O CASO DA MULHER-DAMA

RELEITURA DE MONET – Emílio Figueira / Nov. de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 1,00 x 1,20

Era uma cidade pequena como muitas que existem, já existiram ou foram extintas graças à imigração de sua população para as grandes cidades e capitais. Ali, encontrávamos tudo o que se pode esperar de um lugar como esse. Ruas pequenas e sem movimento, o velho coreto na praça com que era habitada por passarinhos, o comércio com seus proprietários às portas com as mãos nos bolsos conversando os mais variados assuntos, o cemitério com um coveiro sempre embriagado que falava com os fantasmas de sua mente, a prefeitura em que muitos bate-papos e fofocas eram jogados fora por falta do que fazer, uma igreja com padre preocupado com a falta de fiéis, uma delegacia em que os policiais jogavam baralho por falta de ocorrências, um jornal sempre a favor do seu proprietário, o serviço de alto-falante que ninguém ouvia, as “donzelas” de narizes empinados que eram iludidas por suas mães e esperavam um dia se casarem com um daqueles “playboys arrurais” que se achavam os donos do mundo com seus carros, os quais muitas vezes eram comprados com um empréstimo no banco, um posto de saúde sem médicos tal como um mal crônico da saúde brasileira e uma escola primária em que, finalmente, alguma atividade era realizada...

Como não poderia deixar de faltar, ali também existia a casa das mulheres-damas. Embora já sem movimento, sua cafetina, ou melhor (sejamos menos preconceituosos), sua administradora não manifestava o desejo de ir embora, isso graças aos muitos anos enraizada naquele pequeno município. Além do mais, ela já era figura obrigatória. Caminhava descontraída pelas ruas e comércios tal como uma respeitada senhora, livre até mesmo dos olhares crucificantes. Algumas vezes, ela estava presente em algumas inaugurações de obras públicas, embora o prefeito de vez em quando inaugurava obras pela metade, mas toda a população marcava presença, desfilando suas roupas ou observando os vestidos alheios. 

Há quem diga que essa senhora fora uma linda mulher por quem muitos homens perderam cabeças e fortunas...

Tudo corria bem dentro daquela paz interiorana até que, novamente, o delegado foi transferido. Ninguém se surpreendeu com a notícia, pois é comum a ciranda que a Justiça promove em torno desses profissionais. Certamente, o novo comandante do poder civil seria uma pessoa legal que entraria rapidamente no espírito da cidade e faria amizades fáceis. Mas não! O novo delegado chegou com vontade de revolucionar tudo, querendo mudar o ritmo e os costumes, pois se achava no direito de decidir o que era melhor para todos.

Prepotente, colocou suas asas logo de fora ao tomar algumas medidas, tais como tentar organizar o trânsito de quase cinco carros. Além disso, criou caso com os proprietários rurais e proibiu bailes e bares noturnos, indo, assim, contra a lei e o direito mundial dos músicos e do lazer coletivo. Conseguiu, por meio de suas intenções, ganhar a antipatia de muitos.

Mas o “querido delegado” conseguiu mesmo arrumar confusão quando quis acabar com a já falida Casa das Mulheres-Damas, expedindo esse ofício, determinando o fechamento do local. Ficou admirado ao intimar a administradora e ela não comparecer para dar-lhe explicações. Então, chamou um de seus homens e ordenou:

– Vá lá e me traga essa senhora à minha presença.

– Mas, doutor...

O investigador tentou adverti-lo de algo, porém o delegado repetiu a ordem, interrompendo-o:

– Traga-me aqui nem se for algemada.

A ordem teve de ser cumprida, tornando-se algo mais grave com a prisão da mulher-dama por ter resistido a um mandato policial. Como é comum em cidade pequena, a notícia correu rapidamente. “Com que direito ele fez isto? Baseado em que lei?”, protestaram os homens. “Benfeito, até que enfim uma atitude sensata”, admiraram algumas mulheres que no passado foram vítimas das mulheres-damas. Mas a bomba caiu mesmo sobre o prefeito, que estava num bar, tomando o seu já tradicional “aperitivo de fim de tarde” quando recebeu o comunicado. Cabia a ele a missão de defendê-la... Além do mais, as alegrias e belas recordações do passado o obrigavam a isso. E lá foi ele...

Ao chegar à porta da delegacia, enxugou a testa com o lenço e entrou indo direto à sala do delegado sem ser anunciado, pois sua autoridade dava-lhe esse direito. Após os tradicionais e rápidos cumprimentos, foi direto ao assunto:

– Vim até aqui para pedir-lhe que solte uma certa senhora que se encontra detida nesta delegacia.

– E que argumento o senhor tem para fazer tal pedido?

Com essa pergunta, o delegado quis pôr o prefeito num enrosco, mas o chefe do executivo, possuidor de uma ginga política e larga experiência para sair dessas situações, pensou e respondeu: 

– Digamos que esta senhora seja um Patrimônio Municipal.

O delegado engoliu a resposta a seco para não rir, pois precisava respeitar a autoridade máxima do local. O prefeito foi mais além em seu minidiscurso:

– Digamos mais: esta senhora já pode até ser considerada um “Patrimônio Histórico Municipal”.

“Só falta agora ele dizer que ela será tombada por meio de um decreto-lei e passará a integrar a tão ineficiente Secretaria da Cultura”, pensou o delegado que largou a caneta e encostou-se na cadeira para ouvir as explicações do prefeito, o qual prosseguiu:

  – O doutor pode até ser contra esse tipo de atividade, mas imoralidade é um conceito que deve ser repensado nos dias atuais.  Acredito que essas profissionais já não são mais tão imorais quanto às roupas usadas pelas jovens hoje em dia, além das fortes cenas mostradas na televisão e cinema, as proliferadas revistas masculinas nas bancas de jornais ou vídeos na internet. Além do mais, prostituição existe desde o começo do mundo e agora está para se tornar uma profissão regulamentada e com direitos previdenciários, graças a uma lei em tramitação em nosso Congresso Nacional.

– Tudo bem, senhor prefeito, mas neste caso específico, qual a justificativa que o senhor tem para eu soltar essa senhora?

– Em tempos de outrora, essa senhora acreditou no potencial da cidade. Instalou-se aqui e começou a desenvolver as suas atividades. Gerou empregos, divisas e finanças, pagando em dia seus impostos. Sempre incentivou a concorrência e a livre negociação entre suas funcionárias e fregueses, dando, assim, exemplos democráticos no mundo dos negócios. Além disso, por intermédio dela e de suas profissionais liberais muitos homens da região foram atraídos para cá, construindo casas, montando os mais variados ramos de atividades e constituindo famílias. Fora outros que vinham fazer turismo.  Sua “casa” pode ser vista como Utilidade Pública. Às vezes, um casamento caía na rotina e era revitalizado quando o marido fazia uma “terapia” no local. Para os homens jovens era uma coisa necessária e saudável, sendo uma exigência da natureza humana. Note bem, meu caro doutor, ela foi uma personagem muito importante para a formação populacional e lazer da cidade. Por essas e outras é que exijo que solte a respeitosa senhora em nome de nossa Memória...

– Sim, mas com que autoridade o senhor prefeito me exige tal coisa?

O prefeito chegou perto dele e respondeu calmamente:

– O delegado acaba de chegar à nossa cidade. Sua família adaptou-se muito bem e está feliz. O senhor mesmo está tranquilo numa cidade em que nada acontece, isso estando num país com alto índice de violência. Certamente, quer continuar por aqui, pois não?

O delegado resolveu atender ao “gentil pedido”, pois sabia que bastava um telefonema do prefeito aos seus superiores para que fosse transferido daquela mamata. Só mais tarde refletindo é que o delegado entendeu o verdadeiro espírito de uma pequena cidade, na qual são todos iguais e ninguém é melhor do que ninguém. Cada um tem o seu papel, sua importância e a sua contribuição na construção do contexto, sendo que, antes de ser uma sociedade composta, formam uma grande família!

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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