UMA CANÇÃO TRISTE

PRAIA DOS COQUEIROS - Emílio Figueira / Junho de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela – Med. 0,40 x 0,60

  Caminhou lentamente pela calçada com um envelope na mão. Parou de frente de uma caixa de coleta dos correios. Por alguns instantes hesitou, mas depositou ali a correspondência e partiu apressado rumo ao consultório do seu médico. Já na sala de espera, vivenciou alguns infinitos momentos de angústia até ser atendido pelo seu velho amigo. Após algumas palavras, perguntou-lhe:

– Meus exames já chegaram? 

– Sim, Gustavo...

Conversaram por uma boa meia hora...

– É isso aí, meu amigo. Bola para frente.

– Bem, preciso ir. Semana que vem recomeçam as aulas na universidade e tenho que terminar de preparar os meus planejamentos. Dura rotina de um professor de história da música e teoria musical...

– Faça isso. Nada como manter-se ocupado e em plena atividade!

* * *

A noite caiu. Sozinho em seu apartamento, entre pilhas de livros, Gustavo trabalhava intensamente em sua escrivaninha. No canto perto da janela, ficava o piano em que treinava e fazia composições. Aliás, sempre produzia intensamente como se tivesse pressa de algo ou, então, fazia de sua produção uma fuga para sua solidão, suas angústias. Perto de seus 40 anos, não tinha mais seus pais e, por ter sido filho único, sua família resumia-se em si mesmo. Parentes próximos só havia no exterior. Não se casou, pois, por ter uma vida intensa dedicada aos estudos, não teve vida social e nunca “possuiu” uma mulher. Como um verdadeiro e sensível bom artista, era um grande entendido em amores platônicos!

* * *

A semana voou. Chegou o primeiro dia do ano letivo. À frente de sua classe, ministrou durante três horas sobre teorias musicais. Aquilo o realizava. Fazia de seu trabalho a razão de sua existência como se cada momento fosse uma nota musical. Ao terminar a aula, todos estavam saindo, momento em que uma moça apareceu à porta. Era uma jovem em torno de seus vinte e poucos anos de idade. Dali mesmo, perguntou-lhe:

– Professor, posso entrar?

– Sim, Dani, entre – ele pediu quando estava sentado à sua mesa, começando a suar frio.

Delicadamente, ela lhe deu um beijo na face e sentou-se em uma carteira à sua frente.

– Como foram suas férias? 

– Um pouco tristes, Gustavo, mas vamos deixar isso para lá. Eu recebi sua carta...

– Entenda, Dani, eu precisava fazer essa confissão a você, meu coração estava explodindo. Há muito tempo que eu não encontrava uma pessoa tão especial como você. Mesmo sabendo que não tenho nenhuma chance... Mas se você não quiser, não precisamos conversar sobre isso.

– Eu quero conversar sobre isso. Por que você diz não ter chance?

– Você é como um lindo brinquedo na vitrine de uma loja fina. Eu sou aquele menino de rua que olha esse brinquedo com admiração e brilho nos olhos, mas tem a consciência que nunca poderá tê-lo!

– Que horror essa metáfora, Gustavo.

– É como me sinto.

– Só que esse menino pode ter outras qualidades que o façam digno desse brinquedo!

– Como assim?

– Nesse tempo em que fui sua aluna, o privilégio de tornar-me sua amiga já foi um grande presente que me fez descobrir muitas qualidades em você. Seu carisma e sua força de vontade, entre muitas qualidades, são admiráveis e cativantes!

– Agradeço e até fico emocionado.

– Não agradeça, estou sendo sincera. E quer saber do que mais? – ela interrompe a fala por alguns instantes, lançando um charminho: – Acho que podemos tentar...

– Dani, mas e nossa diferença de idade?

Ela levantou-se, foi em direção a ele, segurou com ternura seu rosto com as duas mãos, olhando dentro de seus olhos, respondendo-lhe:

– O amor não pede RG – deu-lhe um gostoso beijo à boca. 

Uma profunda emoção tomou conta do professor e foi refletida num brilho nos olhos e nas lágrimas que rolaram. Levantou-se e foi até o piano ao canto da sala. Ao se sentar, começou a dedilhar uma melodia. Ela foi até ele, segurou em seus ombros, exclamando numa interrogação:  

– Que lindo! Que canção é essa?

– Gostou? É minha. Estou compondo em sua homenagem.

– Ela parece triste.

– Mas pode se tornar feliz ao final, pois ainda vou terminá-la.

Um novo beijo surgiu. Depois, uma fome e foram de mãos dadas à cantina. Alguns dias se passaram e àquele namoro tornou-se comentado nas rodinhas da universidade, algo do tipo “o professor está catando a ex-aluna!”. Eles não ligavam, viviam aquele amor de forma simples e com muito respeito mútuo.

Até que um dia, ela o convidou para uma festa na república universitária de seus amigos. Lá, ele se sentiu bem entre aqueles jovens. Riu muito, contou e ouviu lorotas. Curtiu as músicas do momento. Ao final da noite, estavam os dois dançando uma música lenta quando ela sussurrou ao seu ouvido:

– Por que você nunca me convidou para conhecer o seu apartamento?

– Acho que isso nunca me ocorreu. Se você quiser, podemos combinar um dia.

– Por que não hoje?

* * *

Ao entrarem no apartamento, ela ficou admirada com os livros na sala, o material de trabalho, partituras e o piano ao canto. Tirou o seu tênis, sentou-se no sofá, convidando-o para namorar. Trocaram beijos, carícias e sussurros de amor. Ela o envolveu com tanta delicadeza feminina e o seduziu aos poucos. Devagar, tirou sua blusinha e a calça jeans, ficando só de lingerie. Sabendo que ele, apesar de um quase quarentão, era inexperiente, também o despiu e o levou para o quarto, momento em que se entregaram num êxtase total. Depois, dormiram abraçados calmamente.

Um raio entrou pela fresta da janela, anunciando o amanhecer. Ao despertar, Gustavo viu-se sozinho na cama. Levantou-se para procurá-la e, ao entrar na sala, Dani, que vestia uma de suas camisas, foi em sua direção e deu-lhe um beijo à boca, dizendo-lhe:

– Bom dia, amor, preparei um café da manhã bem gostoso para você.

– Nossa, faz muitos anos que ninguém faz isso por mim!

– Só que agora você tem uma namoradinha para cuidar de você!

E o que era para ser um simples café, tornou-se um momento romântico e significativo para um homem sempre solitário. Em seguida, ele sentou-se ao piano.

– Continuo trabalhando na sua música. Veja...

Tocou por alguns instantes.

– Ela continua triste.

– Sim, mas ainda vou encontrar acordes e notas alegres para ela.

– Então, vamos para universidade?

– Acho melhor você ir à frente, tenho que passar antes no meu médico.

– Médico?

– É, nada de importante. Só exames de rotina.

* * *

Os dias foram passando. Aquele relacionamento seguia cada vez mais forte e companheiro. Dani refletia juventude na vida de Gustavo, que também a fazia bem por sua maturidade.

Certo dia, ele apareceu com uma novidade. Havia sido convidado a assistir a um concerto no Teatro Municipal.

– Gostaria muito que você fosse comigo.

– E por que não? Afinal, sou sua companheira.

– Tem um detalhe. Será uma noite de gala.

– Não subestime a capacidade transformadora de uma mulher – comentou sorrindo e continuou: – Você me pega na república?

* * *

Na hora marcada, Roberto, em seu terno, tocou a campainha na residência dela. Teve que esperar por alguns momentos, mas valeu a surpresa ao vê-la. Estava de tailleur preto, com uma camisa branca por baixo, meia-calça, um sapato estilo Chanel preto, tudo combinando para compor o look. Para completar, bolsa vagão, óculos estilo gata, cabelos soltos com cachos bem-definidos e maquiagem marcante, que destacava bem os olhos e deixava os lábios apenas com brilho envolvente. 

Linda como nunca, passou todo o tempo de braço dado com o seu namorado. Depois, um jantar romântico num restaurante fino. E, para a noite ser completa, amaram-se no apartamento dele e adormeceram abraçados.

De madrugada, ele acorda agitado.

– O que está acontecendo? – ela indagou ainda com uma cara de sono, despertando assustada.

– Um mal-estar. Acho que minha pressão arterial caiu. Vou tomar o remédio, já passa.

Ele se levantou cambaleando e ela, rapidamente, o apoiou.

– Vamos, eu o levo até a cozinha.

Ao voltarem à cama, ela o acomodou e colocou mais um travesseiro.

– Qualquer coisa, pelo amor de Deus, fale.

Dani se deitou ao seu lado, não conseguiu mais dormir o resto daquela noite, pois ficou preocupada e com medo de ele passar mal novamente.

Na manhã seguinte, Gustavo acordou com um desejo:

– Estou com vontade de ver o mar.

– Hoje é sábado. Podemos pegar o carro e passar o dia na praia... Você já está bem?

– Sim Dani, estou...

* * *

Viajaram... Ele foi de bermuda e ela foi de biquíni. Caminharam por um bom tempo de mãos dadas à beira-mar. Nada conversaram. Mais tarde, almoçando frutos do mar em um quiosque, a moça comentou:

– Enquanto caminhávamos, achei o seu olhar tão distante. Algum problema?

– Nada de importante, Dani. Estava rememorando toda a minha vida até aqui. Acho que nunca fui tão feliz como estou sendo ao seu lado. E vi que ainda não agradeci você por esse bem tão grande.

– Deixa de ser bobo, lindo. Essas coisas não se agradecem. Vive-se enquanto dura!

E deram um beijo à boca.

* * *

Voltaram do litoral. Cinco dias se passaram, dos quais dois a moça ficou sem dar notícias. Na sexta à noite, o professor estava trabalhando ao piano quando a campainha tocou. Ao abrir a porta, Dani estava com um olhar diferente.

– Gustavo, precisamos conversar.

– Por favor, entre.

Tentou dar-lhe um beijo, mas ela rejeitou, tirando o rosto. Foi em direção ao sofá e se sentou, enquanto ele fechou a porta.

– Estou ficando preocupado. Você some por dois dias e agora aparece tão estranha – Gustavo comentou ao se sentar à sua frente.

– Acho melhor eu ir direto ao assunto. Lembra-se de que eu comentei que minhas férias foram tristes? Pois é, eu havia acabado um namoro duradouro com o meu primeiro amor. Há cerca de dois dias nos encontramos, conversamos bastante e acabamos ficando novamente.

– E aí, Dani?

– Agora estou dividida. Eu gosto muito dele, mas você também é muito importante para mim. Você me dá segurança, carinho, atenção, companheirismo, é delicado, romântico e atencioso. É como o meu porto seguro.

– Sabe, Dani, às vezes, precisamos esquecer a razão e seguir o coração. O seu, neste momento, o que está pedindo?

– Sinceramente, está pedindo para voltar para ele.

– Então vá, siga o seu destino... Sempre serei seu amigo e estarei aqui para apoiar você no que precisar.

– Você realmente é especial, cara!

Levantaram-se e trocaram um forte e demorado abraço silencioso.

– Posso pegar umas coisas minhas no seu quarto?

– Claro. – Gustavo apontou a direção sorrindo. Em seguida, sentou-se ao piano e começou a tocar a canção que estava compondo. Ela voltou do quarto, mas ele, indiferente, continuou a dedilhar as teclas. Dani abriu a porta e, quando ia saindo, olhou para trás e comentou:

– A canção continua triste...

Ele parou de tocar, olhou para ela e disse:

– A minha, sim... Só que a sua canção pode ser feliz!

Dani deu apenas um sorriso e se foi.

* * *

Por um bom tempo, a moça evitou encontrá-lo na universidade. Uma forma de poupá-lo de algum sofrimento. Até que um dia, uma vontade louca a levou à porta da sala em que ele frequentemente lecionava. Outro professor ocupava o seu lugar. Ao sair uma aluna, Dani a indagou:

– O professor Gustavo não veio hoje?

– Não, ele entregou o cargo há cerca de duas semanas e ninguém mais o viu pela universidade.

Dani tentou ligar para o seu apartamento e não foi atendida. Resolveu ir até lá. Ao tocar a campainha, alguém abriu a porta. Era um homem de branco. Ela notou que as coisas estavam sendo encaixotadas e, então, perguntou-lhe:

– O Gustavo está?

– Você deve ser a Dani?

– Sim.

– Por favor, entre, sente-se.

Percebendo algo estranho, entrou calada e se sentou. O senhor fechou a porta e também se sentou à sua frente, revelando-lhe:

– Fui o médico e amigo de Gustavo. Acho melhor ir direto ao assunto. Infelizmente, ele nos deixou há cinco dias.

– Como assim, doutor? – Dani tomou um choque.

– Ele tinha uma doença rara e fatal. Lutou muito nos últimos dois anos, mas não resistiu.

– No último mês, nós namoramos intensamente e ele nunca me contou nada.

– Eu sei. Gustavo tinha um grande sonho, viver um amor antes de morrer e, ao seu lado, ele conseguiu. Sabe, Dani, ao seu lado ele foi feliz e você só fez bem em sua vida.

– Mas quando o deixei, por que ele não fez nenhum esforço para eu ficar ao seu lado?

– Era um homem altamente sensível. Sabia que o amor de vocês tinha uma espécie de prazo de validade. Além do mais, ele sentiu que a sua volta com o seu ex-namorado foi oportuna para você não sofrer com sua partida, pois sabia que não tinha futuro.

O médico levantou-se, foi até o piano, pegou uma pasta de papel. Voltou e disse:

– O Gustavo me encarregou de dar destino às suas coisas, mas deixou isso para você. Tome. 

Dani levantou-se e pegou a pasta das mãos do médico.

– Obrigada, doutor. Agora tenho que ir.

– Você está bem?

– Estou, não precisa se preocupar.

* * *

Dani desceu as escadas não querendo acreditar no momento em que estava vivendo. Uma espécie de filme dos momentos vividos ao lado de Gustavo passava por sua mente. Chegou à calçada, abriu a pasta. Dentro, havia a partitura de sua composição e o título: “Uma canção triste”.  Naquele instante, a imagem de Gustavo voltou à sua mente, dizendo-lhe: “A minha sim, mas a sua canção pode ser feliz!”. Olhou os carros na rua, as pessoas na calçada. Todos continuavam caminhando rumo ao futuro. 

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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