A MULHER QUE LIMPAVA

JARRO DE FLORES -  Emílio Figueira / Primeiro semestre de  2000 - Técnica: Guache sobre cartolina - Med.: 0,25 x 0,34

Segunda-feira. Naquela bela tarde, o sol entrou pela enorme vidraça da sala de estar. Sentada em frente e confortada em sua poltrona, uma mulher olhava a vida correndo lá fora. Carros apressados em ambos os sentidos, mas a mulher continuava sentada em sua poltrona. Pessoas de todas as idades, tipos de roupas e classes sociais reveladas pelos seus portes, mas a mulher permanecia ali, sentada em sua poltrona. Não importava suas classes sociais, todas eram pessoas caminhando em ambos os sentidos pelas calçadas, atravessando a rua na faixa de pedestres ou não... A mulher, contudo, continuava sentada em sua poltrona. Uma pressa que alienava a todas as pessoas que se cruzavam sem ao menos olharem-se na face. Mais uma vez, a mulher estava lá, sentada na poltrona. Da sua poltrona, ela também observava as fachadas dos pontos comerciais em que pessoas entravam e saíam freneticamente... E ela sentada em sua poltrona.

À amiúde, ela olhou para dentro de sua casa várias vezes. Viu que sua sala precisava de limpeza e organização. Levantou-se e começou a tarefa, deixando a sala limpa. Sentindo-se bem, a mulher resolveu limpar o seu quarto, organizar os guarda-roupas, mudar as posições dos móveis e retirar as cortinas e as roupas de cama para lavar. Isto também lhe fez bem e, então, foi para o próximo quarto, que era de seus filhos adolescentes, repetindo todos os afazeres. Como se sentiu bem novamente, resolveu lavar o banheiro, deixando-o limpo, organizado e cheiroso, o que, mais uma vez, também lhe fez muito bem.

Desceu limpando as escadas de seu sobrado e, ao observar sua sala limpinha, viu que sua poltrona estava desocupada lá no canto perto da janela, mas isso não importava, pois ela estava se sentindo bem.

Chegou à cozinha, e quantas coisas para se fazer... Começou por limpar e organizar os armários e o gabinete da pia, retirando para doar o que não lhe interessava mais. Em seguida, limpeza e organização na geladeira. Muitas tarefas sim, mas ela estava sentindo-se bem. Chegou a vez do fogão de seis bocas, a pia e de lavar toda a cozinha. Algumas horas já se passaram desde que ela levantou-se da poltrona e não mais observava a vida passar lá fora, o que estava lhe fazendo bem.

Foi para área de serviço e, enquanto a roupa batia na máquina de lavar, ela começou a reorganizar todo o espaço. Separou as coisas que não lhe interessava mais, coisas que, pouco a pouco, foram acumulando-se pelos cantos. O que servia a outras pessoas, ela separou para destiná-las, sendo que aquilo que não servia foi colocado em sacos de lixos e levado à calçada, ficando à espera da coleta pública. Aquilo também lhe fez bem, pois colocar para fora de casa ou doar o que não nos tem mais utilidade podem significar, simbolicamente, abrir espaço para o novo entrar em nossas vidas. E, assim, a área de serviço foi totalmente limpa, estando estendida no varal a roupa que foi retirada da máquina.

Sentiu fome, foi para cozinha, preparou alguma coisa básica e comeu rapidamente, pois estava com pressa mesmo não tendo nenhum compromisso ou alguém a esperando. Lavou a pouca louça e teve vontade de revisar todo o já serviço feito. Foi à sala, mudou a mobília de posição e sentiu-se bem, mas a poltrona continuou no mesmo canto dando vistas à rua, pois, agora, a mulher sentia-se em movimento como todas àquelas pessoas lá fora... E isso lhe fazia bem.

Foi revisar os quartos e os banheiros, procurando o que fazer. Algumas horas passaram-se e as roupas no varal secaram. Voltou à área de serviço, passou a todas com o seu pesado ferro de passar e foi guardá-las cada uma em seu respectivo lugar. 

A noite deu o ar da graça e, então, correu para preparar o jantar. Seu marido chegou do trabalho e seus filhos adolescentes da escola ou de outras atividades. Todos alimentados, lavou a louça e limpou toda a cozinha novamente. Sentou-se para assistir à televisão na sala, mas sua canseira era tanta que nem teve concentração! Foi dormir exausta...

Terça-feira raiou e, cedinho, a mulher levantou-se com muita vontade de limpar. Passou o dia inteiro cumprindo a mesma rotina do dia anterior sem parar para descansar e sem ter nenhum minutinho para sentar-se na velha poltrona e observar a vida lá fora. Isso lhe fazia sentir-se bem e passou a repetir a mesma rotina na quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira e sábado. Enfim, o domingo, mas este passou a ser para ela um dia como outro qualquer, sendo também preenchido por sua rotina de limpeza, o que, supostamente, fazia-lhe bem!

Dias, semanas, meses e a mulher limpando. Foi acometida por pensamentos e comportamentos intrusivos e recorrentes repetida e persistentemente que não paravam, tomando o tempo e a energia e a deixando esgotada… Era como se limpar fosse uma grande obrigação que não lhe deixasse relaxar, mas ela sentia-se bem, sentia-se útil de alguma forma. Há um bom tempo, sua poltrona ficava lá no canto da sala sem nenhuma utilidade, a mulher cogitou até mesmo em doá-la...

Limpar, limpar, limpar e limpar... Seus afazeres com a casa tornaram-se uma obsessão caracterizada por ideias fixas que ela própria reconhecia como desagradáveis, mas não conseguia fazer parar, gerando uma grande ansiedade e a necessidade de repetir gestos e práticas para aliviá-la. Nos seus passos acelerados de tamancos pela casa, ressoava o toc, toc, toc, toc, toc, toc, toc, toc...

  Já nem mais ouvia com atenção o que as pessoas diziam à sua volta e nem dava oportunidade para outras pessoas realizarem as tarefas da casa, pois isso fazia com que ela se sentisse onipotente. Tudo passou a ser realizado tão mecanicamente que a mulher nem mais memorizava as coisas ou onde havia guardado os objetos. Passou a querer fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas nada ela concluía com começo, meio e fim, indo e voltando das mesmas tarefas. Lembrar-se de sua velha poltrona? Muito menos.

Como sempre, o nosso corpo reclama, protesta diante de nossos excessos e, diante daquela rotina frenética, o corpo da mulher reclamou e protestou na forma de um infarto. A ambulância do convênio médico veio rapidamente. Lá de dentro, deitada na maca e ligada aos aparelhos, a mulher que limpava não podia olhar a vida continuando lá fora entre os carros trafegando e as pessoas caminhando pelas ruas. Pela primeira vez, após semanas e meses, sentiu saudade da velha poltrona.

Já em observação na UTI, no segundo dia, sozinha e só ouvindo o som de aparelhos, em dado momento olhou o teto e viu uma sujeira imaginária. Sentiu vontade de limpar, mas percebeu que estava presa à cama pelos aparelhos. Pela primeira vez, em meses, ela não poderia limpar algo, mas logo assimilou que ali não era o seu espaço, pois havia pessoas para realizarem limpezas e que ela não era a única para essa tarefa... A inércia em cima daquela cama jogava por terra sua falsa sensação de onipotência.

Dias passaram e ela teve a alta do médico. Descansar e repousar seriam fundamentais para sua recuperação e, de volta à velha poltrona da sala, novamente ela observava a vida lá fora. Carros apressados em ambos os sentidos, pessoas de todas as idades, tipos de roupas e classes sociais reveladas pelos seus portes... Não importava suas classes sociais, todas eram pessoas caminhando em ambos os sentidos pelas calçadas, atravessando a rua na faixa de pedestres ou não. Uma pressa que alienava a todas as pessoas que se cruzavam sem ao menos olharem-se na face.  E a mulher, sentada na poltrona, também observava as fachadas dos pontos comerciais em que pessoas entravam e saíam freneticamente.

A mulher que limpava aprendeu de forma dura que quando não respeitamos o descanso de nossa mente e corpo, eles mesmos encarregam-se de providenciar isso. Sentada em sua poltrona, agora a mulher era obrigada a respeitar esse descanso, sendo que, por um bom tempo, não mais se ouviria ressoar o som de seus tamancos pela casa: toc, toc, toc, toc, toc, toc, toc, toc...

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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