- Eu já havia notado um clima entre você e o Eduardo.
- Ele me cativou desde o primeiro momento que o vi. Não sei explicar o porquê, Josineide.
- Desculpe-me se eu for infeliz no meu comentário. Eu admiro muito vocês dois como pessoas, meus amigos e estou mais do que ninguém torcendo pelo amor do casal. Mas olha, esse namoro será mais uma queda de paradigma em nossa cidade.
- E olha que essa quebra de paradigma tende a aumentar, amiga. Nas duas últimas décadas as políticas de Inclusão gerando inúmeras conquistas positivas e espaços em setores como educação, mercado de trabalho, eliminação de barreiras arquitetônicas, dentre outras. Com isto, muitas pessoas com deficiência deixaram os isolamentos e estão presentes em todos os lugares e conquistando infinitas possibilidades. Essa convivência diária em escolas, trabalhos e diversões entre pessoas com e sem deficiência estreita muitos laços de amizades, paqueras, encantamentos e estar permitindo surgir muitas histórias de amor e casamentos. Sim, porque relacionamentos amorosos nascem basicamente da convivência entre pessoas.
- Então os benefícios de todas as formas de inclusão podem ser mais amplas do que parece? Até no amor?
- Com certeza, Josineide. E como não tenho a necessidade da aprovação externa, sinto-me uma pessoa competente, merecedora e preparada de viver essa história de amor com toda a intensidade para nós dois, os comentários e observações preconceituosas que poderão surgir, não incomodarão, serão apenas palavras ao vento que não pautarão os desejos de seu coração!
* * *
Agendado para a última semana antes do recesso escolar de meio de ano, a Secretaria Municipal de Educação promoveu uma reunião pedagógica com todas as professoras e funcionárias das creches e escolas infantis. Como era uma cidade pequena, a fama dos conhecimentos de Jéssica sobre Educação Inclusiva corria entre todos. E ela foi convidada para fazer uma pequena palestra.
No auditório cheio que ficava no prédio da Prefeitura, Rosa, a Secretária Municipal de Educação fez a apresentação:
- Pessoal, dando continuidade às nossas atividades, convido ao palco a professora Jéssica que chegou este ano ao nosso município, integrando o nosso quadro de professores. Acho que quase todos estão a par do trabalho exemplar que ela está realizando na implantação da sala de Atendimento Educacional Especializado em uma de nossas escolas. Seja bem-vinda professora e já começo lhe fazendo uma pergunta-chave: É possível a Inclusão Escolar já nos anos iniciais da criança com deficiência?
Jéssica foi aplaudida enquanto subia ao palco. Após saudar a plateia, começou pela resposta da pergunta:
- Digo que é possível sim e também como ela pode ser a base para o sucesso escolar de todos os anos posteriores! Isso porque a criança é livre de qualquer preconceito e disposta a incluir qualquer pessoa em seu mundo. E, convivendo desde pequena com coleguinhas com algum tipo de deficiência ou qualquer outra limitação, ambos aprenderão a conviver naturalmente e crescerão numa convivência sem problemas e de trocas mutuamente. Por meio da Educação Infantil, ocorre o desenvolvimento global do ser humano tenha ele ou não deficiência, possibilitando o desenvolvimento e a aprendizagem na infância, período em que o indivíduo se organiza no mundo.
Abrindo às perguntas, uma diretora lhe questionou:
- Os profissionais da área da Educação Infantil têm discutido com muita propriedade o caráter que o atendimento à clientela de 0 a 6 anos deve assumir. Atendimento com caráter tutelar, orientado para o cuidado com a criança nos aspectos relativos à segurança, higiene, alimentação e aquisição de hábitos e atendimento com caráter educativo. Surge a questão: Cuidar ou Educar na Educação Infantil?
E Jéssica respondeu com propriedade:
- Cuidar está associado às necessidades do corpo, sono, fome, sede, higiene, dor, dar condições de sobrevivência às populações desprivilegiadas. Educar está associado às possibilidades da mente, o desenvolvimento do intelectual. Hoje, há como desafio para a Educação Infantil redefinir os dois termos e condensá-los na meta de mediar o desenvolvimento sociocultural de alunos desde seus primeiros anos de vida. Um trabalho pedagógico unindo a essas duas ações permitirá a criação de um ambiente em que a criança sinta-se segura e acolhida em sua maneira de ser, um ambiente em que ela poderá trabalhar de forma adequada suas emoções, construir hipóteses sobre o mundo e elaborar sua identidade. Se uma creche e/ou escola de educação infantil tiver essa mentalidade política pedagógica, já teremos um ambiente propício para que as inclusões escolares ocorram com sucesso. Teremos professores planejando atividades com cuidado de envolver a todos, professores que se apropriem criticamente das teorias sobre o desenvolvimento humano, examinando o contexto concreto em que as crianças vivem e as múltiplas formas como as culturas atuam na promoção do seu desenvolvimento.
- E qual pode ser o papel da creche na inclusão escolar? – Perguntou uma educadora da plateia.
- A Inclusão Escolar de aluno com deficiência exige que a educação de maneira geral reveja seu papel, fundamentando-se no princípio da educação como o direito social de todo cidadão brasileiro. Ela permitiu a ampliação do debate e da reflexão sobre a diversidade humana nas dimensões sociais e, ao mesmo tempo, das diferenças e necessidades individuais. A educação infantil não pode fugir dessa responsabilidade, permitindo-se na mudança de ideias e em atitudes e práticas nos âmbitos políticos, pedagógicos e administrativos, gerando mudanças paradigmáticas na sociedade como um todo. Numa creche ou escola infantil inclusiva, há de se pensar na importância do planejamento, garantindo um ambiente estimulante de aprendizagem e desenvolvimento para todas as crianças. Uma vez em que elas passam grande parte do seu tempo nesses locais, temos que considerar a implantação de formas de complementar as necessidades da criança pequena, tenha ela uma necessidade educacional especial ou não. Nesse contexto de interações devem estar: a oportunidade de todas participarem das brincadeiras e jogos, escolhendo os seus parceiros e outros recursos, participarem das combinações de regras de convivência em grupo, escolha de materiais e do espaço se isto for pertinente. Com isso, a criança aprende a cuidar do material de uso individual ou coletivo, aprende a dialogar como forma de lidar com os conflitos, aprende a escolher com autonomia ao ter suas decisões respeitadas e apoiadas pelos adultos, aprende a realizar sozinha ou com pouca ajuda de outras pessoas. E, relacionando-se com os colegas e adultos, demonstram suas necessidades, interesses, gostos e preferências. A valorização das ações de cooperação e solidariedade, o desenvolvimento de atitudes e a ajuda na colaboração e compartilhando suas vivências nascem da convivência coletiva.
A palestra programada para quarenta minutos, durou quase duas horas devido ao número de perguntas e envolvimento de todos. E ela terminou com uma última observação:
- Uma questão que acho fundamental para já se trabalhar desde os primeiros momentos educacionais de uma criança é não permitir a criação de apelidos ou rótulos aos coleguinhas. O próprio professor deve dar o exemplo, tratando cada aluno pelo seu primeiro nome próprio, pois isso é o reconhecimento da primeira marca de singularidade da criança, uma identificação progressiva de algumas características próprias e das pessoas com as quais se convive no cotidiano em situações de interação.
Ao descer do palco, ela foi trocando conversas com várias professoras e até tirou algumas fotos. À medida que o auditório foi esvaziando, ela percebeu Eduardo sentado ao fundo. Foi até ele.
- O que você está fazendo aqui, amor?
- Apenas cumprindo a minha função de repórter, cobrindo esse Encontro onde minha namorada mais uma vez foi brilhante – respondeu sorrindo: - Almoça comigo, gata?
- Vou pensar se você merece! – Responde ela sorrindo.
Saíram de mãos dadas e foram caminhando uns dois quarteirões, atravessaram a praça municipal, chegando à uma padaria de esquina aonde servia almoço seef-service. Eles entraram na fila. Ela ajudou o namorado a se servir e levou as duas bandejas até à mesa. Depois cortou os alimentos, pois ele não conseguia usar faca por ter mais dificuldades com o braço esquerdo. Mas comia sozinho com uma colher, embora precisasse de manter força para controlar o movimento entre o prato e a boca. Naturalmente ela entendia as reais necessidades de Eduardo e as supria com delicadeza.
Almoçavam descontraidamente quando Lígia Ester aproximou-se da mesa com várias sacolas, dizendo em um sorriso:
- Olá meninos, eu não sabia que vocês já se conheciam?
- Melhor do que isto, dona Lígia Ester, nós estamos namorando – respondeu Eduardo animadamente.
- Nossa, que coisa linda. Desejo muitas felicidades ao casal.
- Obrigada. A senhora quer se sentar com a gente?
- Na verdade eu fui fazer umas compras. Passei por aqui para pegar uns pães para o café da tarde e quando os vi e vim lhes cumprimentar, Jéssica. Encontrei algumas professoras no mercado e elas elogiaram muito a sua palestra.
- Foi um sucesso! – Exclamou Eduardo: - Confira a minha matéria.
- Sabe Jéssica, não sei se este é o momento, mas estou muito preocupada com uma questão. Como lidar com as inseguranças dos professores?
- Acho que o melhor caminho dona Lígia Ester será promovendo encontros de formação e discussões em que sejam apresentadas as novas concepções sobre a inclusão que falam, sobretudo, das possibilidades de aprendizagem. O contato com teorias e práticas pedagógicas transformam o posicionamento do professor em relação à Educação inclusiva.
- Verdade. Essa menina sempre com boas ideias – brincou a diretora: - Durante muitos anos foram discutidas apenas características das deficiências. Você Jéssica tem razão. Apostamos pouco na capacidade desses alunos porque gastamos muito tempo tentando entender o que eles têm, em vez de conhecer as experiências pelas quais já passaram.
- O caminho melhor para preparar os professores e funcionários para lidar com a inclusão, a Formação na própria escola é a solução, em encontros que permitam que eles exponham dificuldades e tirem dúvidas – sugeriu Eduardo entre uma colherada e outra.
Lígia Ester empolgou-se:
- Esse diálogo é uma maneira de mudar a forma de ver a questão. Em vez de atender essas crianças por boa vontade, é importante mostrar que essa demanda exige a dedicação de todos os profissionais da escola. Jéssica, o que você acha da gente realizar um encontro de Formação uma semana antes do início das aulas do segundo semestre? Você me ajuda?
- Claro, com muito prazer, dona Lígia Ester!
- Então vou pedir licença e me retirar. O pessoal lá em casa já está me esperando para o almoço. Hoje à tarde vou à escola e já emito uma circular aos professores e funcionários comunicando que teremos esse Encontro.
* * *
Jéssica e o pessoal que participava de todas as reuniões das quintas-feiras assistiam a uma live sobre o decreto do governo sobre o fim da Educação Inclusiva. À certa altura, a mediadora perguntou:
- Também participa dessa live o advocado Valdir. Doutor, esse chamado “Decreto da Exclusão” tem amparo legal?
- Claro que não. Ele viola a própria Constituição Federal, que prevê em seu artigo 206 a educação como princípio à igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Já o artigo 208 estabelece que o atendimento educacional especializado será preferencialmente realizado na escola regular.
- Professora Maria Tereza, a senhora a mais de três décadas trabalha pela a inclusão escolar aqui no Brasil. E até lidera um laboratório sobre essa temática. Agora a senhora e sua equipe lançam uma carta-aberta sobre o decreto. Quais suas principais reinvindicações:
E a professora respondeu:
- Declaramos que não permitiremos: Que a Constituição Federal de 1988 seja desconsiderada, descumprida e renegada em seus preceitos educacionais, uma vez que seu texto define o acesso à escola comum como um direito indisponível do aluno, do qual a família e o Estado são os guardiões; que o Brasil, mais uma vez, seja desonrado por descumprir e ignorar seus compromissos internacionais, visto que o país é signatário de documentos que pugnam pela inclusão, incondicionalmente; que o aluno público-alvo da Educação Especial seja excluído e discriminado no sistema educacional brasileiro; que argumentações tendenciosas e mal embasadas por estudos e posicionamentos retrógrados e incompletos venham se contrapor aos avanços e esforços despendidos por familiares e educadores, em todo o território nacional, que aderiram às diretrizes da PNEEPEI/2008, garantindo a matrícula, a participação e a aprendizagem, com dignidade, em escolas comuns de todo o país; que sejam ofuscados ou esquecidos os ganhos obtidos pelos alunos que, em razão da inclusão escolar, puderam seguir trajetórias de vida jamais imaginadas no tempo em que eram vigentes no país a concepção que agora o governo federal busca desenterrar; que seja interrompido o movimento de inclusão na educação básica que permitiu ao Brasil ampliar, de maneira inédita, o acesso desse público ao nível superior; que o país volte a terceirizar a Educação Especial, alocando recursos públicos em instituições privadas, em detrimento da continuidade e da ampliação dos investimentos na escola pública comum; que sejam silenciadas as famílias que, junto com os educadores, lutaram ao longo desses 12 anos, fazendo o país matricular mais de 1 milhão de estudantes da educação especial nas escolas comuns, o que representa 87% de taxa de inclusão.