ENFIM, BRIGAMOS!

MODERNO RETRATO ANTIGO – Emílio Figueira / Primeiro semestre de  2000 - Técnica: Guache sobre cartolina - Med.: 0,25 x 0,34

O casal está chegando em seu apartamento após o jantar de comemoração de dez anos de casados. Ela joga sua bolsa em cima do sofá e se atira ao mesmo de braços abertos e feliz:

- Ah!, esta noite será inesquecível... O jantar dos nossos dez anos de casamento.

- Realmente. A noite em que comemoramos dez anos juntos.

- Parece que foi ontem...

- É, eu sentado naquela mesa de bar na calçada, quando a vi vindo com aquele avental e material de professora, chegando perto de mim... Foi amor à primeira vista.

- Tudo bem. Só que você não precisava ter deixado o seu copo escorregar da mão, caindo ao chão, respingando tudo em minha roupa. Fiquei igual a uma aquarela inacabada.

- Olha quem fala... Quando você chegou perto de mim, seu coração também bateu tão forte e fora de ritmo, que parecia um surdo de escola de samba com raiva de ter pego o segundo lugar! – Ironiza ele, sentando-se ao lado dela: - Tal foi a sua emoção ao ver o papai aqui.

- Deixa de ser convencido, cara.

- Convencido eu!? – Indaga ele, brincando: - Você que teve a grande sorte de me encontrar livre e disponível para viver um grande amor. Haviam tantas mulheres mais lindas do que você que até brigavam por mim.

- Então por que você se casou justamente comigo?

- Tive dó. Você estava tão sozinha e tristinha, que pensei comigo. Eu vou fazer uma boa ação. Vou desencalhar essa pobre coitada...

- Seu palhaço...

Abraçam-se e riem.

- Brincadeira. Eu te amo cada vez mais, meu Chaverinho.

- Também te amo, meu Bolota. – Dá um suspiro: - Ai, dez anos se passaram de uma perfeita união entre nós.

- Dez anos de uma completa paz e nem uma briga se quer...

- É, dez anos que acordo toda madrugada com a sinfonia do seu ronco.

Ela diz inocente, enquanto ele responde sério:

- O que tem o meu ronco de errado? Eu também nunca reclamei daqueles ridículos bobes que você usa para dormir.

- Está vendo como você é? – Questiona, soltando-se dele: - Tinha que falar dos meus bobes. Se os uso, é para ficar mais bonita para você.

- Tudo bem. Só que toda a manhã quando acordo, tenho a impressão que na noite passada fiz amor com uma extraterrestre.

- E eu que toda a noite assisto você dormir no sofá em frente a televisão de boca aberta. Até parece um estacionamento daqueles que se paga por hora, de tanto entra e sai de mosquitos.

- Estacionamento, ora essa. Sempre tenho que suportar aquela sua mania de lavar e guardar louça bem na hora do meu futebol. Faz tanto barulho que até parece que está acontecendo um terremoto na cozinha. Sem se falar ainda naquela sua barulhenta máquina de lavar roupa que parece um teco-teco em decolagem.

- Lógico, é uma máquina pré-histórica que você trouxe da casa de sua mãe. Nunca se importou em comprar uma nova para mim.

- Comprar uma nova!? Para que, se mesmo parecendo uma britadeira, ela está funcionando?

Ela levanta-se e pensa alto:

- Homens são todos iguais...

- Realmente... Todos econômicos diante das poderosas máquinas femininas de consumo.

- Ora, seu machista!

- Machista, eu!?

- É, machista sim, Bolota!!! – Afirma ela, colocando as mãos nos quadris: - Não aguento mais ser seu ioio. Chega da rua, esborracha aí no sofá e começa; Chaverinho, me traz um copo d'água. Chaverinho, eu quero um café. Chaverinho, pega o meu cigarro. Chaverinho, cadê o cinzeiro? Nem isso você sabe procurar...

- E quantas vezes vou me barbear, meu aparelho está com a lâmina cheia de crateras de tanto você ficar se raspando com ele. Isso eu nunca reclamei.

- Porque não quis. Eu sempre suportei os seus banhos, quando você sai molhado desfilando pela casa toda. Sem se falar ainda da sua mania de ir ao banheiro de madrugada sem acender a luz, formando lagos em volta do vazo.

- Lago em volta do vazo, ora essa. Quantas vezes, após brigas com vizinhos, suportei seus ataques de histerias aqui dentro. Até parecia uma gaivota desafinada.

- Tudo bem, Bolota. Só que não suporto mais aquele seu péssimo hábito de cortar as unhas na sala. Até parece uma guerra, tiros para todos os lados. Sem se falar ainda na data do meu aniversário que você esquece todos os anos.

- Eu não esqueço, apenas não lembro no dia certo. E por falar em lembrar, lembra-se do carro novo que conseguimos comprar com muito sacrifício? A primeira vez que você saiu sozinha, o enfiou no primeiro poste que encontrou.

- Agora a culpa é minha que aquele poste apareceu na minha frente. Acho até que ele queria atravessar a rua e esqueceu-se de olhar para os lados.

Ela faz uma pausa e pensa alto consigo: “Não sei por que deixei a minha carreira de professora para me tornar dona-de-casa. É isso que ganho depois de dez anos de dedicação”.

- Não vem não Chaverinho, me culpar pela sua síndrome de Amélia!

 - É, síndrome de Amélia sim. - Senta-se em outra poltrona: - Aliás, isso hoje é uma nova tendência entre as mulheres. Outro dia li numa revista que nos Estados Unidos muitas executivas bem-sucedidas estão trocando os relatórios, os chás gelados e os congressos internacionais por listas de compras no supermercado, lanches da tarde para a garotada e reuniões de pais na escola.

- Então quer dizer que muitas daquelas que lutaram por sua independência emocional e financeira, hoje nadam contra maré.

- Exatamente o que fiz a dez anos atrás. Abrem mão da vida profissional, numa decisão bem pensada quando o lado familiar fala mais alto, passando administrar as tarefas domésticas, somando contas do lar e educando os filhos. E muitas estão satisfeitas com isto.

- E você Chaverinho, se arrependeu dessa decisão?

- Nunca, pois a sintonia que sempre houve entre nós dois me faz feliz como dona-de-casa. Mas não vamos mudar de assunto. Até poucos minutos estávamos brigando.

- Brigando, nós!?

- É, estávamos brigando...

E dá um sorriso: 

- Poxa, veja que maravilha Chaverinho. Pela primeira vez, brigamos!

- É mesmo, Bolota. Enfim, brigamos!!! – Observa sorrindo, levanta-se, caminhando lentamente pela sala, pensativa, até que deixa escapar: - Separação...

- O que você disse?

- Eu disse separação. Nós temos que nos separar.

- Você está ficando louca, mulher.

- Não, é sério. Nós acabamos de brigar. - Alegrando-se: - E isso já é um grande motivo para nos separar.

- E por que temos que nos separar?

- Porque hoje é moda. Todo mundo se separa. Por qualquer motivo. A televisão mesmo mostra ideologicamente o quanto é fácil e gostoso se separar. Nas telenovelas, você vê os personagens se separando por qualquer motivo. Aliás, hoje nem estão se casando oficialmente. A frase que mais se houve é: A gente vai tentar; se não der certo, depois a gente separa.

- É, hoje ninguém mais tem o caráter de honrar os laços do matrimônio. Já se ajuntam planejando o fim. Ninguém se esforça para controlar seus problemas, indo logo para a solução final...

- Mas e aí, você me dar a separação? – Pergunta ela feliz.

- Você quer mesmo?

 Sim, quero. - Levanta-se, caminhando: - Já pensou que maravilha eu chegar triste no clube e minhas amigas perguntarem o que houve. Direi que o Bolota me deixou. Elas me consolarão dizendo que isso é coisa da vida e logo superarei. Então entrarei para o time das desquitadas!

Ele levanta-se: 

- Que loucura...

Ela para de caminhar, senta-se novamente em outra poltrona e começa a chorar: 

- O que foi agora?

- Nunca pensei que este dia iria chegar.

- Mas do que você está falando agora, criatura?

- Nunca pensei que você fosse capaz de me deixar. Depois de tanto carinho e dedicação.

- Pronto, lá vem você com sua mania de dramatização.

Ela para por alguns instantes de chorar: 

- Lógico, você acha que nossa separação iria passar em branco, sem ter uma cena melodramática!? -Volta a chorar. Pausa: - Já sinto perder parte de minha identidade. Tudo que construímos pouco a pouco, poeticamente entre lágrimas e risos, está se quebrando dentro de nós. Uma sensação de vazio terrível. Medo.

- Um buraco negro se abre em nosso psíquico e um turbilhão de sentimentos, emoções e lembranças nos invade.

Ele dramatiza, ironizando. Ela, esquecendo as lágrimas, emociona-se:

- Nossa Bolota, que lindo. Você já se separou alguma vez?

- Lógico que não, Chaverinho. Apenas leio as matérias de comportamento das revistas femininas. Mas me diga, agora que nós vamos nos separar, o que você irá fazer de sua vida?

- Não sei. - Voltando a chorar: - Primeiro deixarei as minhas amigas me consolarem. Depois entrarei na justiça para você me dar pensão. Em seguida, pintarei o cabelo de outra cor e farei um curso de inglês. E você?

- Sentar-me-ei novamente na mesa do bar, esperando que outra passe para que eu a encharque de cerveja. Você quer mesmo se separar?

- Sim, quero. – Começa a cantar: - "Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim. Não me valeu. Mas fico com o disco do Bixinguinha sim. O resto é seu".

- Então está bom... - Levanta-se e vai saindo cantando: - "Eu bato o portão sem fazer alarde. Eu levo a carteira de identidade. Uma saideira, muita saudade e a leve impressão que já vou tarde..."

Ela corre atrás dele, dramatizando: 

- Espere, não se vá...

- Mas não foi você mesmo que pediu a separação, Chaveirinho? – Pergunta, parando.

- Mudei de ideia. Não saberia mais viver sem você ao meu lado. Minha outra metade. Fique vai...

- Não sei. Fiquei indeciso. Logo agora que senti o gosto da liberdade, você me pede para ficar. Vou pensar.

- Então vem. Enquanto você pensa, sente-se aqui. Por favor. AnÁlise quantos momentos bons passamos juntos.

Ele senta-se: 

- É, pensando bem, a nossa relação não poderia acabar assim. Sempre tivemos um bom projeto de vida.

- É, sempre vivemos cada minuto de maneira intensa e real. Pois o minuto anterior sempre é sinônimo de saudade, enquanto o minuto próximo que vier trará com ele a expectativa do futuro.

- Só que toda essa intensidade está ligada à nossa energia. Sempre fomos fontes inesgotáveis que estamos sempre nos renovando para viver o nosso amor. – Brinca: - Gostou aqui do poeta?

- Sim, gostei. – Lamenta: - Mas em compensação, quantos casais que conhecemos de pessoas apáticas, desanimadas e eternamente cansadas...

- E esses não são raros, pessoas que parecem prestes a dar o último suspiro. -Riem: - E com essa ausência de motivação, deixam naufragar seus casamentos nas primeiras ondas fortes, sem energia para tentar reconstruí-los.

Ela alegra-se:  

- Ainda bem que nunca fomos assim. Mais um motivo para você ficar.

- Ainda estou pensando. Também não esqueçamos do fator organização, onde sempre matemos a ordem e o planejamento de nossa relação.

- Verdade. Desde o começo de nossa união estabelecemos prioridades, objetivos e metas a serem alcançadas por nós, o que sempre facilitou nossas tarefas.

- Organizar metas traçadas significa economizar tempo e energia, acúmulo de conhecimentos, o que sempre facilitou o nosso cotidiano.

- Mesmo com a sua desorganização de macho. Sapatos jogados pela sala. Toalha molhada em cima da cama. Cueca suja jogada no chão do banheiro. Cada vez que toma água suja um copo, sem ao menos enxaguá-lo, deixando em cima da pia. E a Dita aqui tem que arrumar tudo.

- Vocês mulheres reclamam disso, mas bem que gostam de arrumar a nossa bagunça.

- Mas um motivo para você ficar.

- Já disse. Ainda estou pensando... – Faz uma pausa pensativa: - Disciplina...

- Disciplina??? O que tem a disciplina?

- É, enquanto o ser humano é indisciplinado por natureza, em nossa relação nunca faltou a disciplina!

Ela também alegra-se: 

- É mesmo. E a disciplina é igual a energia; quanto mais se utiliza mais nos dá; quanto menos se exercita, menos se consegue.

- E o instrumento básico para se obter a disciplina é a força de vontade e o facilitador é o bom hábito mental.

- Concordo, senhor filosofo. Sempre mantemos o pensamento em coisas alegres, tivemos coragem, generosidade, autoconfiança e expectativas positivas, que se constituíram num antídoto eficaz para o desânimo. – Diz taxativa: - Mas como é? Você vai ou não vai ficar?

- Você quer mesmo Chaverinho, que eu fique?

- Querer eu não quero – brinca ela: - Mas como não tenho nada melhor para fazer esta noite, resolvi pedi uma reconciliação!!!

- Está bom. Se for para a sua felicidade, estou pronto. Digo que fico!

- Minha e felicidade geral da nação...

- O é, por que felicidade geral da nação?

- Já pensou você solto novamente por aí Bolota, que desastre!? 

Satiriza ela, enquanto ele vai sentar-se: 

- Também não é assim...

- Como é bom tê-lo novamente ao meu lado. Nesses momentos de nossa separação, senti tanto a sua falta.

Abraçam-se: 

- Eu também já estava me sentindo perdido no mundo, sem a sua presença feminina ao meu lado. Sem a nossa sólida identificação de afinidades!

- Enfim, o futuro nos espera.

- E iremos manter a nossa relação melhor do que nunca. Sempre repensando e discutindo os nossos ideais... Sempre com perseverança.

- A persistência continuará ser a capacidade de segurar firmemente a vontade de encontro com os objetivos escolhidos, com a mesma de sempre, onde nada, absolutamente nada possa nos desviar.

- A perseverança já lançou raízes profundas em nossas personalidades. Hoje não somos mais folhas ao vento. Somos nós mesmos. Um casal. Dois corpos unidos em um só!

- Mas voltando atrás, nós estávamos comemorando nossos dez anos de casados.

- Então continuemos com a nossa comemoração...

E abraçam-se fortes em um demorado beijo.

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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