A DIFÍCIL CONFISSÃO

A POMBA DA PAZ - Emílio Figueira / Mai. de 2001 - Técnica: Aquarela sobre papel  A3

 Naquele fim de tarde, Cássio estava num barzinho com seu amigo. Sentam-se a uma das mesas espalhadas pela calçada e, num descontraído bate-papo regado por cervejinhas, Cássio confessa:

– Rapaz, não consigo parar de pensar na Cátia. É uma paixão incontrolável.

– Ainda acho que você deveria se abrir com ela. Vocês são tão amigos. Ela vai compreender.

– Mas esse é o grande problema, cara. Eu e ela somos tão amigos, que tenho medo. Sou seu principal confidente. Vai que a Cátia não compreenda e diminua essa confiança e amizade.

Cássio, ator teatral, é alguém que explora a sua criatividade. Nem alto nem baixo, calvo em cima e dos lados cabelo castanho, com a sua barba amparada que o envelhece um pouco, apesar de ter menos de quarenta anos de idade. Branco, olhos castanhos arredondados. Nariz de tamanho médio, assim como a boca. Voz num tom médio e pausada. Gosta de usar calças jeans, camisa leve e tênis.

De personalidade sensível, sempre deixa fluir os seus conhecimentos àqueles que estão ao seu redor, é uma pessoa bem atualizada. Extrovertido, faz amizade com facilidade e sempre é admirado por aqueles que com ele convivem ou passam a conviver.

Alegre e de riso fácil, é uma pessoa otimista e acredita que “dias melhores virão”! Apesar de tanta alegria, trata-se de uma pessoa excessivamente sentimental, honesta e sincera, grande confidente de seus amigos. Totalmente voltado às artes, devido a sua atividade teatral, tem extrema facilidade de comunicação. Eclético, mantém várias visões do mundo e não esconde de ninguém suas ideologias. Para Cássio, viver é a maior aventura da existência humana!

– Só que você não pode continuar nessa indecisão – diz o seu amigo, continuando a conversa: – Chega uma hora na vida do homem que é tudo ou nada. Será justo que, em nome de uma amizade, você sofra tanto por uma paixão sufocada?

Cássio toma um gole de sua cerveja, pensa um pouco e declara:

– É, você tem razão.

Decidido, Cássio entra animado em seu apartamento, cantando alto, ações típicas de uma pessoa que está apaixonada. Passa pela cozinha, belisca alguma coisa, volta para a sala, coloca um disco do Caetano no aparelho e vai tomar banho. No chuveiro, acompanha a música, momento em que toca o telefone. Enrola-se na toalha e vai atender. Uma surpresa.

– Alô.

– Alô, Cássio, é a Cátia, como vai?

– Tudo bem. E você?

– Bem. Estou ligando porque hoje à noite vai ter uma festa aqui em casa e gostaria que você viesse.

– Legal... Só que hoje tenho ensaio da nova peça que vamos estrear. Depois, darei uma passada por aí, certo?

– Tudo bem. Tenho algo para revelar que você vai gostar.

– Eu também tenho algo para dizer, Cátia, mas deixarei para falar à noite.

Ao desligar o telefone, ele se anima, perguntando a si mesmo: “Será que ela vai dizer o mesmo que eu?”.

No teatro, Cássio demonstra muito entusiasmo durante o ensaio. Ao terminar, seu diretor se aproxima, dizendo-lhe:

– Uau, gostei de ver. Você nunca atuou com tanto sentimento como hoje.

– É o amor, meu caro colega – ele confessa sorrindo e enxugando o suor: – É o amor!

À noite, ele chega ao apartamento de Cátia. Muita gente e animação. Cumprimenta os conhecidos com muito humor. Pega um copo de cerveja na bandeja do garçom. Avista aquele seu parceiro do bar, e se aproxima, perguntando em particular:

– E aí, cara, o que você decidiu?

Primeiramente, Cássio dá uma olhada para Cátia, uma mulher de boa aparência e que causa boa impressão à primeira vista. Porte médio, uma bela estrutura de um corpo feminino que certamente desperta a atenção de qualquer homem. Seu cabelo parece emitir certo perfume, é louro chanel, tendo brilho próprio. Rosto redondo, cheio e rosado com pele nem lisa nem áspera. Olhos amendoados que parecem guardar certo mistério. Nariz pequeno e boca média. Sua voz é pousada num tom médio, mas quando se empolga numa conversa amiga, aumenta o volume.

Muito bem-informada, mantém ideias formadas sobre quase todos os assuntos, tendo vocação para exercer lideranças. Extrovertida, expande sempre suas emoções, sentimentos e opiniões claramente. Sempre rindo, é uma pessoa comunicativa, entusiasmada e otimista com a vida. Apesar da sensibilidade, tem temperamento forte, demonstrando certa frieza, mas muito sincera.

Ela não dispensa um barzinho, uma boa bebida e, quando está com um cigarro na mão, parece aumentar o seu charme. Gosta de acampar, viajar e é louca para conhecer a França. Um passatempo preferido é fazer tricô. Vaidosa, gosta de se vestir bem, sempre com roupas da moda e jovens. Usa uma pintura leve. 

Consciente, sabe que tem grande responsabilidade como professora, sempre transmitindo conhecimentos através de suas aulas e dos artigos que escreve, apesar de nunca os publicar. Descontente com a situação econômica e problemas sociais do país, está sempre preocupada com isso. Cátia é uma das melhores amigas que alguém pode ter.

– Decidi contar tudo – responde ao amigo e completa: ¬– E será hoje.

Neste momento, Cátia aproxima-se dele e lhe dá um gostoso abraço.

– Que bom que você veio, Cássio! Agora poderei revelar a minha surpresa. Espere um pouco. 

Cátia puxa um rapaz pela mão para o centro da sala, pede a atenção de todos: 

– Pessoal, este é o João Paulo, o meu novo namorado. Professor de educação física, lecionamos na mesma escola.

Ela lhe dá um beijo bem apaixonado à boca. Todos batem palmas felizes, menos Cássio, que está num misto de surpresa e desânimo. 

Minutos após, o casal aproxima-se dos dois amigos que conversam com copos nas mãos.

– Eu conheço você de algum lugar – comenta João Paulo, apontando o companheiro de Cássio.

– Lógico, fizemos a faculdade juntos, não se lembra?

– É mesmo, agora me recordo.

Cátia interrompe aquele feliz reencontro:

– Bem, já que vocês são velhos conhecidos, enquanto colocam o assunto em dia, nos dão licença porque preciso ter um particular com o meu amigo Cássio.

Ao puxá-lo para um canto, pergunta ao amigo:

– Que foi, Cássio? Parece que você não gostou da minha surpresa? O desânimo está estampado em seu rosto.

– Lógico que gostei, Cátia. Sabe o que é? Hoje tive um dia muito difícil de ensaio. Estamos quase para estrear. A tensão aumenta. Problemas de trabalho. Só isso.

– Hoje à tarde você me disse que tinha algo a me contar.

– Eu disse?

– Disse.

Cássio pensa um pouco e disfarça:

– Acho que esqueci o que era. Mas assim que eu me lembrar telefono e conto tudo, combinado?

Durante o ensaio da próxima tarde, Cássio recebe a visita de seu amigo no teatro. Juntos, sentam-se no escuro da plateia para uma conversa. 

– Aquilo não poderia ter acontecido, cara. Um namorado que, repentinamente, surgiu do nada.

– Eu sei, Cássio, mas aconteceu. Olha, o que sei sobre ele não é nada bom.

– O que você quer dizer com isso?

– Esse tal de João Paulo é um pilantra, mulherengo. Pelo que nós sabemos, só na época da faculdade, ele engravidou duas meninas. Fora o que ele deve ter aprontado por aí.

Cássio ouve tudo em silêncio e resolve ir procurar a amiga.

Cátia, chegando ao andar onde mora, é surpreendida ao sair do elevador:

– Ai, Cássio, que susto!

– Cátia, preciso muito falar com você.

– Tudo bem, vamos entrar – ela sugere enquanto procura o chaveiro em sua bolsa.

– Não, é rápido. É com relação ao João Paulo. Ele não é nada do que você pensa.

Cássio conta a ela tudo o que ficou sabendo, mas ela, apaixonada, não acredita em nada do que o amigo diz.

– Isso é tudo coisa de sua cabeça. Você sempre fantasioso, com essa mania de meu irmão protetor.

– Mas é tudo verdade, Cátia.

– Chega! Eu não quero ouvir mais nada, Cássio. E se você me der licença, tenho que entrar e tomar meu banho – ela declara ao abrir a porta. Antes de entrar, continua: – Daqui a pouco o meu namorado, João Paulo, irá vir passar a noite comigo. Tchau.

Ela entra e bate a porta. Decepcionado, Cássio encosta na parede, pensando: “É, agora só o tempo será a melhor resposta!”.

O rendimento de Cássio começa a cair nos ensaios. Cansado, desce do palco e vai se sentar na plateia escura. 

– O que está acontecendo, cara? – o seu diretor percebe e complementa: – Você nem parece mais o rapaz apaixonado de uma semana atrás.

– Esse é o problema. A minha musa amada está namorando outro. Nem sequer imagina que estou a fim dela.

O diretor se senta ao seu lado e começa a narrar:

– Sabe, Cássio. Quando eu estava no colégio, tinha uma garota que era a minha melhor amiga. Com o tempo, eu me apaixonei por ela, mas a garota já namorava o cara mais bonito da escola. Um tipo de Narciso, pelo qual era toda caidinha. Não aguentei mais e fui à luta. Resumindo a história, hoje ela é a minha esposa e temos um lindo casal de filhos.

Cássio sorri, entendendo o recado.   

Enfim, a estreia da nova peça. A plateia está cheia. Um clima de tensão misturado com ansiedade toma conta do elenco. Chegada a hora, Cássio entra em cena, tendo uma grande surpresa. Cátia está sentada na primeira fila para assisti-lo. Motivado por isso, começa a desempenhar o seu papel como nunca. Entrando num clima de êxtase, como se somente ela estivesse à sua frente, começa a declamar:  

Venha...

Invada o meu ser;

Estou pronto para recebê-la.

Seja a mãe de meus filhos poéticos,

Mesmo que eu nunca te conte que foram em ti inspirados.

Ressuscita em mim o romantismo.

Faça de meu pretérito

Planos para o futuro

Mesmo que nunca exista um presente.

Quero reviver velhas marchinhas carnavalescas,

Revelando-me por trás da máscara negra.

Andar barbeado,

Vestir as melhores roupas

(respeitar as regras da sociedade de consumo).

Renovar-me, recriando 

Os velhos projetos adormecidos,

Até aqui, embalados pelo desânimo.

Faça-me chegar à conclusão de que

Os editores não entendem de literatura;

Pensar que sou melhor que Bandeira;

Que meus textos superam Machado de Assis;

Sentir-me perfeito demais para ser imortal e

Que, de bermuda e chinelo, poderei visitar

As Academias de Letras;

Que minha gramática supera a de Jânio Quadros;

Se eu quiser, pintarei melhor que Picasso;

Martinello chegará pontualmente ao encontro;

Que Quintana voltará, 

Pedindo-me conselhos poéticos.

Que sozinho tenho mais ritmo que a banda de Buarque;

Comporei uma "Garota de São Paulo" mais linda

Que a "Garota" de Vinícius e Tom;

No próximo ano, não haverá Carnaval;

Caetano e Gil me convidarão para juntos

Compormos "Tropicália III";

Passearei pelo "Rio Antigo" de Chico Anísio.

Acreditar em um governo a favor do povo 

E que os deputados deixarão os interesses particulares de lado;

O salário mínimo sobrará no fim do mês;

Os americanos virão de joelhos pedir dinheiro ao Brasil;

Que seremos campeões na próxima Copa do Mundo;

A dona de casa, no domingo, deixará de assistir ao Sílvio Santos,

Para ler os jornais do dia;

Fidel Castro raspará a barba;

A Globo dará mais liberdade aos seus repórteres;

A imprensa brasileira deixará de ser capitalista;

Riscarei do meu dicionário o impossível

E tantas outras coisas...

Tudo isso é possível, pois preciso, musa,

Acreditar na doce ilusão de tua existência...

(Mesmo que seja uma poesia salgada no final!).

O espetáculo é um sucesso em aplausos e comentários. Cássio entra em seu camarim para se trocar. Batem à porta.

– Pode entrar.

– Dá licença.

Cátia entra, sozinha.

– É você, minha amiga, fique à vontade.

– Parabéns pela sua ótima interpretação, Cássio – ela diz com o semblante triste e tenso.

– Obrigado, mas vejo que você não está bem, Cátia, o que foi?

– Realmente. Será que posso me sentar um pouco?

Cássio lhe oferece a sua cadeira em frente ao espelho e lhe serve um copo d’água. Ela toma um gole, coloca o copo em cima da penteadeira e começa a dizer, sem jeito:

– Bem, meu amigo, nem sei por onde começar a contar a minha história. Estou morrendo de vergonha.

– Você não precisa ter vergonha de falar nada para mim. Para isso é que sempre fomos amigos.

– Só que eu não dei muita atenção a nossa amizade e acabei fazendo uma burrada. Você se lembra de quando você me disse que o João Paulo não prestava?

– Sim, me lembro. Ele fez alguma sacanagem com você?

– Fez, Cássio – confessa diretamente e abaixa a cabeça por alguns instantes. Depois, levanta e completa a revelação: – Eu estou grávida.

– Essa não! – ele exclama e dá um tapa na própria testa.

– E tem mais. O desgraçado do João Paulo não quer assumir e já me abandonou. – Ela começa a chorar, colocando as duas mãos no rosto: – Desculpe-me estragar esta noite de estreia tão especial para você, Cássio, mas não tinha outra pessoa para eu procurar e me abrir.

Cássio vai até ela, abaixa-se e segura seus braços.

– Tudo bem, Cátia, o importante agora é que estou ao seu lado para o que for preciso. Venha, vamos lá para casa. Juntos acharemos uma saída para o seu problema.

Já no apartamento, Cássio conforta Cátia, dando-lhe o seu afeto de amigo.

– Não se preocupe. Agora estarei ao seu lado para apoiá-la e ficar com você pelo tempo que você precisar.

– Sabe, Cássio, apesar de aquele cara não valer nada, esse filho será como uma herança dos bons momentos que passamos juntos.

– Além do mais, um filho é sempre uma grande razão para continuarmos vivendo.

– É, você está certo. Bem, tenho que ir para casa.

– Você não está em condição de dirigir, Cátia. Passe esta noite aqui, por favor.

– Já estou muito bem, Cássio, não se preocupe. 

Após sua partida, ele pensa: “Vou dar um tempo para ela se recuperar psicologicamente. Depois, eu faço a minha confissão”.

Uma hora depois, ele recebe um telefonema que lhe faz sair aflito rumo a um hospital. Cátia sofreu um acidente de carro, o que lhe é explicado por uma enfermeira no saguão do hospital:

– A moça deve ter dormido ao volante ou se distraído com alguma coisa e se colidiu com um carro a sua frente. Chegou até aqui consciente, trazida pelo resgate dos bombeiros. Disse-nos que não tem nenhum parente na cidade e pediu para chamarmos somente o senhor.

– Tudo bem. Agora vou dar toda a assistência possível à ela. Mas como a Cátia está neste momento?

– A senhorita Cátia já está fora de perigo. Só que devido à pancada, ela teve uma hemorragia e abortou o feto que estava esperando. 

– Essa não – Cássio lamenta: – Ela já sabe que perdeu o filho?

– Os médicos preferiram contar imediatamente. Foi um grande choque, mas ela suportou. Neste momento, ela está acordada. O senhor gostaria de vê-la?

– Sim, vamos lá...

Ao entrar no quarto, Cátia, deitada na cama e coberta por um lençol, olha o amigo e começa a chorar. Ele corre para abraçá-la.

– Calma, estou novamente ao seu lado, Cátia.

– Bem que você disse que eu não deveria dirigir e, teimosa como sempre, insisti.

– Isso não importa agora. O importante é que você está bem.

– Perdi o meu filho, Cássio.

– Mas está viva e bem. Filho depois a gente faz outro – ele diz, brincando com ela, sendo que, no fundo, este era o seu grande desejo oculto.

– Você não presta, Cássio! – ela declara sorrindo.

Já mais tranquila com o afeto do amigo, Cátia adormece. Ele aproveita e vai até o corredor dar um telefonema ao seu velho amigo. Conta-lhe tudo o que aconteceu naquele dia, desde a revelação da gravidez até o acidente e a perda do bebê. No final da conversa, Cássio observa:

– É, cara, acho que o caminho está novamente aberto para a minha confissão!

Dias depois, a campainha toca no apartamento de Cássio. Ele abre a porta e vê uma linda moça.

– Pois não?

– Por favor, eu gostaria de conversar com o senhor Cássio.

– Sou eu mesmo, mas, por favor, tire esse senhor.

– Tudo bem – ela diz num sorriso, estendendo a mão direita: – Meu nome é Simone. Sou amiga da Cátia e gostaria de conversar um pouco sobre ela.

– Tudo bem. Acho que me lembro de você na última festa na casa de Cátia. Por favor, entre. Fique à vontade.

Já acomodados no sofá, tomando um café, Simone explica:

– Sou psicóloga educacional e trabalho na mesma escola em que a Cátia leciona. Durante esse tempo de convivência com ela, criamos uma amizade muito grande e tornamo-nos confidentes uma da outra. Por isso, estou acompanhando todo o processo que ela atualmente está passando.

– É, realmente a Cátia está passando por um mau pedaço.

– E isso tem me preocupado. Foram três grandes conflitos ao mesmo tempo: a perda do namorado; a gravidez inesperada que, de repente, se tornou algo desejado como uma forma de compensar a primeira perda e, por fim, o acidente causando um aborto espontâneo. Tudo aconteceu quase ao mesmo tempo, abalando bem a sua parte psicológica. Porém, como ela comenta que você, Cássio, é o grande amigo que dá o maior apoio a ela, fiquei muito curiosa em conhecê-lo. Você nem imagina como está sendo importante para ela.

– Fico muito feliz por ouvir isso, Simone. Só que eu gostaria de poder fazer muito mais por ela.

– Você já está fazendo o suficiente para ajudá-la, Cássio. Quisera eu também ter um amigo desse jeito.

– Não, você não está entendendo. Queria ser mais que um amigo.

– Realmente, não estou entendendo. O que você está tentando dizer?

Cássio pensa um pouquinho e não hesita em confessar:

– Simone, eu estou gostando muito da Cátia. É algo forte, já tem algum tempo. Apesar de me manter como amigo, está cada vez mais difícil manter esse sentimento oculto dentro de mim. Já não sei mais nem o que fazer.

–E eu nem sei o que dizer – a psicóloga confessa surpresa.

– Estou prestes a fazer uma confissão. O que você acha, Simone?

– Acho uma grande loucura, mas ao mesmo tempo, sabemos que o amor acontece quando e por quem a gente menos espera. Quanto à confissão, Cássio, acho que não é o momento certo. Está certo, você tem todo o direito de colocar o seu sentimento para fora. Só que temo que agora não seja o momento mais adequado, uma vez em que Cátia tem em você uma pessoa altamente confiável, praticamente um irmão, essa confissão poderá confundir ainda mais a cabeça dela.

– É que não aguento mais guardar esse sentimento só para mim.

– Sinceramente, dei a minha opinião. Agora essa é uma decisão que só compete a você!

De volta ao velho barzinho de fim de tarde, Cássio conversa, entre um e outro copo de cerveja, com aquele amigo de sempre:

– Cara, não estou suportando mais o meu sentimento por Cátia.

– Você sabe muito bem qual é a minha opinião. Acho que você já deveria ter se aberto com ela.

– Hoje, conversei com uma amiga dela. Essa amiga é psicóloga e acha que uma confissão agora poderá confundir ainda mais a cabeça de Cátia.

– Bicho, o que os psicólogos dizem não se escreve. O que importa é você e a Cátia. Se realmente ela tem tanto carinho e afeto por você, saber que é amada por uma pessoa tão especial a ela poderá até ajudá-la a superar esse momento difícil.

– Sei lá. Acho tão difícil chegar assim de repente e fazer uma confissão amorosa...

– Difícil por quê? Estamos vivendo a era da objetividade. Não há mais espaço para aqueles discursos longos e melosos. É só chegar e dizer de forma curta e grossa: Eu amo você!

Cássio, sem nada mais dizer, toma um gole de cerveja, pensativo.

A campainha toca insistentemente no apartamento de Cátia e ela vai atender.

– Cássio, que bom você ter chegado justo neste momento. Mas por que tanta pressa a ponto de disparar a campainha?

– Preciso demais falar com você – ele declara entrando.

– Também tenho algo a contar – ela confessa ao fechar a porta.

Nesse momento, Cássio observa várias malas num canto da sala e, apontando-as, indaga:

– O que significa isso?

– Eu iria mesmo telefonar para contar a você. Estou indo esta noite embora para os Estados Unidos, já é um projeto antigo e tenho até o visto de entrada. Consegui um emprego de baby-sitter. Acho que será melhor para mim passar uma temporada longe daqui. E você, o que tem para me contar?

Cássio respira fundo e diz num só fôlego:

– Cátia, eu amo você como nunca amei ninguém!

Ela solta uma sonora gargalhada.

– Ora, isso não é hora para brincadeira.

– É sério. Era isso que eu iria contar naquela noite quando você apresentou o João Paulo como seu namorado.

– Pare com isso, Cássio. Não estou gostando nada dessa brincadeira – alerta a moça, começando a ficar séria e a tremer pela declaração do seu melhor amigo.

– Não é brincadeira, Cátia. Não aguento mais sufocar esse sentimento dentro de mim. A coisa que mais desejo é estar todo o tempo ao seu lado. Sentir-me mais feliz, mais seguro, mais relaxado quando você estiver ao meu lado. Desejo tocar em você, segurar a sua mão e estar sempre perto de você. Tenho vontade de ser gentil, carinhoso, tolerar demandas e manter a relação. Revelarmos um para o outro fatos íntimos, sentimentos de confiança e apreço um pelo outro. Resumindo, Cátia, preciso de você na minha vida!

– Meu Deus, que loucura! – a moça exclama e coloca as mãos na cabeça: – Cássio, entenda. Você é o meu melhor amigo e espero que continue assim. Não vejo a mínima possibilidade de haver algo mais entre nós.

– Mas, Cátia...

– Não insista, Cássio. Acabo de ter um relacionamento muito difícil e complicado. Não estou com a cabeça muito legal. É melhor eu dar um tempo para eu mesma.

– Tudo bem – o rapaz concorda decepcionado.

– Agora, como meu velho amigo, posso pedir o favor de você me levar ao aeroporto?

Durante todo o trajeto, Cássio, olhando só para a frente, não diz nenhuma palavra. Ao parar o carro perto da entrada do saguão, desce para ajudar Cátia a retirar sua bagagem do porta-malas.

– Você não vai esperar eu embarcar?

– Não, Cátia, desculpe-me, mas daqui a uma hora tenho uma apresentação no teatro.   

– Então, até um dia, Cássio.

– Até... – ele diz ao abaixar a cabeça e sair sem um abraço ou aperto de mão como despedida.

Nunca foi tão difícil desempenhar a sua função de ator como naquela noite. Após o espetáculo, sem a mínima vontade de voltar para casa, Cássio vai para um bar e, sozinho numa mesa, bebe à noite inteira.

Já no final da madrugada, chega ao prédio onde reside. Sobe cambaleando pelo corredor e, com dificuldade, abre a porta, entrando de uma vez. Tropeça em uma mala que está quase no meio do caminho, caindo de cara no chão. Ao tentar se levantar, observa que a sala está à meia-luz e a silhueta de alguém sentado no sofá lhe diz num sorriso:

– Se você realmente quiser ficar comigo, acho bom maneirar na bebida!

FIM

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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