9 - SAINDO DA MARGEM DE NÓS MESMOS PARA AMAR

Almir resolve ir a mais uma palestra de sua amiga Cátia. Há várias pessoas conversando pelo espaço terapêutico. Uma mulher de cabelos curtos, blusa colante, saia curta e meia-calça, toda de preto, aproxima-se dele.

- Almir, lembra-se de mim? – Pergunta ela, sorridente.

- Sim, você é a Maria, foi contadora do nosso escritório de representação logo que começamos aqui em São Paulo.

Conversam ali por uns minutos. Ele percebe que em uns assuntos, ela fica meia perdida, parece alienada.

- Vim aqui hoje, mas o que gosto mesmo é show de stand-up, vou todos os dias.

- Maria, vou pegar água. Você aceita?

- Não, Almir, eu só bebo coca-cola.

Cátia chama todos para se sentarem e inicia a palestra:

- Muitas vezes o que nos impede de encontrar um amor em tempos de individualismo é permanecer à margem de nós mesmos. Esses dias, comecei a ler alguns versos de Fernando Pessoa. Dois, em particular, chamaram minha atenção. O primeiro é este: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares”. Esses versos mexeram muito comigo. Mudar não é fácil. Naturalmente somos contaminados pela rotina, passamos a viver quase que mecanicamente. Quantos de nós reclamamos da realidade em que vivemos, porém não fazemos o menor movimento para alterá-la e modificá-la? Temos sonhos, mas poucos têm coragem de persegui-los. Reclamar da vida e colocar a culpa nos outros por causa de nossa situação são formas, até mesmo consciente ou inconsciente, de justificar as nossas “covardias” de ousar perante a vida! Na vida, alguns tipos de medos paralisantes, avassaladores, improdutivos. Contudo, o medo maior é aquele que experimentamos quando seguimos nossos sonhos e tentamos fazê-los acontecer de verdade. 

- E quais os caminhos, Cátia? – Pergunta Maria.

- Reconheço que mudar gera medo a qualquer um. Mudança significa sair de nossa zona de conforto e mergulhar, muitas vezes, rumo ao desconhecido. O conhecido já está em nossa mente, o desconhecido ainda não. Mudar pode ser o ato de abrir mão ou perder algo para se conquistar o novo. Pode exigir uma caminhada sem estabilidade até atingirmos os objetivos de tais mudanças. Levantar perante a vida para buscar mudanças é um ato de coragem. É algo que requer planejamento, ter objetivos e metas bem definidas. Pode realizar-se pelo simples ato de nos levantarmos da “poltrona do mesmismo” e nos colocarmos em movimento. Para encontrar um amor em época de individualismo, as pessoas precisam se inspirarem, criar esperanças, colocarem-se em movimento e buscar mudanças nas suas vidas pessoais, profissionais e sentimentais. No mesmo poema, Fernando Pessoa diz: “É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”. 

* * *

Mais tarde, de volta ao seu apartamento, Almir por curiosidade, liga o computador para espiar o perfil de Maria. Suas fotos sempre com roupas de menininha, adolescente, apesar de sua idade regular com a dele. Todas as fotos abraçadas com humoristas em shows de comédia stand-up, um espetáculo de humor executado por apenas um comediante, que se apresenta em pé, sem acessórios, cenários, caracterização.

Ele até teve intenção de encontrá-la mais vezes, mas repara que Maria não se comporta como a verdadeira idade que tem. E muitas pessoas são assim. São pessoas que sofrem algum trauma ou desilusão já com certa idade. E, como uma fuga psicológica da dor, mentalmente voltam a se comportar como adolescentes, épocas em que eram felizes.

Na contramão também há pessoas que não amadurecem, mesmo em um universo cheio de seres em evolução das plantas, dos animais, dos seres humanos. Para se sair da ignorância e chegar à sabedoria há um monte de degraus que precisamos subir. Dificuldades que precisamos enfrentar, inercias para romper, barreiras para derrubar. Estágios para se alcançar a plenitude humana. 

Só que para certas pessoas os ritos de passagens tradicionais tornam-se uma mera formalidade e não produzem uma transformação psicológica significativa. Qualquer cerimônia precisa ser o despertar para uma nova consciência. Morrer para umas coisas e nascer para outras. A vida é cheia de mortes.

Essas pessoas vão ficando para traz, não passam de etapas. E por permanecerem imaturas, fracassam em atividades exigentes profissionais, sociais e sentimentais, tipo casamentos, porque não deixaram de ser os filhinhos para serem marido e esposa ou pais. Ficaram na etapa anterior. Despreparados para o novo papel social. Eternos filhos cangurus que não querem sair do leito materno.

Essa paralisia emocional não dá valor aos ritos de passagens e a pessoa não cresce. É como em uma viagem de trem onde vamos parando em cada estação e aprendendo com a vida. Se a viagem for completa, ao final seremos sábios na arte de viver. E se não descer em uma dessas estações, algo vai faltar no final.

Muitos se contaminam em nossa cultura que nos prende na infância, ou na adolescência ou na juventude. E quando prende na juventude não sai mais, só ela tem valor. E como consequência não aprendemos tudo que a vida tem a nos ensinar.  Faltam um monte de pedaços no nosso quebra-cabeça na hora de fazer uma síntese de vida.

Em nossas noites interiores, momento em que terminamos cada uma de nossas jornadas, é como se fosse uma escada, ao fim de cada degrau precisamos olhar para cima subir e crescer. Senão ficamos batendo contra a parede, vem a dor, o medo, a escuridão, crises de paralisia. Cresceu, novamente será um novo dia, nova etapa e evolução.

Pessoas que regridem mentalmente ou não amadurecem em suas vidas, ficarão para sempre às margens de si mesmas!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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