto.

- Eu ajudo com as bagagens – ofereceu Eliseu.

Ao saírem, Marli correu para beijar o marido. 

- Meu amor, nem lhe pedi. Tomei a liberdade de trazer meus pais porque nunca mais quero me separar deles. Se você não se importar, eles podem ficar aqui até eu conseguir um lugar confortável para eles morarem?

- Nem pensar, querida. Seus pais ficarão para sempre aqui morando conosco. Juntos vamos cuidar com todo o carinho e dedicação dos velhinhos. Está certo, levará um tempo, mas logo estarão adaptado entre nós.

- O problema é que os pacientes que tenho para cuidar, estão aumentando.

Juntos deram gargalhada. Em seguida, Marli abriu seu coração:

- Ao encontrá-los, também consegui os contatos dos meus irmãos. Agora com o tempo, sei que vou recuperar toda a minha família. Menos meu filho, nem uma pista sequer tenho para começar a procurá-lo.

- Meu amor, não perca as esperanças. Nunca sabemos de que lado virá o vento na vela!

Beijaram-se apaixonados.

Uma semana depois, após a janta, estavam todos conversando na sala, quando Eliseu chegou com envelope nas mãos. 

- O que foi, Eliseu, você está tenso? – Observou Marli.

- É bom que estamos todos juntos – disse o rapaz, sentando-se ao lado dela: - Este será um assunto de família.

Eliseu com cuidado, contou à Marli e seus pais toda a sua história. Ela começou a tremer de emoção. Esteves revelou:

- Izabela e eu já sabíamos. Mesmo com todas essas coincidências, eu propus termos uma prova realmente concreta antes de alimentarmos suas esperanças e lhe machucar caso isso não fosse verdade. Pegamos fios de cabelos seus e fizemos um exame de DNA.

- E o resultado está aqui. Você é a minha mãe!

- Você é o meu Lucas, meu filho???

Abraçaram-se fortemente e choraram muito de alegria. Izabela, também trêmula pela emoção, serviu copos d’águas para eles se acalmarem.

Eliseu levantou-se, abraçou ao mesmo tempo seu Antônio e dona Maria, dizendo:

- E o pacote veio completo. Ganhei os mais lindos avós do mundo.

- Eu falei que nunca sabemos de que lado virá o vento na vela! – Falou Luiz Esteves à Marli.

Eliseu soltou o casal, virou-se, pegou nas mãos de Izabela, olhando dentro de seus olhos:

- Izabela, com você eu aprendo a cada dia não ter medo de amar e se deixar ser amado. Agora para minha alegria e vida ficar completa só falta uma coisa. Iza, meu amor, você aceita se casar comigo? Quero ser seu marido, cuidar de você o resto dos meus dias. Ser o seu companheiro na vida e na fé.

- Claro que aceito, meu lindo! Lucas significa iluminado. Você está iluminando as nossas vidas.

Beijaram-se apaixonados. Esteves não perdeu a piada do momento:

- Eu não me lembro de você ter pedido a mão da moça para esse pai aqui...

- O problema é que vou ter que pedir a mão dela duas vezes, aqui e lá no nordeste – disse o pretendente da moça rindo.

Os dias passaram e no jantar da noite de natal, estavam todos alegres à volta da mesa. Luiz Esteves pediu a palavra:

- A vida realmente é surpreendente. Passei muitos anos sozinho. Quando pensei que estava tudo caminhando para o meu fim, ganhei a mais linda esposa do mundo, meu amor da adolescência. Ganhei uma amável sogra que faz comidas e doces deliciosos. Ganhei um sogro, meu companheiro de passeios diários pelo bairro e de partidas de dominó. Ganhei uma filha do coração e que me substitui com muita competência na empresa que criei. E ganhei um misto de filho e futuro genro ao mesmo tempo. Sem se falar de você Herbert, meu eterno amigo reclamão. As coisas acontecem sempre que permitimos que os ventos batam nas velas de nossos barcos e navegamos sem traumas ou medos. A vida precisa ser um eterno movimento sem medo rumo ao futuro e ao inesperado.

E todos brindaram!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem