A FÁBRICA DE LOUCOS

LENTE DO MUNDO - Emílio Figueira //Nov. de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 0,40 x 0,60


 “A loucura, objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.”

Simão Bacamarte, personagem de O Alienista, de Machado de Assis


A FUGA

Os hospitais psiquiátricos no Brasil surgiram no final do século XIX, profundamente influenciados pela psiquiatria francesa e pelo tratamento moral. O primeiro foi o Asilo Pedro II, no Rio de Janeiro fundado em 1853. Iniciava-se a transformação da Saúde Mental do Brasil, onde as discussões em relação aos transtornos mentais ganharam força. Nesse período o doente mental era considerado um perigo. As instituições para loucos, ao decorrer da história, receberam diversas denominações tais como hospícios, asilos, manicômios, hospitais psiquiátricos; mas independente do nome como eram conhecidas, todas elas tinham a mesma finalidade: esconder o que não se desejava ser visto.

Na maioria das vezes, pessoas com doenças mentais viviam confinados em hospitais psiquiátricos como o de Juquery, em São Paulo, isolados de tudo e de todos, até a morte. Muitos eram submetidos à camisa de força e a técnicas violentas como a lobotomia e o eletrochoque.

Florisvaldo e Emengarda caminham pelo pátio do hospício (onde internos vivem perambulando, sem atividades e muito medicalizados). Os dois cantam a “Balada do Louco” de Ney Matogrosso. Param e ele comenta:

- Não aguento mais essa vida de interno neste hospício.

- Até perdi a noção do tempo. Há quanto tempo caminhamos por este pátio? Entre milhares de pessoas, crianças, jovens, adultos, idosos vivendo em condições subhumanas.

- Por quantas vezes caminhamos nus sobre os nossos próprios dejetos, cercados de urubus, muitos abandonados por nossas famílias. Muitas pessoas dormindo amontoadas, morrendo de inanição, ou, em bom português, morrendo de fome...

Emengarda caminha até o centro, abre os braços e fala alto:

- Muito prazer, isso é o que vocês portadores das faculdades mentais normais chamam de loucura. Pessoas que vivem perdidas entre confusões mentais e crises de identidades. Viva!!! Da sanidade à loucura, sem a mínima chance de recuperação...

Florisvaldo dá uma gargalhada. Emengarda vira-se e volta até ele.

- Qual é a graça, Florisvaldo?

- Emengarda, lembrei-me de uma clássica piada de hospício.

- Conta, conta, também quero rir...

- Um homem muito bem-vestido entrou num hospício, encontrou um louco no pátio e perguntou - muda o tom da voz: - “É verdade que aqui dentro estão todos os loucos do mundo?”. - Voz normal: - O louco respondeu: “Não senhor. Aqui só está o alto escalão. O grande pelotão está do lado de fora!”

Juntos riem muito e ela questiona:

- Estou aqui desde menina. Nem sei se ainda tenho família. Como deve ser o mundo lá fora?

Tchalau, outro paciente interno, entra correndo:

- Pessoal, pessoal, o caminhão da lavanderia esqueceu o portão de serviço sem cadeado...

- E daí, Tchalau...?

- E daí, Florisvaldo? Daí acho que já é hora de conhecemos o grande pelotão. Vamos nessa? – Sugere ela.

- Só se for agora!!! – Respondem os dois juntos.

Os três saem correndo. Tempos depois, nos rádios pela cidade, toca a música do “Repórter Esso”, anunciando: 

- E atenção. Aqui fala o seu Repórter Esso, testemunha ocular da história. Na tarde de hoje, três pacientes considerados graves lunáticos fugiram do Hospital Psiquiátrico Central. Eles podem estar em qualquer parte da cidade. Qualquer informação, pede-se a gentileza de ligar para hospital ou para a delegacia mais próxima.

O DEPUTADO DELCLÉSIO

Em seu gabinete, o assessor Zé nada e o Deputado Estadual Delclésio entram em passos largos.

- Essa fuga não poderia acontecer, Zé Nada...

- Eu sei Deputado Delclésio. Foi uma fatalidade – tenta acalmar, limpando e ajeitando o paletó do chefe.

- Fatalidade nada. Foi incompetência mesmo. Eu e outros tantos deputados federais temos abertos tantos hospícios e conseguido lá em Brasília altas verbas do Ministério da Saúde para mantê-los. Está certo, não precisamos de todo esse dinheiro para essa finalidade. – Cinicamente: - Damos destinos mais nobres para grande porcentagem dessas verbas. Afinal, loucos não precisam mesmo de tanto luxo...!

E o assessor responde sorrindo:

  - É realmente, os hospícios são negócios muito lucrativos. Verdadeiros depósitos daquilo que a sociedade rejeita, confirmando a sua incompetência de lidar com certos problemas.

- Nunca mais repita isso, entendeu, Zé Nada... – Grita irritado.

Entra na pequena sala uma repórter com um gravador na mão indo direto ao deputado, questionando:

- Deputado, deputado, o senhor pode dar uma declaração ao meu jornal sobre a fuga dos três pacientes?

- Não tenho nada a dizer para vocês, urubus da imprensa.

- O senhor não acha que esse acontecimento pode reforçar ainda mais as discussões sobre a luta antimanicomial? Ele se caracteriza pela luta pelos direitos das pessoas com sofrimento mental. Dentro desta luta está o combate à ideia de que se deve isolar a pessoa com sofrimento mental em nome de pretensos tratamentos e preconceitos que cercam a doença mental. No Brasil, tal movimento inicia-se no final da década de 70 com a mobilização dos profissionais da saúde mental e dos familiares de pacientes com transtornos mentais. Esse movimento se inscreve no contexto de redemocratização do país e na mobilização político-social. O movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira objetiva não somente a desinstitucionalização da loucura, por meio da extinção dos manicômios, mas também defende os direitos dos sujeitos em sofrimento psíquico e orienta mudanças na assistência em saúde dessa população.

- O que eu acho é que vocês da imprensa são muito chatos!!!

O Deputado Declésio e zé nada vão saindo da sala. A repórter acompanha, tentando entrevistá-lo.

Pelas rádios da cidade a música do “Repórter Esso”, volta a tocar:

- Novamente, aqui fala o seu Repórter Esso, testemunha ocular da história. Três dias se passaram e ainda não se tem nenhuma pista dos três fugitivos do Hospital Psiquiátrico Central...

O TRÂNSITO

Emengarda, Florisvando e Tchalau estão às ruas. Esse último abre os braços alegre: 

- Enfim a liberdades das ruas...

Pelas ruas e avenidas, muitos motoqueiros apressados em um trânsito caótico. Muitos transeuntes andando rápidos pelas calçadas. Os três fugitivos estão perdidos entre eles.

- Meu Deus, onde estamos...?

Um motorista fecha o motoqueiro, ocorre uma rápida discussão:

- O seu cretino, não vê por onde anda não?

- Não interessa por onde ando. Estou dentro do meu carro. Isso me dá sensação de poder, de proteção, que estou guardado numa espécie de útero e dele posso tudo. Não preciso respeitar ninguém, ser gentil, contribuir para o bom andamento do trânsito da minha cidade. Dentro do meu carro eu sou o bom. São os outros que precisam me respeitar... – E dá uma gargalhada.

Em meio a todo aquele tumulto, Florisvaldo grita:

- Alguém pode me explicar o que está acontecendo?

Como em uma cena surreal, os motoristas e o motoqueiro congelam. À medida que vão falando, descongelam um a um.

- Vocês três sejam bem-vindos à correria do trânsito e dos pedestres, encontrões sem qualquer pedido de desculpas, quando não seguidos de protestos mal-educados.

- Ruídos ensurdecedores que não permitem, muitas vezes, que pessoas próximas possam se ouvir a não ser aos berros... - Pausa, caminha lento e completa olhando para os três fugitivos: - Tudo isto já é motivo suficiente para o funcionamento a todo vapor de uma grande fábrica de loucos, pois não?????????????

- É nas relações humanas que se exacerba a ideia da insanidade da megalópole.

- Há os que nem se olham, há os que mesmo enxergando, nem percebem o seu próximo. Há os que em nome da competitividade, pisoteiam. Massacram sem se importar em momento algum, com as consequências de seus atos. Caldo de cultura ideal para que a bactéria da loucura se desenvolva, cresça e se torne um monstro devorador.

  Motoqueiros e motoristas falam todos juntos olhando para os três:

- Viver nesta cidade é como estar dentro de um liquidificador que dilacera, tritura e produz um caldo de péssimo gosto e aspecto repugnante.

Voltam todos ao tumulto da cidade. Pelos rádios, o “Repórter Esso” cobra: 

- E aí Deputado Delcleísio? A sociedade espera uma resposta.

 O MUNDO DEUS-MERCADO

Em seu gabinete o Deputado Delclésio está falando ao celular:

- Eu sei, nobre colega deputado. Essa fuga nunca poderia ter ocorrido. Muito menos vazado para imprensa. Mas não se preocupe, todas as providências estão sendo tomadas para a situação ser revertida. Um abraço. - Desliga o celular.

- Problemas, deputado Delclésio?

- Sim, Zé Nada. O pessoal lá de Brasília que apoiam a minha luta contra o fim dos manicômios estão todos enfurecidos.

Zé Nada comenta irônico: 

- São pessoas que como o senhor montam manicômios e recebem altas verbas do governo para esse fim, não?

- Na verdade, estamos fazendo um grande favor para à sociedade. Cuidamos de um tema que a maioria dos cidadãos gostaria de ver varrido para debaixo do tapete, a loucura.

A repórter volta a invadir o gabinete, entrando direto na conversa:

- E com isso essa mesma sociedade causa grandes sofrimentos à essas pessoas... Marcado por mobilizações em todo o Brasil, em 18 de maio é celebrado o Dia Nacional de Luta Antimanicomial. A busca por uma atenção mais humanizada, com base comunitária somada à reabilitação psicossocial é o principal objetivo da luta.

- Chegou quem estava faltando... Você não larga do meu pé não, minha filha?

- Eu não sou sua filha. Sou uma repórter em busca de justiça. Alguém que acredita que atrás dos muros dos manicômios existem pessoas com criatividade, capacidade de trabalho, de viver em sociedade e, sobretudo, pessoas dotadas de sentimentos!

- Sim, muito bonito todo esse seu discurso – diz o deputado, batendo palma: - Mas não se esqueça minha cara que culturalmente sob essas pessoas recai o preconceito que elas não podem ser enquadradas nos padrões vigentes. Por isto são afastadas, na maioria das vezes pelas próprias famílias, do convívio social e produtivo.

- Acho que pela primeira vez terei que concordar com o senhor, deputado. A lógica da exclusão neste mundo do deus-mercado é impiedosa: quem não for produtor, consumidor e contribuinte, está fora do jogo.

- Viu como não é difícil concordar comigo...!

Ironiza o parlamentar. O assessor Zé Nada completa:

- E neste mundo deus-mercado os loucos vão para os manicômios, os velhos para os asilos, as crianças de rua para os reformatórios...

- Essa é a realidade, minha filha. Essa é a realidade...

- Já disse que não sou sua filha... – A repórter fica brava, saindo pisando firme.

A EMPRESA

É uma empresa com muitas pessoas trabalhando em uma linha de produção de uma fábrica, parecendo todos alienados, não se percebem e nem se comunicam. Emengarda, Florisvaldo e Tchalau entram correndo no local, fugindo das ruas.

- Ufa... Fugimos daquele trânsito caótico.

- É, mas entramos em um lugar bem estranho...

Entra uma empresária com uma plancha e caneta às mãos, questionando-os: 

- Vocês três devem ser os novos candidatos à funcionários da minha fábrica.

- Na verdade senhora, nem sabemos mais quem realmente somos neste mundo de loucos... – Responde Tchalau.

A empresária dá uma gargalhada:

- Muito hilário você... - Muda para séria: - Mas eu não tenho tempo a perder com piadinhas idiotas. Para mim tempo é dinheiro, hot mone...

- Mas pra que você quer tanto dinheiro??? – Questiona Emengarda.

- Ora, minha jovem, em que mundo você vive? No mundo dos loucos?

Tchalau dirigindo-se para Florisvaldo:

- Como ela descobriu que viemos do mundo dos loucos?

- Talvez ela identificou-se conosco...

- É bom que vocês saibam. Não se mede o ser humano pelo que ele é, mas pelo que ele tem. Não importa se o que tem foi fruto de meio ilícito, mas o importante é: ELE TEM! Não basta ter, tem que ostentar! Um carro? Tem que ser importado! Um relógio? Não vale um marcador de tempo, tem que ser uma joia no braço! Viajar para o interior, descansar, pescar, passear com as crianças? Que nada, tem que ser na Disney! Ir àquela cantina comer uma massa gostosíssima? Que nada, vamos comer uma merreca nem restaurante badalado! Ter um vira-lata que toma conta de casa, brinca com as crianças e é super-leal? Que nada, o negócio é um Pit Bull, para você nem poder ir ao seu quintal!

A empresária vai dar ordem aos funcionários. Emengarda diz aos companheiros: 

- A vida é uma loucura. Não deveria ser, ela tem por princípio ser boa, mas sei lá o que acontece que o homem estraga tudo o que põe a mão, mas enfim...

- A ganância tornou o homem esse ser insensível e superficial que ele é, e por causa dela estamos nessas condições – comenta Tchalau: - Ou não seria a ganância, mas sim o orgulho... O pecado original, o que origina todos os outros... No momento em que o homem diz: EU, pronto...

-  Eu sou o centro das atenções, portanto o que importa sou eu, aí, todos os outros pecados, que os gregos antigamente chamavam de tendência naturais do ser humano, veem à tona.

E os três falam em quase um jogral:

- EU-orgulho. EU QUERO MAIS-avareza, cobiça.

- EU QUERO TUDO-gula.

- EU QUERO O DELE-inveja.

- EU NÃO CONSIGO O QUE EU QUERO-ira.

A empresária voltando e já dizendo:

- Ou seja, tudo está no eu. No momento em que o homem corta o cordão umbilical entre ele e o mundo, tudo fica complicado, pois se não é ele, se não faz parte dele não tem importância. Portanto, a luta pra somente seu benefício aumenta o índice de frustração, pois as pessoas passam a ter que trabalhar em coisas que não gostam, a trabalhar demais pra conseguirem se sustentar, e mesmo assim não conseguem muitas vezes.

Florisvaldo completa: 

- Aumenta então a violência, pois muitos não tem nada, alguns tem pouco e poucos tem muito, isso não é necessário, poderia ser melhor distribuído... Estressa muito se esforçar demasiadamente e não ver seu trabalho reconhecido porque uma minoria dominante não permite, porque os valores estão deturpados, porque o que vale hoje é um monte de bundas na TV...

- Isso é preciso, dá dinheiro, enquanto muitos outros tentam fazer coisas significativas para humanidade e não ganham dinheiro, não são reconhecidos e muitas vezes sofrem preconceitos. Isso estressa muito – acentua Emengarda.

Um dos funcionários vem à frente deles: 

- O ritmo de vida é estressante, acordar cedo, trabalhar o dia todo, dormir tarde... Trânsito, congestionamento, chuva e enchentes, metrô, ônibus e trens cada vez mais lotados e em más condições, que demoram uma eternidade pra passarem, isso particularmente me estressa mais que tudo.

- Falta educação das pessoas, dos motoristas de ônibus, dos atendentes de lugares públicos... Nossa, isso é um estresse – diz outro funcionário.

- Ter que se encaixar nas normas da sociedade em relação a gosto, aparência, conceitos, sexualidade. Isso estressa – fala a empresária.

Todos dizem juntos: 

- Andar pela cidade olhando pra todos os lados, com medo, pânico de ser assaltado a qualquer instante. Estressa demais.

E os três fugitivos começam a recitar:


Ao cair da tarde

somos todos iguais

bandos solitários

seres não rivais

 

sonhadores desamparados

entre pianos ritmados

caminhando por veredas

seres (não) amados

 

grande metrópolis

engolindo-nos em instantes

velados por luzes

seres não brilhantes

 

imensa senzala aberta

conhecemos a liberdade

(mas escravos do sistema)

seres de muitas ansiedades.

Deixam a empresa. Pelos rádios, volta a voz do “Repórter Esso”:

-Segundo dados de órgãos oficiais, o estresse da vida moderna aumenta consideravelmente. Mas será que esse círculo vicioso que cada vez exigimos de nós mesmo um dia terá fim?

O SER INCOMPLETO

Em um almoço, Zé Nada questiona:

- O senhor Deputado Delclésio, não teme que a repercussão dessa fuga prejudique a sua próxima campanha política?

- Que nada, Zé Nada. O povo está tão envolvido com o seu próprio mundo que nem presta atenção aos políticos de seu país. Por isso, deitamos e rolamos. - Dá uma gargalhada.

- Como assim, o povo está envolvido com o seu próprio mundo...?

- O ser humano, por natureza, nasce e morre infeliz e se sentindo incompleto. Posso pegar como exemplo, um rapaz. Ele conhece uma moça, encanta-se por ela e passa a dizer: “Se eu casar com ela, vou ser o homem mais feliz do mundo!” Com o tempo, o destino une os dois. O rapaz agora passa almejar: “Eu preciso comprar a minha casa para ser feliz com minha esposa!”. Após muito trabalho e esforços, compram uma residência segundo suas posses. Agora o discurso será: “Vou comprar um carro para poder ter mais momentos de lazer com minha família, ir com mais facilidade ao trabalho!” Novamente um período de esforços e economias até comprar um automóvel. E aí começa um círculo: “Preciso de uma casa maior para ter conforto, um carro mais novo, comprar tal coisa, trocar outras”.

- Pois é, meu querido deputado. Hoje em dia, até marido ou esposa fazem parte desse círculo de trocas. Aliás, se tem uma coisa que acho ridículo, são os caras que durante o namoro, noivado, morrem de amores e declarações melosas por sua amada; após algum tempo de casado, ao ver uma moça na rua, dizem: “Isto que é mulher, não aquela bruaca que tenho em casa”! E olha que tem muita mulher que fala assim também!

- O ser humano está sempre projetando a felicidade para o futuro. “Preciso ter tal coisa, fazer tal coisa, conquistar tal coisa para me sentir feliz!” E assim adiando a felicidade, quase nunca desfrutamos dela no tempo presente.

- Não paramos para assimilar que para se estar feliz, basta simplesmente se sentir bem. Como uma teimosia, não a percebemos no dia-a-dia, mesmo sabendo que a felicidade não é uma sensação eterna. Mas sim um estado de êxtase, daqueles que se atingem nos momentos de extremo prazer.

- É por isto que reafirmo. O povo está tão envolvido com o seu próprio mundo que nem presta atenção aos políticos de seu país. Por isso, deitamos e rolamos. Graças ao legítimo poder que nos foi dado por esse mesmo povo. - Levanta os braços, falando eloquente: - Viva a ditadura e o militarismo que esvaziaram a consciência crítica e política do nosso povo!

Novamente, o “Repórter Esso” pelas ondas dos rádios: 

- E viva o comportamento consumista que retira o foco de Brasília.

RECADO PARA O MOÇO DO DISCO VOADOR

Emengarda, Florisvaldo e Tchalau chegam à uma praça. Esse último tem um jornal em mãos.

- Nossa, complicado o mundo aqui fora, não?

- Realmente Florisvaldo, uma selva de zumbis. Que tanto você lê nesse jornal, Tchalau?

- Emengarda, estou lendo uma crônica de um tal de Ângelo Anccilot to, chamada “Carta ao moço do disco voador”... Vou recortar e mandar para ele...

Emengarda e Florisvaldo se olham surpresos.

- Você ficou louco, Tchalau???????????????

- Impossível, no máximo aumentei de graduação na loucura... – Dá uma gargualhada: - E tem mais, mandarei em nome de nós três...

- Olha lá cara, não vá me colocar em enrosco com o pessoal lá de fora. Já pensou, eu ter que ficar dando satisfação para um bando de ETs...?

Pede Emengarda e Florisvaldo lembra:

- Aliás, o físico Stephen Hawkig pediu para a gente deixar os ETs em paz. Senão eles podem se irritar e vir saquear o nosso planeta.

-  Já pensou, os ETs fazendo arrastão por aqui?????

- Calma pessoal, o assunto é outro. Começa assim. – Tchalau lê o jornal: - Moço, Já lhe enviamos muitos recados, mas até hoje você não respondeu nenhum. Acho que essa estranha forma de contar o tempo entre as galáxias, seguindo a propulsão da luz, faz com que nossas mensagens demorem muito para chegar.

- Talvez se você mandasse um e-mail, ele receberia mais rápido...

- Não se meta, Florisvaldo – fala Emengarda brava: - Pode ser que o moço do disco voador ainda não tenha banda larga. A internet dele pode ser discada...

Tchalau volta a ler: 

- Talvez daqui a quinze mil anos você as receba. Nossos recados, moço, são enviados através de músicas, de filmes, de literatura, e também por telepatia. Todos os dias muitos de nós aqui da Terra tentamos uma transmutação interuniversal. Gastamos boa parte das nossas vidas tentando contato com vocês.

Florisvaldo toma o jornal de Tchalau e continua lendo: 

- O fato, moço, é que temos urgência.  Não sei se você tem sobrevoado a Terra ultimamente. Se sim, você deve ter percebido o caos que anda isto aqui. Tem gente demais, tem barbaridades demais. Você lembra quando o Raul Seixas lhe enviou aquele S.O.S.?

- Não, né? - Florisvaldo continua lendo: - Você não recebeu ainda. Pois é, ele falava que aqui tinha sangue nos jornais. Já faz mais de trinta anos e, olha moço, de lá pra cá as coisas só pioraram. O sangue que escorria nos jornais passou para televisão, para a internet. Onde quer que haja notícia tem sangue.

- Se o moço ainda não recebeu essa canção, ele pode ir até o céu o conversar diretamente com o Raul...

- Deixa de ser burra, Emengarda!!! Vai que o moço viaja muito tempo e quando ele chegar ao céu, o Raul Seixas saiu para fazer shows. Ele perde a viagem...

- É verdade. Pode ser também que o moço não tenha crachá para entrar no céu. – Concorda Emengarda que puxa o jornal das mãos de florisvoldo e continua lendo: - Não é só isso. A vida por aqui anda muito confusa. A Terra tem quase sete bilhões de habitantes. E pelo que se calcula, daqui a cinquenta anos vai ter nove bilhões.

- Realmente, a produção da fábrica de loucos vai quadruplicar...

- É gente demais, moço – ela lendo: - Este planeta não comporta isso tudo. Fazemos guerra, inventamos gripes novas todo ano, mas a população cresce assim mesmo. Nossos recursos são limitados. Falta terra, falta água e falta ar para tanta gente. Não bastasse isso, o quarto elemento da natureza aqui não é o fogo, mas sim o dinheiro. É a combinação desses quatro elementos que impulsiona a vida no nosso planeta, mas sempre um deles está em falta.  Quando não faltam todos ao mesmo tempo.

Tchalau recupera o jornal e volta a ler: 

- Não aprendemos ainda a transformar matéria em energia.

- Nessa parte, o moço vai rir da nossa cara... 

Observa Florisvaldo, enquanto Tchalau lê mais um trecho:

- Temos um arremedo de progresso muito pobre que é usar a força das águas para movimentar turbinas. Captamos também raios solares para energia doméstica, mas isso ainda é muito rudimentar. Nossa principal fonte de energia é mesmo o combustível fóssil. É ele que move os motores do mundo. E você sabe, aqui na Terra o povo é muito preguiçoso, ninguém gosta de usar as pernas para se locomover.

-E ainda acreditam em dietas milagrosas para perder peso...

- Emengarda, cuidado com o politicamente correto...

- Usam veículos. Imagine um veículo para cada pessoa, ninguém mais sai do lugar. A terra que já foi um ambiente aprazível para se caminhar entre árvores e rios, agora é conflito de buzinas e uma disputa incessante de estacionamentos.

Tchalau, Florisvaldo e Emengarda dizem Juntos um “E viva o sedentarismo!!!”, enquanto ele continua a leitura:

- Mas o que me preocupa mesmo, e é por isso que estou lhe escrevendo, é porque o mundo anda muito estranho. Uma parte das pessoas vive de lembranças do passado e outra vive de esperanças no futuro. Entre o passado e o futuro existe um vácuo chamado presente. Quanto menos presente elas encontram em suas vidas, mais passado e mais futuro elas procuram. Não é estanho isso, moço?

Uma pausa pensativa. Emengarda pega o jornal:

- Outra coisa séria é a violência do ser humano. Por exemplo, a gente anda de noite e não sente medo de leões, nem de tigres não tememos cascavéis, cachorros loucos ou gatos do mato. Sabe do que é que a gente tem medo? Você vai achar isso absurdo, mas nós temos medo das outras pessoas. A gente prefere mil vezes encontrar um tigre num caminho escuro do que encontrar outra pessoa. - Pausa e troca de olhares espantados: - Tememos as pessoas pela ameaça física, que pode ser mortal, e tememos sua perseguição em nossos momentos de solidão, sua corrupção em nossos instantes fraternais, sua mentira nos minutos de decisão e sua indiferença quando precisamos de consolo.

- No fundo o encontro de duas pessoas é como um encontro de duas espécies distintas, criadas cada uma por um Deus diferente. É normal isso, moço? 

Pergunta Florisvaldo, enquanto Emengarda lê mais um trecho e passa a publicação para Tchalau continuar:

- Por falar em Deus, sabe aquela história de que Deus fez o homem a sua imagem e semelhança? Dizem isso aí também no seu planeta? Aqui isso anda muito mudado, são os homens que estão fazendo Deus à sua semelhança.

- Cada um inventa um Deus próprio para ganhar na loteria, para não bater o carro, para não ficar doente, para ser promovido, para ser curado. É para isso que serve Deus hoje em dia. Todos querem o Paraíso, mas ninguém quer encarar a cruz. Todo mundo quer ir para o Céu, mas não querem subir as escadas. Preferem ir de elevador. E assim, a divindade no homem quase se esgotou por completa, a cada dia nos parecemos mais com os bichos e agimos predominantemente por instintos. Pensamos muito pouco e sentimos muito menos. Sorrimos falsamente e choramos de forma dissimulada. Restam almas errantes, aflitas na busca desesperada de outras fés. É tudo tão estranho.

- Será que o homem do disco voador vai ao cinema, Tchalau? 

- Não sei, Florisvaldo, mas o Anccilotto comentou no artigo. Quer ver... Moço, caso você tenha visto algum filme por aqui, não se assuste. Eu sei que não é legal ver essa simulação de guerra entre as galáxias, mas procure compreender os seres humanos. Eles só pensam em guerra, então, quando eles imaginam outros planetas e outros habitantes eles não conseguem desassociar o conflito. Para os humanos vocês são inimigos tanto quanto são os vizinhos da rua e os estrangeiros. Se nós destruímos vocês no cinema é só uma tentativa patética de autoafirmação, compreende? Um instinto de defesa que expõe a nossa inferioridade.  Não leve isso tão a sério.

- É bom mesmo deixar isso bem claro. Já pensou se depois de uma sessão de cinema ele resolver chamar a galera dele e vir a forra ???????????????

- Vou concluir a carta, pessoal. Bom, mas este recado era para ser curto. Espero que você o receba algum dia. E da próxima vez que der uma volta sobre a Terra, repare direito, moço, que haverá no meio dessa aglomeração incalculada de cabeças, muita gente acenando com a mão lhe pedindo carona. Leve-nos com você para onde você for. Ando com a impressão de que isto aqui já deu o que tinha que dar.

Tchalau fecha o jornal diz: 

- Pessoal, preciso ir. Tenho que recortar essa crônica, envelopar e despachar nos correios antes do término do expediente.

- Ok, vê se não vai esquecer o CEP... – Lembra-se Emengarda. 

ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE

Pelas ondas dos rádios, o “Repórter Esso” declama um poema:

E assim caminha a humanidade...

Era um mendigo, como outro qualquer;

passava fome, frio, maltrapilho,

sofrendo humilhação,

juntamente com sua família,

como outras tantas qualquer.

 

Um dia, estenderam-lhe a mão...

Um prato de comida, banho,

roupas limpas, repouso

e uma ocupação remunerada.

 

Começou a ter horário à cumprir;

enfrentar filas e ônibus lotados

e a chacoalhar nos trens da Central do Brasil.

Sua esposa tornou-se doméstica,

engordando o orçamento familiar.

Arrumaram-lhe uma casa do BNH...

 

Seus filhos agora estão na escola.

A moda, a televisão dita;

calça, tênis e camisas importadas

(embora muitas vezes, made in Brazil)!

Passeios aos shoppings são obrigatórios

e no cinema, assistem aos filmes em cartaz.

 

Algumas economias para se

comprar um carro usado,

frequentando aos fins-de-semana

um restaurante de classe média,

uma palhoça...

 

Hoje, com a vida estabilizada,

o homem caminha orgulhoso

pelas ruas da metrópoles...

E, olhando para frente, ignora

quando um alguém qualquer lhe diz:

- Moço, uma esmola, por favor...

E assim caminha a humanidade...

 MEU NOME É ERICK FROMM

Ermengarda, Tchalau e Florisvaldo entram em um galpão abandonado, meio escuro.

- Sociedade complicada esta, não?

Aparece um homem de terno, óculos e charuto, dizendo:

- Somos uma sociedade de pessoas com notória infelicidade: solidão, ansiedade, depressão, destruição, dependência; pessoas que ficam felizes quando matam o tempo que foi tão difícil conquistar.

Emengarda, Tchalau e Florisvaldo se assustam.

- Mas quem é você?

- Permitam me apresentar. Meu nome é Erich Fromm, psicanalista.

- Mas o senhor faleceu em 1980. Conheço a sua história, já vi seus livros na biblioteca do hospital... 

Exato, minha cara jovem, não se assustem... Mas digamos que apareci oriundo de um delírio coletivo de vocês. E como a sociedade contemporânea é meu assunto preferido, cá estou!

- Se o senhor não tem mais o que fazer, vá fumar charuto com o Freud.

Florisvaldo fica bravo: 

- Deixa de ser mal-educado, Tchalau... – Vira-se para Fromm: - Seja bem-vindo de volta ao nosso mundo, doutor Fromm.

- Pelo menos no mundo de nós, os delirantes... – Diz Emengarda, dando gargalhada.

- Por favor, me chame apenas de Fromm.

- Mas você entrou falando da sociedade...?

- É verdade. Falo de uma sociedade onde o sujeito na presente busca do sucesso financeiro, ao lado da liberdade material conquistada ao longo da história do ocidente, os indivíduos se isolaram cada vez mais uns dos outros. Essa mesma liberdade econômica, carregada de solidão, tornou-se motivo de medo e angústia, levando as pessoas a desejarem uma fuga psicológica de alienação, por meio de ilusões de “terem” algo ou de “pertencerem” a uma corporação ou grupo que lhes fariam sentir menos sós.

- Depois os loucos somos nós...

 - Cala a boca, Tchalau...

- Se na antiguidade o perigo era os homens tornarem-se escravos, atualmente tornou-se o de serem alienados psíquicos, vivendo como robôs.

- E uma alternativa saudável a esse conflito seria reconhecer a importância do outro nos vínculos de cooperação e solidariedade?

- Exato, minha jovem. Mas, a solidão e a impotência encontraram na indústria moderna artifícios da felicidade de consumo e estímulos para o rápido alívio psicológico da condição humana – que em seu dinamismo tende a procurar soluções de alguma forma, com possibilidades de satisfação, ainda que ao preço da violência, da neurose e servidão voluntária.

Tchalau faz uma consideração:

- Como se, ironicamente, o homem contemporâneo, com seu avançado conhecimento intelectual, desconhece-se enquanto totalidade espiritual, não sabe bem o que deseja e por isso não consegue satisfazer-se plenamente, sentindo-se vazio de realizações?

- Parabéns, Tchalau. Você começa a acompanhar o meu raciocínio. Na história da sociedade ocidental na medida em que fomos conquistando mais liberdade, principalmente no século XX, fomos nos sentindo mais solitários, insignificantes e alienados. Ao contrário, quando tínhamos menos liberdades éramos mais ligados uns aos outros e esse entrosamento nos dava segurança.

- Lembrando das minhas aulas de história, as antigas tribos ou clãs, compartilhavam mitos, religiões e ritos tribais, o que lhes dava segurança de permanecer no grupo, significando aceitação e um conjunto de regras e costumes. Restabelecer a ligação com a natureza com adorações nos elementos sol, lua, fogo, plante e animais.

- Sim Emengarda, ao se desenvolverem e crescerem, os povos pós-primitivos revoltaram-se contra a subservivência ao grupo. Nesse desenvolvimento histórico cada período tem sido caracterizado pelo movimento de dentro para fora do grupo e para individualidade, quando pessoas lutavam por mais independência, liberdade e a oportunidade de expressar todas suas habilidades originais humanas. A Idade Média foi a última era de estabilidade, segurança e sentimento de pertencer a uma classe, quando não se havia nenhuma liberdade individual e o sistema feudal determinava o lugar de cada um na sociedade; pessoas ficavam no papel e status nos quais nasciam, haviam poucas escolhas de trabalho, nenhuma mobilidade geográfica, costumes sociais ou formas de vestir.

- Quer dizer, mesmo sem qualquer tipo de liberdade, essas pessoas não eram alienadas entre si, sendo a rígida estrutura social clara ao determinar o lugar de cada pessoa na sociedade, sem deixar dúvidas ou indecisão sobre a que lugar ou a quem pertencia.

Diz Florisvaldo, sendo seguido pelo comentário irônico de Tchalau:

- Era só o que me faltava. Fugi do hospício para ter aula de história...

- Entre a Renascença e da Reforma Protestante essa estabilidade e segurança foi destruída por meio do aumento da liberdade individual, permitindo as pessoas terem mais opções e mais poder sobre sua própria vida. O auge dessa luta por liberdade com pico entre a Reforma e nos tempos atuais que, para ele, a alienação tem sido igualada a um alto grau de liberdade com sentimentos de insegurança, insignificância e dúvida sobre o sentido da vida.

-Neste mundo há vários tipos de loucuras. E para mim, uma delas é passar a vida mergulhado em livros estudando, pesquisando. Então me diga caro Fromm, o que você concluiu de tudo isso que pesquisou?

Fromm responde rindo:

- São os loucos pelos livros e pelo conhecimento que promovem a ciência no mundo. Mas respondendo sua pergunta, a história da humanidade é a história da individuação em busca da liberdade do homem contemporâneo, com seu avançado conhecimento intelectual, desconhece-se enquanto totalidade espiritual, não sabe bem o que deseja e por isso não consegue satisfazer-se plenamente, sentindo-se vazio de realizações. Vocês já ouviram falar da alienação de consumo?

Emengarda, Florisvaldo e Tchalau perguntam entre si surpresos:

- Alienação de consumo??????????????

- Sim pessoal, imaginam os anos 60, nossa economia de produção em massa era quase exclusivamente pelo princípio da produção para lucro e não para uso, estimulando o desejo de bens de consumo. Esse que continua sendo o capitalismo moderno, que me inspirou a criar a expressão da não-frustração, o princípio de que todo o desejo deve ser satisfeito imediatamente, e nenhum deve ser frustrado. A ilustração mais óbvia desse princípio nos é dada pelo nosso sistema de compra a prazo. No século XIX, cada um comprava apenas o que necessitava e quando havia economizado o dinheiro necessário; hoje compramos o que necessitamos e o que não necessitamos, à crédito. A missão do anúncio é incitar-nos a comprar e aguçar o nosso apetite pelas coisas, de forma que a inclinação seja eficaz. Vivemos em um círculo vicioso: compramos a prazo e, quando estamos para terminar o pagamento do que compramos, vendemos para tornar a comprar o último modelo.

Florisvaldo faz uma consideração:

- E assim tornamo-nos os mais vorazes consumidores da história, permitindo que o mesmo domine nossas horas de lazer e encha os nossos sonhos com o céu. Um céu de consumo que, no final das contas, é inadequado à ocupação humana, mas que acaba por envolver todos os nossos sentidos, nossas necessidades, nossas capacidades estéticas.

- Consumir é essencialmente satisfazer as fantasias artificialmente estimuladas, o desempenho de uma fantasia alheia ao nosso ser real concreto. E os principais sintomas característicos desse sujeito atual são as angústias, as neuroses e, principalmente, a ansiedade. Nessa alienação consumista, esse sujeito vale para si apenas o que julga valer para os outros. Sobrecarrega-se na luta, sem cessar, pela aprovação destes. A ânsia de consumo leva esse sujeito a afastar-se de si mesmo e de todos os seus sentimentos. Na corrida para consumir cada vez mais não há espaço para namoros, noivados, casamentos, constituição de sua família, filhos.

Emengarda, Florisvando e Tchalau ficam mudos, atônicos e pensativos. Fromm pega o relógio de bolso e olha: 

- Bem meus amigos, tenho que ir. O além me espera...

- Uma boa viagem, Fromm. Se você vê o Freud ou Jung por lá, diga-lhes que mandei um abraço!

- Pode deixar Tchalau, verei se eles querem fumar charuto comigo. (Dá risada e, sumindo, completa: - O mundo está vivendo a “Idade da Ansiedade”, sendo a mesma produzida pela alienação e falta de autenticidade do eu. O sujeito alienado, embora seus enormes esforços para consumir e ser aceito no grupo, é infeliz!

O três repetem calmamente entre si:

- Alienação de consumo... Idade da Ansiedade... Alienação de consumo... Idade da Ansiedade...

  O REENCONTRO

O Deputado Delclésio e Zé Nada os encontram.

- Ah, vocês estão aí...

- Sim, mas poderíamos estar em qualquer lugar nesta imensa fábrica de loucos – responde Tchalau ao parlamentar.

- Zé Nada, capture eles. São fugitivos de um dos meus muitos manicômios.

- Mas o maior deles o senhor não tem, deputado – fala Emengarda abrindo os braços e exclamando: - A vida moderna!

A repórter aparece, alertando:

- Alto lá, deputado. Em nome de Michel Foucault, esses não serão mais capturados. Ele escreveu: devemos dar ao indivíduo a tarefa e o direito de realizar sua loucura...

Zé Nada que se encaminha até eles, para. A repórter, Emengarda, Florisvaldo e Tchalau dizem juntos:

- Viva a luta antimanicomial!!!!

- E outra, esse Zé Nada, não é de nada mesmo. É um Zé ninguém, puxa-saco que vive às custas de políticos corruptos.

O Deputado Delclésio dá gargalhada:

- Luta antimanicomial, essa é boa. Esse blábláblá só surgiu porque a sociedade de consumidores e contribuintes não está mais disposta a gastos com instituições públicas de segregação dos excluídos.

- É, e hoje surgem novos tipos de prisões – observa Zé Nada: - As gaiolas douradas. Fortalezas incrustadas nas cidades, os condomínios fechados. Ali a nata da sociedade se esconde e se protege da sua própria criatura: a plebe perigosa!

- Tudo isso é discurso de quem estar sem argumento – diz a repórter: - Na verdade, deputado, a vida dentro de um manicômio não é mais diferente do que o mundo aqui fora. Por quantas vezes essa sociedade caminha nua sobre os seus próprios dejetos, cercados de urubus da cobiça e dos interesses individuais.

- Muitos dos transeuntes estão abandonados a suas próprias sortes – grita Tchalau: - As causas sociais dormem amontoadas, morrendo de inanição, ou, em bom português, morrendo de fome de justiça e providências de tumores cancerosos que contaminaram a política brasileira assim como o senhor...

Todos gritando:

- Abaixo os manicômios. Viva a grande fábrica de loucos. Abaixo os manicômios. Viva a grande fábrica de loucos. Abaixo os manicômios. Viva a grande fábrica de loucos.

- Deputado, acho bom a gente sair daqui.... – Sugere Zé Nada.

A GRANDE FÁBRICA DE LOUCOS

Os três estão de pé em frente ao portão do manicômio, olhando-se de maneira melancólica.

- O que foi, Emengarda?

- A grande loucura de cada dia é sermos verdadeiros, pois a sinceridade, por incrível que pareça, leva a nós sermos julgados como estranhos, Tchalau.

- Pois é, minha amiga. Penso que uma das principais loucuras é observar que o homem deixou se corromper pelos prazeres mundanos.

Florisvaldo entrando:

- Acho que o mundo, a vida seria muito mais suave se nós, seres humanos, vivêssemos, praticássemos mais princípios que julgo básicos para uma boa convivência e harmonia com o mundo, com o plano, tais como respeito ao direito do próximo, idoso, raças, costumes diferentes, honestidades, diálogo... Procurar ser para as outras pessoas tudo aquilo que eu acho que é digno, verdadeiro, sem demagogias ou falsidades, sem sentimentos...

- Deveríamos ser para as outras pessoas o que queremos que as mesmas sejam conosco, educadas, verdadeiras, presentes, amorosas... Dizem que sou sonhadora por pensar assim, mas depende de mim, de nós sentir que é preciso mudar...

Todos dizem juntos:

- O mundo vive hoje uma loucura total em todos os sentidos.

- Estou convencido de tudo que vivemos hoje tem um só ponto de partida: as pessoas estão pensando somente em si próprias, não se interessam ou não se importam com problemas que afligem seus semelhantes – confessa Florisvaldo.

- Daí as agressões à natureza, aos animais, aos próprios semelhantes – Tchalau: - Todos querem levar vantagem em tudo. Se não aprendermos a pensar coletivamente, creio que estaremos caminhando rapidamente para o caos, mesmo tentando não ser tão pessimista.

Emengarda, Tchalau e Florisvaldo: 

- A maior loucura no comportamento humano hoje é o egoísmo. As pessoas estão meio que anestesiadas...

- Ao invés de viver a vida intensamente e passar por tudo que ela oferece, coisas boas e más, tomam calmantes e mais calmantes, fogem de situações difíceis e intensas, descartam pessoas ao invés de conquistá-las – acentua Florisvaldo.

Emengarda, Tchalau e Florisvaldo: 

- A maior loucura da humanidade é a inversão de valores...

- Nada do que era “correto” antigamente, hoje não tem mais valor. Hoje damos valor a celulares, computadores, botox, e deixamos os prazeres da vida de lado, como uma boa tarde de jogar conversa fora com um bom amigo...

Diz Emengarda, Florisvaldo respira fundo:

- Meus amigos, acho melhor a gente voltar lá para dentro do manicômio...

- Verdade, aqui do lado do fora só tem louco!!! – Exclama Tchalau.

Emengarda, Tchalau e Florisvaldo concordam entre si, dizendo em coro: 

- E pelo jeito, essa grande fábrica de loucos continuará cada vez mais a todo vapor...!

E passam o portão, cantando “Balada do Louco”...

 FIM

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem