HOMENAGEM AO CENTRINHO – Emílio Figueira / Nov.
de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela - Med. 1,00 x 1,20
Ostentando
o título de “Celeiro do País”, o Rio Grande do Sul é conhecido e respeitado em
todo o Brasil por suas riquezas agrícolas, naturais culturais e pela forte
tendência de preservação às tradições de seu povo. Em sua história há episódios
marcantes e que são motivo de grande orgulho para sua população, como por
exemplo, a Guerra de Farroupilha, que teve duração de dez anos (1835-1845),
onde os republicanos rio-grandenses por não possuírem seus próprios fardamentos,
ficaram conhecidos também por “Farrapos”. Os registros antigos nos contam que
no Sul sempre houve a chamada “Democracia dos Pampas”, no qual peão e
estancieiro trabalhavam juntos, irmanados na luta por dias melhores e pelo
aumento de suas produções. Essa união entre o povo rio-grandense prevalece até
hoje nos mais diversos segmentos sociais. Fixando hábitos e conceitos, o gaúcho
divulga a sua música e exalta comportamentos considerados típicos.
E
é nesse cenário de uma cidade gaúcha (sem ter a necessidade de identificá-la
pelo nome, homenageando a todas!), que vamos conhecer um pouco de uma figura e
seu trabalho em prol dos pacientes do Centrinho: os pais-coordenadores!
Crescendo
dentro da cultura dos pampas, Dona Cidinha, funcionária pública, estrutura
média, branca, meia-idade, cabelos longos, usa óculos. De personalidade forte,
expandindo sempre suas emoções com muita honestidade, se mantém firme em seus
objetivos. Vestindo-se sempre de maneira discreta, nunca ridicularizando pelo
exagero, ela tem dentro de seu coração, forte e latente, o amor pelas coisas do
Rio Grande do Sul. Constituindo a sua família, uma de suas filhas, a Amanda,
nasceu com fissura labiopalatal. Motivo pelo qual, após ir algumas vezes ao
Centrinho, em sua última visita recebe um convite especial. Ana Lú a chama em
sua sala, comunicando-lhe:
-
Bem, Dona Cidinha, já faz algum tempo que conhecemos a senhora e por isto temos
um convite a lhe fazer.
-
Um convite?
-
Sim, é que queremos que a senhora seja nossa mãe-coordenadora em sua cidade.
-
Eu!? – Surpreende-se.
-
A senhora mesma. Acontece que a coordenadora que temos lá, não tem preocupação;
a coisa está bagunçada, os retornos não são certinhos, pois ela não demostra
nenhuma preocupação com os fissurados. Concluindo, precisamos da senhora...
-
Bem Ana Lú, nessas condições, apesar de eu nem saber o que é uma
mãe-coordenadora, aceito o convite.
-
Não será difícil, Dona Cidinha. Aqui tem uma pasta preta com tudo o que irá precisar. A senhora irá
lutar pelas crianças de sua cidade; terá que procurar o prefeito e pedir ajuda
a todos.
A
assistente social lhe dá várias explicações, repassa-lhe vários manuais,
ensina-lhe a fazer relatórios, a justificar por escrito as faltas de pacientes,
dentre outras coisas.
-
Mas Ana Lú, eu tenho tanto erro de português, escrevo mal pra chuchu.
-
Não se preocupe com isto. O importante é a senhora não ter medo de ninguém; o
tratamento é um direito de todos e o Serviço Social está aqui para lhe ajudar.
Todas as dificuldades que aparecer, poderá nos procurar. Boa sorte!
* * *
No
Centrinho, Regina conversa com Ana Lú com relação ao seu projeto.
-
Ana Lú, você já pensou sobre aquela minha ideia de fazermos um movimento de
conscientização dos pais com relação à importância de unirem forças?
-
Você está segura disso que realmente quer realizar este trabalho, Regina?
-
Sim, estou. Devido a literatura de minha pesquisa, estou cada vez mais
consciente que a organização das pessoas teve ser fruto da participação social.
Um processo comum a todo ser humano, inerente à natureza social do homem. Se
estimularmos uma maior participação desses pais nos assuntos que envolvem seus
filhos fissurados, os mesmos poderão se organizar à procura de interação e ou
integração a grupos com problemas parecidos, independente de nível social, grau
de escolaridade e outras características, sendo uma continua busca de fatores
semelhantes com caráter de harmonia no conjunto.
-
Pois bem, Regina. Você me convenceu. Agora vou colocar você numa prova de fogo.
Depois de amanhã vamos ter um encontro de pais-coordenadores. Vou pôr você para
fazer uma palestra e dizer tudo isso a eles...
* * *
O
cansaço começa a tomar Andréa ao volante; mas as placas da rodovia já começam a
indicar a cidade de Bauru. Entra na cidade e resolve ir ao banco se apresentar
ao seu novo gerente. Na agência, no centro movimentado, vai direto à mesa do
mesmo.
-
Boa tarde. Meu nome é Andréa e sou a nova subgerente desta agência.
-
Como vai? Seja bem-vinda - deseja o gerente, estendendo a mão direita: - Por
favor, sente-se.
-
Obrigada.
Após
alguns momentos de conversa, ele convida Andréa para ir até a cozinha do banco
para tomar um café.
-
Então tudo certo para amanhã eu assumir o meu cargo aqui - comenta ela com a
xícara na mão.
-
Será um prazer trabalhar ao seu lado - o gerente declara em tom de cantada.
-
Agora preciso achar um lugar para me hospedar.
-
Se quiser, por enquanto, pode ficar no meu apartamento. Moro sozinho e tenho
certeza que iremos nos entender muito bem...
“Cretino”,
pensa Andréa respondendo seca:
-
Não, muito obrigada. Prefiro ficar em um apart-hotel.
* * *
Sábado
à tarde. Regina, Adriano e o pequeno Carlos Augusto vão ao supermercado. Eles
colocam o menino no encaixe do carrinho que vai se divertindo olhando tantas
pessoas e coisas coloridas. Quando aproximam o carrinho das pateleiras, Carlos
Augusto tenta pegar os produtos, mas Regina retira a sua mãozinha.
-
Não mexa ai menino. Isso não é pra você - chama sua atenção e os deixa, indo
até o açougue.
-
É, você está cada vez mais danado. Toma, o pai vai lhe dar um pirolito.
Adriano
descasca e coloca em sua mão e ele se diverte se lambuzando todo, deixando sua
mãe, ao voltar, brava ao limpá-lo.
-
Isso só poderia ser ideia de seu pai...
Nesse
momento, Seu Luiz passa por eles e os olha por alguns instantes. Ficam todos
sem ação. O pai de Adriano se vai sem nada dizer.
-
É, meu pai ainda não quer aceitar o Carlos Augusto - declara o moço com uma
certa tristeza nos olhos.
-
Calma amor. A coisa é assim mesmo. Com o tempo isso vai mudar - o consola
Regina, passando a mão em sua cabeça.
* * *
Regina
está andando pela sala embalando Carlos Augusto nos braços:
-
Dorme filho. A mãe precisa estudar para a palestra de amanhã.
O
bebê resiste um pouco, mas logo pega no sono.
-
Graças a Deus - diz Regina falando baixinho, colocando-o no berço.
Começa
a estudar a sua palestra. Depois de uma hora, Adriano chega com o seu violino,
indo beijá-la.
-
E ai amor, como foi a sua aula hoje?
-
Muito bem, Regina. O professor Geraldo disse que estou me desenvolvendo muito
bem e logo vou poder fazer teste para oficialização como músico profissional.
-
Que bom, Adriano. Fico contente por você.
-
E o nosso baby, cadê? - pergunta ele pegando água na geladeira.
-
Está dormindo. Hoje deu trabalho pra pegar no sono.
-
Vou acordar ele para brincar comigo - ironiza o rapaz.
-
Faz isso que eu saio e deixo vocês dois aqui sozinhos.
* * *
Chega
o momento da palestra. Ao entrar no auditório, Regina tem um frio na barriga.
Muitas pessoas - pais-coordenadores, familiares e profissionais -, pela
plateia. O superintendente do hospital, conhecido por Tio Gastão, dando-lhes as
boas-vindas, diz algumas palavras iniciais:
-
Existe um direito inalienável da pessoa humana a um mínimo de harmonia
estética, condição e exigência para a exteriorização elementar das manifestações
psicológicas normais. Contemplando os casos de malformações congênitas
labiopalatais, participando das reações emotivas e psicossomáticas de seus
portadores, compreendemos toda a grandeza da estética dos seres normais. Por
isso, podemos e devemos cooperar na missão de restituir ao próximo, tanto
quanto nos permitam as conquistas da ciência, as formas estéticas compatíveis
com a dignidade do homem.
Após outras apresentações e discursos
rotineiros, Ana Lú, a qual preside o encontro, diz:
-
Bem pessoal... Dando início ao nosso círculo de palestras, a assistente social
Regina nos falará sobre o poder da participação.
Regina
faz os cumprimentos e agradecimentos iniciais e começa a sua palestra:
-
Se tem algo que sempre me fascinou, foi o poder da participação. Através dela
conhecemos pessoas e ficamos conhecidos pelo contato social; tomamos
conhecimento de fatos e novidades; descobrimos novas oportunidades e lugares;
participamos de decisões e, unindo forças, conquistamos mudanças. Sendo uma
utopia criadora, a participação pode impulsionar a sociedade a descobrir, por
meio do uso da criatividade, formas alternativas de conquistar uma melhoria de
qualidade para humanidade ou para a simples comunidade da qual tomamos parte.
Participando, temos envolvimento efetivo nos destinos, nos rumos e no poder de
decisão daquelas resoluções que poderão interferir na vida de cada cidadão. É
uma maneira de acreditar que cada pessoa têm grandes potencialidades, e com
elas podemos fazer com que uma comunidade que, por exemplo, é oprimida e
enganada, possa encontrar seus próprios
rumos, escrevendo a sua própria história. Enfim, a participação nos traz
inúmeras mudanças pessoais ou coletivas...
Abertas
as perguntas a plateia, uma mãe-coordenadora observa:
-
Será Regina, que os montes de problemas que enfrentamos hoje em dia e a falta
de tempo, não seja o grande motivo dessa falta de união?
-
Concordo que os dias estão difíceis e cada um de nós tomos nossas preocupações
e problemas pessoais para correr atrás. Porém, não podemos deixar que nosso
relacionamento, seja como pacientes e familiares, seja no campo profissional
aqui no Centrinho se esfrie. Não podemos nos tornar um estranho no ninho dentro
de nossas próprias causas incomuns ou no ambiente de trabalho. O número de pessoas
atendidas ou atuando aqui no Hospital tem aumentado dia após dia. Participar
desses é uma forma de conhecer e começar a se relacionar com esses novos
membros que estão chegando em nossa família, além de rever velhos conhecidos.
Participar é uma forma de relação pública a qual pode contribuir e facilitar o
nosso relacionamento diário. Participar é uma forma de lazer, fazer amigos e
absorver conhecimentos, sejam técnicos
ou pessoais. Participar é uma forma de
esquecer por alguns momentos o nosso cotidiano, e sermos felizes unindo-se a
outras pessoas, aumentando forças para a nossa luta. Participar, sobretudo,
será uma forma de unirmos forças, não permitindo mais que os membros da grande
Família Centrinho tornem-se cada vez mais individualistas!
Regina
é muito aplaudida. Outros palestrantes também falam durante todo aquele dia.
Encerrado o encontro, todos vão saindo, comentando os acontecimentos entre si.
Ana Lú chama Regina em um canto.
-
Primeiramente, gostaria de lhe cumprimentar pela sua palestra, Regina. Confesso
que fiquei surpresa com sua capacidade...
-
Obrigada, Ana Lú. Ouvir isso é um estímulo.
-
Agora, tenho uma novidade não muito boa. Inclusive, deixei para lhe contar
depois da palestra, para o estragar o acontecimento.
-
O que foi, Ana Lú? Conta logo - pede Regina já preocupada.
-
É a Marta. Fiquei sabendo que ela procurou o Fórum e quer a guarda do Carlos
Augusto de volta.
-
Essa não - desanima Regina, caindo sentada na cadeira: - E agora, o que vou
fazer?
-
Por enquanto nada. Mantenha a calma. É melhor esperarmos ela se manifestar
oficialmente.
* * *
Regina,
que faz algumas compras no centro da cidade levando o Carlos Augusto em seu
carrinho, resolve passar pelo banco para conferir a sua conta e uma rápida
visitinha a Adriano. Ele ao vê-los, vem de encontro dentro da agência.
-
E aí, garotão... Veio ver aonde o pai ganha dinheiro pra você gastar?
-
Nós estávamos passando por aqui e resolvi entrar. É quase hora da mamadeira
dele e acho que vou aproveitar para me sentar ali na recepção para amamentá-lo.
-
Não precisa, Regina. Está na hora do meu café. Venha, vamos até a cozinha aqui
do banco.
Lá,
o próprio Adriano faz questão de dar a mamadeira ao seu filho, enquanto
conversa com a esposa. Neste momento entra alguém que ele apresenta à Regina.
-
Esta é a minha nova subgerente. Ela veio do norte do Paraná.
-
Muito prazer. Meu nome é Regina - diz ela estendendo a mão num sorriso.
-
O prazer é todo meu. Sou a Andréa.
-
E este é o nosso garotão... - Apresenta Adriano sorrindo.
-
Que bebê lindo! - Exclama Andréa, passando a mão em sua cabeça, enquanto ele
continua mamando indiferente a tudo: - E pelo jeito é bem guloso - brinca a
moça.
Todos
riem.
-
Bem, se vocês me dão licença, tenho um monte de pepino para resolver lá dentro
- pede a subgerente, retirando-se.
Após
a partida de Regina e Carlos Augusto, Andréa chega à mesa do rapaz.
-
Desculpe-me Adriano a minha indelicadeza, mas poço lhe fazer uma pergunta?
-
Sim, faça?
-
É que não pude deixar de notar aquela pequena abertura e cicatriz vermelha no
lábio de seu filho...
-
Aquilo é uma fissura labiopalatal. Está vermelha porque ele passou recentemente
por uma primeira cirurgia. A abertura era maior do que está hoje. Daqui dois
anos ele operará novamente e ela sumirá por completo.
-
Você disse que há cirurgia para esse tipo de problema? - Indaga ela alegrando.
-
Não só cirurgia, mas um hospital universitário inteiro especializado nisto. É o
conhecido carinhosamente por Centrinho, orgulho da nossa cidade.
-
Sabe, estou lhe perguntando tudo isto, porque tenho um amigo com esse problema
e gostaria muito de ajudá-lo. Será que é difícil conseguir uma vaga nesse
hospital.
-
Acho que não. Inclusive, minha esposa é assistente social e está se
aperfeiçoando na profissão como bolsista de lá. Se você quiser, podemos
conversar com ela.
-
Se você poder fazer isto por mim Adriano, ficarei muito grata...
Ao
sair da mesa de Adriano, a moça é abordada pelo o gerente.
-
Sabe Andréa... Eu estava pensando. Que tal depois de expediente nós irmos tomar
um chopinho?
-
Não, muito obrigada - responde a moça seca, saindo da cantada.
* * *
Após
mais uma etapa do tratamento de sua filha Amanda, Dona Cidinha está de volta a
sua cidade. E agora com um novo desafio: coordenar o tratamento dos demais
pacientes fissurados. No começo enfrenta sim alguns problemas difíceis, mas
encontra pessoas que lhe ajudam.
Encorajada,
vai à Prefeitura. Depois de alguns minutos de espera, é recebida pelo prefeito.
-
No que posso ajudá-la, Dona Cidinha?
-
Bem senhor prefeito, como é do seu conhecimento, tenho uma filha fissurada que
faz tratamento no Centrinho, na cidade de Bauru. Agora acabo de receber o cargo
de mãe-coordenadora que consiste em... - E ela lhe explica toda a função e
objetivo de seu cargo, concluindo: - E gostaríamos muito de poder contar com o
senhor nessa nossa nova empreitada.
-
É, Dona Cidinha. Eu conheço a sua história e luta com sua filha e lhe admiro
muito por isto. Fico ainda mais feliz em saber que a senhora recebido este
convite. De minha parte posso lhe afirmar que a ajudarei no que for possível.
E
assim acontece. O prefeito começa ajudar o trabalho Dona Cidinha, cedendo
condução e dinheiro para alimentação de todos os pacientes e seus familiares
que viajam à Bauru sempre agendados na mesma data.
* * *
Dias
depois, Regina está preparando o janta enquanto Carlos Augusto brinca com suas
coisas sentado em um tapete colocado no chão da cozinha. De vez em quando, ele
dá um grito de felicidade, balançando os brinquedos.
-
Que foi que o bebê da mamãe está fazendo algazarra? - brinca com ele.
De
repente, ouvem a voz de Adriano:
-
Por favor, entre. Fique a vontade.
Carlos
Augusto dá uma risadinha, apontando a porta com o seu bracinho.
-
É o papai filho - diz Regina sorrindo e o pegando no colo: - Venha, vamos
receber o papai...
Na
sala, Adriano está entrando acompanhado por Andréa.
-
Como vai, Regina?
-
Muito bem. O Adriano falou mesmo que você vinha. Por favor, sente-se.
-
Obrigada...
Carlos
Augusto aponta a convidada e olha para a sua mãe sorrindo.
- Você não aguenta vê uma moça que já vai se
assanhando - comenta seu pai brincando.
-
É, ele é um paquerador precoce - brinca Andréa indo até ele e estendendo os
braços: - Vem no colo da tia, vem.
Ele
vai sem estranhar a moça. Sentam-se todos e começa o diálogo. Andréa relata
toda a história que conhece de Jorge. Regina, apaixonada pelo tema, faz algumas
considerações:
-
Bem Andréa, pela pouca experiência que já tenho, percebo que seu amigo sempre
viveu um isolamento social e restrito, com participação reduzida ou não
participação em atividades sociais, passeios e divertimentos, dificuldades de
relacionamento, o que nunca lhe causou um maior constrangimento. Mas agora,
morando na cidade, o seu contato social aumentou bastante, tendo uma vida
social regular, participando de atividades e se relacionando com um número
maior de pessoas. Isso certamente está causando um constrangimento consciente
ou inconsciente nele...
-
Também percebi isso, Regina. Ele é tímido e retraído... Infelizmente, a
sociedade coloca, digamos assim, um alto preço na aparência física.
Principalmente na beleza do rosto.
Adriano
ouvindo a conversa, arrisca-se em dizer:
-
Pelas coisas que Regina comenta comigo, acredito que seu amigo enfrentará outro
problema. Mesmo que sua fissura seja eliminada através de uma cirurgia
plástica, o rapaz deve ter já o estigma de “ser diferente”, o que pode
continuar lhe acompanhando pelo resto de sua vida.
-
Mas isto pode ser resolvido com uma boa terapia psicológica - observa Regina: -
De modo geral, durante a infância, a criança com fissura labiopalatal, coloca
toda a sua confiança em seus pais, mais do que no serviço de especialistas que
atuam em seu tratamento. Já chegando na adolescência, ela necessita de maior
segurança do que aquela dada pelas confidências paternas, principalmente
naquele ponto onde o tratamento chega à parte estética. É na adolescência que
começamos a valorizar mais o nosso corpo, começam as vaidades normais desse
período e intensificam as relações existenciais e amorosas. As pessoas estão em
presente transformação, tanto no corpo como na mente. As perspectivas para esta
época de vida são difíceis e confusas, principalmente com relação ao processo
cirúrgico. O portador de fissura labiopalatal pode estar acostumado a ter o seu
rosto como centro das atenções e suas perspectivas podem estar distorcidas além
do que, geralmente na adolescência, sua ansiedade aumenta com relação ao
tratamento - quanto tempo vai demorar? Como vou ficar?, são indagações
inevitáveis. Por isto acredito que, mesmo sendo uma pessoa simples e sem
ambições, ele vai ficar muito feliz com a possibilidade de reabilitação...
-
Poxa, que aula!
-
É, ela não perde uma oportunidade - brinca Adriano.
-
E é difícil consegui uma vaga para ele no Hospital? - Indaga Andréa.
-
Não Andréa. A nossa filosofia no Centrinho é nunca negar o tratamento para
ninguém! Trabalho mesmo no Caso Novo e vou providenciar tudo. Pode ficar
descansada. Acredito que seu amigo, após a reabilitação, dependendo da formação
psicológica dele, poderá desejar ter um grupo maior de amigos, facilidade de
relacionamento, participação em passeios e divertimentos sociais, uma vida mais
associativa.
-
Ficarei muito grata a você, Regina...
-
Imagina, Andréa... Agora tem o seguinte; hoje você vai jantar com a gente?
-
Eu não quero lhes incomodar mais...
-
Nem pense nisso, Andréa - diz Adriano: - Só que não temos copa. Aqui juntamos
na mesa da cozinha. Por favor, acompanhe-nos.
Na
cozinha todos sem sentam-se à mesa. Carlos Augusto é colocado na cadeira de
bebê e Regina lhe coloca um babador, dando uma coxinha de frango para ele ir
mordendo.
-
Acho tão lindo a dedicação de vocês com o seu filho! - Exclama Andréa.
-
Obrigado - agradece Adriano: - Só que ele ainda não é totalmente nosso.
-
Não... Como assim?
-
O Carlos Augusto foi abandonado por sua mãe biológica no Centrinho. Então me
apaixonei por ele, convenci o Adriano e resolvemos adotá-lo. Mas por enquanto,
só temos a guarda provisória.
-
Linda a atitude de vocês - admira Andréa.
-
Só que tem o seguinte - comenta Adriano se entristecendo: - A mãe dele agora
resolveu voltar e brigar para reavê-lo novamente.
-
E quanto tempo ele já está com vocês?
-
Cinco meses...
-
Ele está bem cuido, feliz. Vocês estão dando todas as coisas que ele necessita,
amor, carinho, proteção e também um tratamento de melhor qualidade para a
fissura dele. Qualquer um vê o quanto ele está feliz. Podem ficar descansados.
O juiz levará tudo isso em consideração na hora de decidi com quem ficará a
guarda definitiva...
-
Deus te ousa, Andréa... - suspira Regina.
* * *
Naquela
mesma noite, Andréa ao chegar em seu apartamento, telefona para uma conhecida
de sua cidade, a qual trabalharam juntas no banco:
-
Marcela, aqui é a Andréa, como vai? Estou lhe telefonando porque você é a única
amiga que ainda tenho nessa cidade e preciso de um grande favor de sua parte.
Lembra-lhe daquele meu amigo, o Jorge que trabalha na beneficiadora de meu pai? Pois é... Preciso que você o procure e peça para ele vir a Bauru. Arrumei
um tratamento especializado para ele. Inclusive, amanhã vou depositar uma
quantia na sua conta e você, por favor, repassa a ele para custear as despesas
da viagem. Agradeço e fico lhe devendo mais essa...
* * *
Os
agentes do Fórum, incluindo uma assistente social, vão fazer uma nova visita à
Regina e Adriano, visando analisar como vai a adaptação do garoto. Lá,
encontram Carlos Augusto bem cuidado, feliz e animado. Notam o bom tratamento
reabilitacional que o casal está proporcionando à criança, já com quase a
ausência total de sua fissura.
-
Realmente, os senhores estão se esforçando para dar tudo de melhor para este
menor - declara a assistente social: - Carlos Augusto está claramente
demonstrando também ter adotado o casal como seus pais, pois vemos a felicidade
em seu rosto. Só que temos uma notícia não muito animadora. Dona Marta, a mãe
biológica dele, procurou o nosso Juizado de Menores, declarando querer reaver a
guarda dele.
-
E quais as chances dela conseguir? - Indaga Adriano com medo da resposta.
-
Não temos como saber - responde um dos agentes: - Muitos fatores serão levados
em conta na avaliação do juiz. Só ele poderá dar o parecer final sobre com quem
ficará a criança.
-
E por falar nisto, temos aqui uma convocação para os senhores comparecerem ao
Fórum no dia e horário marcado - diz a assistente social, entregando-lhe o
papel.
Os
visitantes se vão. Regina abraça o marido aflita, declarando:
-
Agora é oficial. Marta vai querer mesmo tirar o nosso filho... - E começa a
chorar.
-
Calma, meu bem. Vamos lutar até o fim. Tive uma ideia...
-
O que você vai fazer?
-
Você vai ver.
* * *
Regina
mais uma vez é convidada para uma pequena palestra, agora em um encontro de pais-coordenadores
do Centrinho. E novamente o seu tema foi a necessidade de participação. A certa
altura, ela expõe à plateia:
-
Com minha experiência baseada na literatura especializada, digo-lhes que, ao
quererem tomar parte no ato da participação, os senhores precisarão passar por
três princípios básicos: a conscientização, sendo uma visão crítica da
realidade; a organização, união consciente dos indivíduos de um grupo, ao redor
de interesses comuns e objetivos reais, percebidos coletivamente, alimentando
as ações coordenadas, buscando satisfazer a esses sistemas coletivos; por fim,
a capacitação, onde os senhores precisarão criar e recriar formas para novos
enfrentamentos frente aos obstáculos, assumindo o processo de conscientização e
organização, como uma verdadeira dinâmica libertadora.
Ao
término, Ana Lú e ela vão conversando caminhando pelo corredor.
-
Regina, sinceramente estou muito feliz com a sua atuação. Você, através do seu
esforço e idealismo, está realmente correspondendo as expectativas de nossa
profissão. Nós, assistentes sociais que temos por base a missão de prestar as
pessoas assistência enquanto direito e cidadania. Devemos estar sempre
preparadas para atuar nos problemas decorrentes das relações sociais entre as pessoas
no campo da família, trabalho, escola, religião dentre outros.
-
Concordo, Ana Lú. Pela minha pesquisa e convivência diária com esses pais e
pacientes, percebo que devemos cada vez mais concentrar nossas atuações,
desencadeando o processo de participação, à necessidade do conhecimento da
realidade, incentivando-os a lutarem pelas mudanças necessárias. A assistente
social é a mediadora na relação entre a população dominada, oprimida ou
excluída e o Estado. Diferente das outras profissões tais como médicos,
psicólogos, dentistas, pedagogos, cuja sua atuação é sobre uma única
necessidade humana, no Serviço Social temos características próprias e
destinada a todos os homens sem distinção de renda ou classe social, atuando
sobre todas as necessidades humanas. E confesso que estou muito feliz por isto.
Por ter a oportunidade de estar realizando estas palestras de conscientização,
visando proporcionar acesso de uma certa parte da população excluída aos
serviços especializados que lhes é de direito.
-
Parabéns, professora - brinca a assistente social chefe.
* * *
Dona
Cidinha começa o seu trabalho de campo. Inicia tentando conscientizar o povo de
sua cidade e os pais de pacientes fissurados. Encontra muitas pessoas dispostas
a ajudar; mas também alguns pais desligados, os quais ela sempre precisa ir
atrás, um dia antes e avisar:
-
Olha, amanhã seu filho vai à Bauru. Passaremos aqui com a condução para
pegá-los na hora marcada.
As
viagens passam a ser constantes e cada vez mais pacientes de sua cidade são atendidos
e tratados pelo Centrinho. Por ser uma pessoa bem popular em sua cidade e ter
muitas amizades, entre as quais vai encontrando certa facilidade em suas
petições, onde ninguém se nega a dizer não. Mas nem tudo são flores. Às vezes,
aparece um problema ou um desafio para ser superado.
Devido
as eleições, o prefeito de sua cidade é substituído e Dona Cidinha vai
conversar com o novo. Explica a ele o trabalho que vem sendo realizado, mas
encontra resistência.
-
Bem Dona Cidinha, reconheço a importância do trabalho da senhora, mas estamos
passando por uma fase de contenção de despesas. Não poderemos mais lhe fornecer
o transporte e nem a verba para alimentação.
-
Mas entenda senhor prefeito. Essas crianças e adultos não podem interromper o
tratamento e eles não têm condições de se manter financeiramente. Além disso
todos estão agendados para o mesmo dia e o Centrinho não pode perder tempo com
os nossos pacientes. Se faltarem, ficarão profissionais parados, sem trabalhar
e sem poder atender outros que não estejam no local por não serem chamados,
pois as vagas do dia são nossas. E profissional parado, é dinheiro jogado fora.
-
Comovente, minha senhora. Mas não posso fazer nada, infelizmente.
Dona
Cidinha, buscando forças e coragens de uma grande lutadora, é direta em
declarar suas intenções:
-
Pois bem, senhor prefeito. Já que o senhor se nega a apenas continuar a manter
um serviço que já é nosso, vou ter que acioná-lo judicialmente, uma vez que o
tratamento é um direito constitucional de todos nós!
E
assim Dona Cidinha procura o promotor de justiça de sua cidade e faz a
denuncia. Esse por sua fez, já conhecedor e admirador do trabalho desenvolvido
por ela, fica indignado com a atitude do prefeito e promete ajudá-la.
* * *
Andréa
espera caminhando lentamente pela plataforma da rodoviária. Um ônibus vindo do
Paraná chega e seus passageiros começam a desembarcar. Entre eles, aparece
Jorge, simples, apenas com uma sacola. A moça, ao vê-lo, com um brilho nos
olhos, corre para abraçá-lo.
-
Fala, meu amigo...
- Andréa, é bom lhe rever novamente.
Vão
para o estacionamento, entram no carro e saem pelas ruas bauruenses. Tudo é
novidade para aquele rapaz que durante muito tempo viveu isolado. As ruas,
muitos carros, coletivos, faróis, muitas pessoas transitando, os grandes
prédios e tudo que a identifica como uma mini-grande
metrópoles.
-
Mas me diga meu amigo, como vai a nossa cidade?
-
Tudo do mesmo jeito. Só eu que...
Jorge
interrompe o que ia dizer. Ela insiste, querendo saber:
-
Você o quê, Jorge?
-
Eu não queria lhe dizer, mas já que comecei. Seu pai quando ficou sabendo que
eu vinha encontrar com você, mandou-me embora da beneficiadora.
-
Aquele infeliz fez isso! - Exclama ela com certo tom de raiva.
-
Por favor, não fique triste com seu pai, Andréa.
-
Tudo bem, Jorge. Depois a gente resolve esse problema. O importante agora, é
que consegui um bom tratamento para você e tudo está dando certo.
Chegam
em frente de um alto edifício, cuja tamanho e beleza encanta aos olhos do
rapaz.
-
É aqui que eu moro. Venha, vamos entrar...
Ao
passarem pela portaria, os dois porteiros de plantão comentam entre eles.
-
Acho que a Dona Andréa trouxe esse rapaz para fazer algum serviço no
apartamento.
O
elevador e o corredor com piso de mármore também são novidades à vida de Jorge.
O apartamento, embora não luxuoso, fascina ele, achando tudo muito lindo.
-
Aqui por ser um apart-hotel, só tem um quarto, está sala e uma pequena cozinha.
Será que você não se importa de ter que dormir aqui no sofá, meu amigo?
-
Imagina, Andréa. Se for preciso, durmo até no chão...
-
Eu sei que pela sua simplicidade, se preciso, você dorme até no chão -
reconhece ela sorrindo: - Só que não precisa, porque este sofá é muito grande e
confortável. Agora vai. Toma um banho, enquanto preparo alguma coisa para nós
comermos.
Nos
dias seguintes, Jorge começa a fazer os exames no Centrinho. Nos dois primeiros
dias, Andréa lhe acompanha, mas devido o seu emprego no banco, o deixa caminhar
sozinho. Ele, ao ver várias pessoas com o mesmo problema que ele, se sente em
casa, fazendo inclusive, vários amigos. Tudo caminha bem nos exames
pré-operatórios, até que o rapaz está pronto para a primeira cirurgia.
* * *
Adriano
vai procurar Mário, o seu amigo advogado. Após lhe explicar todo a caso, o
amigo lhe revela:
-
Bem Adriano, é muito bonita a história e a dedicação que você e sua esposa tem
para com essa criança. Mas preciso ser sincero com você. Infelizmente, de
acordo com a lei brasileira, a mãe tem acima de tudo e de todos, o direito de
ficar com o filho.
-
Quer dizer então que não temos chances, Mário?
-
Calma, Adriano. Nem tudo está perdido. Vamos fazer o possível para que o garoto
permaneça com vocês. Agora vamos esperar para ir nesta audiência com juiz
marcada aqui no papel para ver o que ele decide. Caso a sentença seja
contrária, entrarei com os recursos necessários.
-
Você fará isto por mim. Mas eu não tenho como pagar os seus honorários, Mário.
-
Imagina, Adriano. E a nossa amizade, onde fica? Farei isto gentilmente para você
e, principalmente, para que seu filho tenha um lar digno e feliz. Afinal, o
tema adoção sempre me atrai, devido a sua carga emotiva que envolve a questão.
São numerosas as crianças brasileiras em estado de abandono, propiciando assim
tanta a adoção por nacionais, quanto por estrangeiros. Interessante notar que
nos países mais adiantados dificilmente encontra-se crianças para adoção, a
menos as que têm deficiência. Os estrangeiros adotam muito crianças deficientes
físicas ou intelectuais. Só que infelizmente isto não ocorre aqui no Brasil, um
grande país gerador de menores desvalidos e abandonados. Por esse motivo, é lindo de ver quando
pessoas tomam atitudes como a sua e de sua esposa!
* * *
Confiante
na justiça, Dona Cidinha continua a realizar o seu trabalho de coordenadora,
sempre dividindo-o com suas tarefas de dona-de-casa e mãe.
Aproveita
as tardes de sábados ou nos domingos para realizar reuniões no Centro de Saúde
com todos os pais e envolvidos na questão. Através de suas palestras e
orientações, ela vai conseguindo envolver toda a família no problema de seus
filhos, facilitando e colaborando assim no processo da reabilitação global. Com
o tempo, muitos passam a conseguir a resolver as coisas sozinhos, como por
exemplo, passagem de ônibus e ambulância. Dona Cidinha sempre está na
retaguarda auxiliando-os e orientando-os. Ensina o caminho para eles, para onde
devem ir para conseguir as coisas e brigas pelos seus direitos, procurando
sempre o Promotor para garanti-los.
Sua
experiência pessoal também passa a ser fundamental no desenvolvimento de seu
trabalho, como por exemplo, quando fica sabendo que nasceu mais uma criança com
fissura. Certa vez, foi até uma mãe de um recém-nascido, levou os folhetos do
Centrinho e relatou o seu caso. Essa mãe lhe confessou que já conhecia a sua
história pessoal e estava tranquila, pois a fissura de Amanda fora maior que a
do seu bebê e hoje ela está totalmente reabilitada, sendo inclusive, uma
professora.
A
coordenadora recebe também um apoio muito grande de pessoas do Posto de Saúde.
Quando aparece um novo caso por lá, as atendentes e enfermeiras contam o relato
de Amanda e Dona Cidinha e incentivam a nova mãe ir procurá-las para serem
encaminhada para o Centrinho.
* * *
Naquela
tarde Andréa chega cansada do banco. Mas o seu amigo Jorge tem uma boa notícia
para ela:
-
Andréa, já estou preparado para fazer a cirurgia. Vai ser amanhã de manhã.
-
Que bom, Jorge. Vai dar tudo certo. Você vai ver. Agora, para comemorarmos,
vamos jantar em um restaurante?
-
Se você quiser...
-
Quero sim, Jorge. Hoje estou cansada para enfrentar um fogão. Me dá um tempo
que vou só tomar um banho e colocar uma roupa mais fresca.
A
moça escolhe um restaurante fino o qual está acostumada a frequentar, onde há
muitos casais de classe média-alta, empresários e outros membros da sociedade.
Logo na entrada há um impacto, quando todos olham fixos e preconceituosos para
Jorge. Ele também se sente bem incomodado pelo ambiente que nunca frequentou.
Andréa percebe logo de início o erro que comete a escolher aquele local para
levá-lo. Mas resolve ir em frente.
O
garçon trás o cardápio para os dois. Ela escolhe o seu prato e pergunta:
-
Jorge, você já escolheu?
-
Se você não se incomoda Andréa, estou sem fome. Mas você pode comer, que eu
fico olhando.
-
Imagina, você vai jantar sim...
-
Por favor, não insista.
As
outras pessoas continuam olhando para eles, sem ao menos se preocuparem em
disfarçar o preconceito social claramente presente em toda a elite. Andréa
chega a conclusão que é melhor não insistir devido o constrangimento que o
rapaz já está sendo submetido. Resolve contornar a situação:
-
Sabe, também não estou muito com fome. Vou só tomar um chopp e a gente já vai.
Ao
saírem do restaurante, a moça percebe nitidamente o gesto de alívio de seu
companheiro. Começam a dar uma volta de carro pelas ruas centrais da cidade. Ao
parar em um sinal vermelho, na esquina há uma barraca de cachorro quente, para
qual Jorge olhe fixamente, chamando a atenção da moça.
-
Você quer comer um cachorro quente?
-
É uma boa ideia, Andréa.
-
Está bom. Deixa-me estacionar o carro.
Comendo
o lanche e tomando um refrigerante ali de pé na calçada, o rapaz está bem a
vontade. Tanto que a sua amiga também resolve lhe acompanhar animadamente.
-
Você está com medo da cirurgia, Jorge?
-
Não. Estou tranquilo.
-
Um pouco você deve estar sim. Mas não se preocupe. Amanhã estarei lá com
você...
Na
madrugada, Andréa acorda soada devido ao forte calor. Resolve ir até a cozinha
tomar um copo d’água. Ao passar pela sala, observa Jorge dormindo
tranquilamente no sofá. Olhando-o por alguns instantes, começa a dar uma
vontade de aproximar cada vez mais. De repente uma vontade incontrolável e,
quando a moça dá por si, está dando um leve beijo nos lábios do rapaz que não
desperta. Assusta-se com seu próprio ato, recuando e pensando: “Meu Deus, o que
estou fazendo?” E, sem entender aquele impulso, volta rapidamente para o seu
quarto, onde é dominada por uma insônia sem entender conscientemente o porque
daquele impulso.
Logo
de manhãzinha, Andréa vai acordar o amigo.
-
Levanta Jorge... Temos que ir para o Centrinho.
No
hospital, antes dele entrar para o pré-operatório, ela lhe incentiva:
-
Calma Jorge, vai dar tudo certo, se Deus quiser... Estarei aqui torcendo por
você.
-
Estou calmo. Obrigado por tudo.
-
Imagina...
-
Já é hora de entrar.
-
Boa sorte, meu amigo. Você vai ficar mais bonito ainda.
-
Vou fazer apenas uma cirurgia, não um milagre - brinca o rapaz.
Jorge
começa a caminhar rumo à porta do Centro Cirúrgico. O ato da madrugada volta à
mente de Andréa, fazendo-a chamá-lo num outro gesto de impulso:
-
Jorge?
-
Sim? - Pergunta ao se virar.
-
Desculpe-me pelo que fiz.
-
Mas do que você está falando?
-
Nada não. Bobeira de minha parte - responde ela num sorriso sem graça.
Jorge
assiste televisão na anti-sala do pré-operatório com outros pacientes, todos
acompanhados por conversas informal com uma psicóloga, tendo objetivo de
tranquilizá-los. Embora não aparente, o rapaz está inconscientemente ansioso e
deprimido. Talvez pelo fato de própria cirurgia. Talvez por uma carência
familiar, por estar em uma cidade onde tudo e todos são estranhos. Só que essa
ausência é preenchida em parte pelo apoio tão carinhoso de sua amiga que, ali
está do lado de fora, mas torcendo por ele. Até que uma enfermeira vem lhe
buscar para a operação.
Durante
alguns minutos Andréa fica por ali na recepção. Um nervosismo começa a tomá-la
e, ao mesmo tempo, um certo remórcio por aquele beijo. Entre todas aquelas
pessoas transitando por ali, surge Regina que a reconhece num sorriso.
-
Olá, Andréa. O que você está fazendo por aqui?
-
Como vai Regina? O Jorge, aquele meu amigo, está sendo operado neste momento e
vim acompanhá-lo.
-
Certamente, vai ser uma cirurgia um pouco demorada e você está nitidamente
tensa. Se quiser, vem comigo. Vou lhe mostrar um pouco do nosso Centrinho.
-
Boa ideia, Regina. Vamos...
* * *
Naquela
tarde de domingo, Adriano está sentado no sofá da sala estudando uma partitura
de música, quando Regina trás o pequeno Carlos Augusto, colocando-o para
brincar no tapete.
-
O que está acontecendo hoje com você, Regina? - Pergunta ele, percebendo algo.
-
Não está acontecendo nada, por quê? - Tenta disfarçar.
-
Está sim. Desde o almoço você está esquisita, inquieta, muda.
Ela,
sem responder, pensa por alguns instantes. De repente começa a chorar. Adriano
larga os papeis e vai abraçá-la.
-
Estou com medo - confessa ela.
-
Calma, meu bem. Você está com medo de quê? Se abra comigo.
-
Medo de Marta. Esta semana vamos ter que voltar lá no Fórum. Eles vão querer
tirar o meu filho de mim.
-
Calma, Regina. Nada disto vai acontecer. O Carlos Augusto está super bem
conosco, muito bem cuidado, feliz. O juiz em sã consciência não irá tirá-lo de
um lar seguro para entregá-lo à alguém de destino incerto.
-
Mas e se o juiz não tiver sã consciência. Os direitos de mãe sempre falam mais
alto.
-
Regina, apesar desta grande tensão que estamos vivendo, precisamos ser mais do
que nunca otimistas. Cadê aquela mulher forte e guerreira com a qual me casei?
Ela precisa reaparecer para continuar à luta!
Neste
momento toca a campanhia.
-
Você está esperando alguém, Regina?
-
Não, e você?
-
Também não. Vai... Vai lá dentro lavar este rosto, enquanto vou ver quem é.
Ao
atender, é Andréa e Jorge, ainda com o curativo, que vieram fazer uma visita ao
casal.
-
Desculpe, nós estarmos vindo aqui sem avisar, Adriano - diz Andréa entrando
e, ao ver Carlos Augusto no tapete, se
abaixa perto dele: - Olá garotão da tia. Olha o que eu trouxe para você.
Andréa
dá um embrulho para ele que começa a querer rasgar o papel. Regina, entrando na
sala, alegra-se em vê-los.
-
Que bom a visita de vocês. - Olha para o filho. Nossa, você ganhou um presente.
Deixa a mamãe ajudar você abrir. É um carrinho. Você já falou obrigado para tia
Andréa, filho?
-
Imagina, não tem nada o que agradecer.
Momentos
após, todos sentados tomando café, Andréa confessa:
-
Nós viemos aqui mesmo, para agradecer você Regina pela ajuda que você nos deu,
conseguindo uma vaga para o Jorge no Centrinho.
-
Nem pense nisto, Andréa. Não fiz mais do que a minha obrigação. E você Jorge,
como está passando?
-
Graças a Deus, muito Bem Regina. Estou me recuperando dessa primeira cirurgia e
amanhã irei tirar os pontos - respondeu Jorge, sempre falando pouco em roda
sociais.
Futuramente,
dando continuidade ao tratamento, o rapaz passará por outros procedimentos
cirúrgicos secundários nos lábios e nariz, visando proporcionar uma aparência
mais aceitável para um indivíduo diante da ótica social!
E
aquela animada conversa continua durante toda à tarde.
* * *
-
Já está terminando a minha recuperação. Amanhã retirando os pontos, tenho que
voltar para casa - declara Jorge à noite no apartamento.
-
Mas pra que tanta pressa, Jorge? Você mesmo me disse que está desempregado.
-
Só que tenho que continuar a minha vidinha, Andréa. Além disto, você já fez
muito por mim. Já é hora de eu parar de lhe incomodar e de lhe dar despesas.
-
Por acaso eu estou reclamando? - Pergunta Andréa séria: - Você vai ficar mais
alguns dias até termos certeza de sua recuperação. E assunto encerrado!
* * *
O
novo retorno do pessoal a Bauru está se aproximando, quando Dona Cidinha recebe
um telefonema do Fórum.
-
Dona Cidinha, aqui é o promotor. Estou ligando para lhe informar que o juiz já
julgou a sua causa e deu a sentença a seu favor. A Prefeitura terá que
continuar a fornecer o transporte e a verba de alimentação para vocês.
-
Muito obrigada, doutor. Nem sei como agradecer - declara emocionada.
A
próxima viagem começa a ser preparada. Dona Cidinha passa avisando a todos
sobre o horário que a condução irá pegá-los. Em casa, avisa o seu marido.
-
Bem, amanhã vou viajar novamente à Bauru com o pessoal.
-
Você não acha que se arrisca muito pelas estradas indo todo mês à Bauru? São
tantas horas de viagem? - Observa o seu marido.
-
Pode até ser. Só que o que faço é gratificante. Embora um pouco cansativo, mas
tem que ter amor. à Bauru é como uma terapia muito grande em que até esqueço
que tenho problema de saúde, tudo. O mês que não vou ao Centrinho, é um mês
triste, cansativo e vazio. Essas viagens são uma satisfação pra mim.
-
Sim, Cidinha. Mas nossa filha está terminando o tratamento. E depois?
-
Independente disto, só espero deixar de ser coordenadora no dia que não
aguentar mais, ao ponto de ficar velhinha. Mesmo nossa filha tendo alta do
tratamento, vou pedir para Ana Lú deixa-me continuar no cargo.
-
É importante isso pra você, não é?
-
Sim, muito meu bem...
-
Pois de minha parte você tem todo o apoio para continuar. Admiro-lhe muito,
minha mulher! - E se abraçam carinhosamente.
Antes
eles tinham um ponto de referência para todos se encontrarem para a viagem. Só
que procurando sempre o melhor para todos, a coordenadora consegue junto à
Prefeitura a autorização para o motorista passar em cada casa, evitando que os
mesmos saem de sua residência tomando o ventinho da madrugada e chegando ao
Centrinho sem condições - como por exemplo, resfriados - para realização da
cirurgia.
Assim,
condução começa passar nas residências das pessoas que vão viajar naquela
madrugada. Ao chegar em uma casa simples de periferia - onde tem uma criança
com fissura, cuja Dona Cidinha encontrou seu pai na rua no dia anterior e o
avisou da viagem para o tratamento de seu filho -, todos dormem. Ë doído, mas aquele paciente teve que ficar
para trás.
Se
de um lado, a coordenadora encontra alguns pais desinformados e até relaxados
com o tratamento de seus filhos, em compensação tem encontrado pais excelentes,
que vão atrás demais; vão em sua casa constantemente ou telefonam quando
recebem cartas de convocação do Centrinho, avisando-a da data em que vão viajar
e assim todo um movimento vai tomando
forma.
* * *
Fim
de tarde. Regina, saindo do trabalho, passa pela portaria do Centrinho,
caminhando pela calçada rumo ao ponto de ônibus. De repente, uma mulher não muito
bem-vestida surge em sua frente, causando surpresa.
-
Marta!?
-
Como vai, Dona Regina?
-
Bem. E você?
-
Estou sabendo que a senhora está com o meu filho - declara ela indiferente à
pergunta de Regina.
-
É verdade. Eu e meu marido resolvemos adotá-lo e temos a guarda provisória. Ele
está muito feliz e muito bem cuidado.
-
Mas eu o quero de volta...
-
Por que isto agora, Marta?
-
Ele é meu. É a única pessoa que tenho no mundo e decidi que o lugar dele é
comigo. Preciso dele. E é bom que a senhora saiba que vou brigar até o fim por
isso. -Declara firmemente Marta, retirando-se.
Regina
chega em casa chorando e abraça o seu marido.
-
Calma. O que houve, Regina?
-
Foi a Marta. Ela me cercou na rua e declarou realmente querer ficar com o nosso
filho.
-
Você não perguntou nada para ela. Por que isto agora? Onde ela está morando?
Coisas desse gênero?
-
Nem tive cabeça, Adriano.
-
É, só nos resta esperar a decisão do juiz.
* * *
Logo
após o expediente do banco, Adriano passa pelo supermercado. Quando ele está na
prateleira de bebidas, ao afastar, esbarra em alguém. Virando-se para pedir
desculpas, tem uma surpresa. É seu Luiz.
-
Desculpe, pai. Foi sem querer.
-
Não foi nada, Adriano. Como tem passado?
-
Muito bem, graças a Deus. E o senhor e a mãe, como vão?
-
Bem também. E a Regina e o filho de vocês, como estão?
-
Felizes. O senhor precisa conhecê-lo – atreve-se em dizer Adriano.
-
É, quem sabe um dia. Até Adriano...
-
Até pai...
* * *
Sempre
preocupadas com os outros, principalmente com quem não tem condições
financeiras, Dona Cidinha vai desempenhando o seu papel com alegria, prazer e
orgulho. Sua filha já está formada em magistério e prestes a encerrar o seu
tratamento. Agora a tarefa da coordenadora é continuar a se preocupar com
outras crianças e pessoas fissuradas para que tenham a oportunidade de um feliz
destino de sua filha.
Já
no hospital, enquanto os pacientes são atendidos, Dona Cidinha tem uma conversa
reservada e informal com Regina.
-
Mas me conta Dona Cidinha, como é o seu trabalho como coordenadora.
-
Sabe Regina, é um privilégio. Deus nos dá cada coisa para gente na hora certa.
Para mim, ter uma filha com fissura foi como uma vitória que só agora entendo e
me orgulho disto. Através do problema de minha filha consigo ajudar muita
gente.
-
Sem dúvida. E sua filha, se envolve nisto?
-
Ela é a minha grande companheira e incentivada. Certa vez, minha filha me
disse: “Já pensou mãe, se eu não tivesse nascido com fissura? Nós seríamos
inúteis!” E eu concordo com ela, pois não iríamos descobrir o Centrinho e não
ia ajudar os outros, conhecer tanta gente maravilhosa. Hoje lá em minha cidade
todos, envolvidos nesta mesma questão, formamos uma grande família composta de
pobres, ricos; eles chegam à minha casa, vão entrando, sentam, comem, é uma
família realmente. Tenho muito a agradecer a Deus, pois através de minha filha,
tive a oportunidade de conhecer e estar ajudando esse povo maravilhoso.
-
Muito bonito isso que a senhora acaba de me dizer, Dona Cidinha. Mas como foi o
começo, quando a sua filha nasceu com uma fissura?
-
Bem, Regina. Tive que superar muita coisa, dar a volta por cima e acreditar na
possibilidade de reabilitação de minha filha. Só que o meu amor materno foi
maior do que tudo, inclusive do próprio preconceito social, e criei-a de igual
para igual como os meus demais filhos. Foi uma barra, mas venci.
-
Acredito também que a sua experiência pessoal tem colaborado em muito com o seu
trabalho como mãe-coordenadora, não?
-
Com certeza. Eu chorava muito quando ficava sabendo que havia nascido uma
criança com fissura, o que me fazia lembrar de tudo o que passei. Agora com o
meu amadurecimento pessoal e consciência de possibilidade da reabilitação
global, não choro mais! Quando me comunicam sobre um novo caso, vou até os
pais, dou conselho, peço para a mãe levantar a cabeça, porque sua criança vai
ser operada, vai ficar perfeita. Conto a eles a minha própria história, dizendo
que minha filha era assim e hoje é uma professora! Levo para eles o bico de mamadeira
especial, faço tudo e já marco a primeira consulta no Hospital.
-
E como é a receptividade de seu trabalho, Dona Cidinha?
-
Com relação a população de minha cidade, tenho recebido muito apoio, Regina.
Por parte dos pais e pacientes, sempre falo que não quero receber presente de
ninguém; porém, quando um pai olha pra você com aqueles olhos cheio de
esperança dizendo um “muito obrigado”, deixando cair as lágrimas, é algo
emocionante. Vê esses pacientes recuperados e o carinho e a gratidão deles é o
maior presente...
-
Vocês têm projetos para o futuro?
-
Temos sim. Os nossos ideais são os mesmos. Graças a Deus, já conseguimos
através da Prefeitura, um dentista, pediatra, clínico geral, acabamos de
contratar duas fonoaudiólogas. O objetivo desses profissionais é dar os
primeiros tratamentos e preparar os pacientes para facilitar e agilizar a
operação quando chegam aqui no Centrinho. Também pretendemos conseguir a nossa
própria condução para o nosso transporte. Mas o que nosso principal objetivo
será fundar a nossa própria Associação. Para isto, já temos até uma conta
reservada no banco e a mãe de um paciente como a nossa tesoureira.
-
Sabe, Dona Cidinha. Estou realizando uma pesquisa junto aos pais de fissurado e
pretendo realizar um trabalho de conscientização junto aos mesmos. E essa nossa
conversa está me ajudando ter algumas ideias para o meu trabalho.
-
Fico contente em poder ajudar você, Regina. Confesso que não foi muito fácil
chegar até aqui. É minha amiga... Tenho encontrado muita gente boa nessa minha
caminhada; mas também tenho enfrentado algumas barras. Às vezes brigo muito lá
contra o preconceito, muita gente que me ignorava, hoje me respeita. Sempre
digo que coordenadora tem que aguentar, não pode amolecer, tem que brigar,
lutar, sempre brigando pelos diretos de nossas crianças!!!
* * *
Ana
Lú chama Regina à sua sala.
-
Regina, sei que você está passando por um momento delicado e tenso, mas tenho
um novo desafio para você. Amanhã teremos um encontro de jovens com fissuras
labiopalatais. Gostaria que você falasse alguns coisas de incentivo a eles.
-
É, realmente está sendo uma barra, só que temos que continuar lutando. Quanto
ao seu desafio, já sei até o que irei expor - declara Regina, aceitando o
convite.
No
encontro há um número significativo de participantes. Após a tradicional
abertura e apresentações, a assistente social começa a sua pequena palestra,
visando despertar a consciência crítica e noções de cidadania neles:
-
É fato concreto que vivemos em uma sociedade pré-estabelecida, onde nós seres
humanos nos organizamos aceitando, ideologicamente, como natural toda diferença
entre os grupos. Temos o defeito de acreditar que promover mudanças para melhor
deve ser categoria especial de homens que pode se responsabilizar por elas. Com
isso, acomodamo-nos e deixamos que modificar a nossa situação de cidadão seja
tarefa de doutores ou sábios. Mais, temos que também nos unirmos num processo
de participação, para lutar pelos nossos direitos e lugar na sociedade. Vocês
jovens têm um grande potencial nas mãos. Não podem continuar deixando que a
história continue distante de cada cidadão como um discurso verdadeiro,
intocável, irrefutável. Não é justo que vocês continuem vendo os homens da
ciência e os mais intelectualizados como pessoas mais valorizadas. Somos todos
iguais, todos com o mesmo valor! Infelizmente, é sabido por nós que as pessoas
que não correspondem a esses padrões é considerado ignorante, incapaz,
desajustado, problemático ou coisa que o valha. Só que eu pergunto a vocês:
Isto é verdade? Claro que não. Todos nós temos o nosso potencial, nossas
habilidades; uns para uma coisa, outros para outras, mas todos somos úteis na
sociedade. Por isso meus amigos, vocês
embora tenham um problema estético, mas que em breve será curado aqui no
Centrinho, têm um futuro todo pela frente. Precisam de forma individual ou
coletiva lutarem pelos seus direitos e sonhos, conquistando o espaço social
para todos. A construção de uma sociedade melhor está nas mãos dos jovens que
começam a despertar para vida e partir para conquistar seus objetivos. E eu acredito em você!!!
* * *
Jorge,
por não ter nenhuma atividade, cuida e limpa todo o apartamento de Andréa
enquanto ela trabalha no banco. Porém, naquela tarde, ela chega com uma
novidade. Enquanto jantam, ela diz:
-
Jorge, hoje o gerente do banco me deu a tarefa de encontrar uma nova pessoa
para trabalhar na faxina do banco. Então, pensei que você possa se interessar
pelo cargo.
-
Eu trabalhar em Bauru?
-
Sim, por que não? Aquela nossa região
está tão difícil consegui serviço. Acho que você deveria aproveitar esta
oportunidade.
-
É, vamos tentar - concorda ele num sorriso.
No
dia seguinte, Andréa vai conversar com o seu gerente.
-
Com relação àquela vaga para limpeza, tenho um amigo que está precisando
trabalhar. Se você não se importa, eu gostaria de dar uma oportunidade para
ele.
-
Tudo bem, Andréa, como você queira. Mas não se esqueça que você tem um convite
pendente comigo para um chopinho - diz ele cinicamente.
-
Quem sabe um dia - ela não dá uma cortada nele para garantir a vaga do amigo.
* * *
Dona
Cidinha é uma pessoa incansável em sua luta. Quando está no Centrinho, enquanto
os demais pacientes trazidos por ela são atendidos ou operados, às vezes ela
fica na portaria conversando com as mães, incentivando-as a ter paciência,
mesmo sendo pessoas que ela nem conheça. Fala de sua vivência pessoal,
relatando o quando é importante a espera e tantas coisas boas, conquistas e
amadurecimento pessoal que acontecem depois da cirurgia. Ela chega até se
emocionar!
Como
ela, hoje há muitos pais-coordenadores espalhados pelo país. Pessoas que, pela
sua própria vivência se envolvendo com pessoas com lesões labiopalatais,
tornam-se agentes multiplicadores do Centrinho, possuidores de potencial para
liderança em sua comunidade, desenvolvendo a organização de outros com
problemas parecidos. Ao assumirem seus cargos, esses pais passam a crescer
pessoalmente, superando inclusive, seus erros ortográficos, a escolaridade
incompleta, as dificuldades financeiras, além de acumularem um conhecimento
específico com relação às fissuras labiopalatais. Se descobrem mais sensíveis aos problemas os
outros, sempre solidários e dispostos à enfrentar a sociedade contra o
preconceito e a burocracia na conquista do direitos de cidadania. Vamos
encontrar neles muita crença no desenvolvimento de valores humanos; estão
sempre dispostos a se doarem com amor ao próximo e, alimentados de
solidariedade, promovem a sua prosperidade!
Esses
pais-coordenadores, através de suas contribuições movidas por amor, dissertam
pacientes e seus familiares acomodados, mobilizando-os, despertando as
expectativas de superar limites através de ações conjuntas na organização, onde
também está presente a religiosidade, a humildade e a força para prosseguir e
progredir. Através de suas realizações cotidiana, constroem uma trajetória de luta e de muitas conquistas.
* * *
Jorge
consegue a vaga de faxineiro no banco. Só que ele não acha justo continuar
morando no apartamento de Andréa. Então se transfere para uma das pensões da
região do Centrinho.
Uma
região que a cada dia perde as suas características residenciais, tornando-se
um comércio específico voltado ao atendimento de pacientes, acompanhantes e
funcionários do Hospital. São padarias, lanchonetes, bares, bazares, postos de
gasolina, lojas de calçados, roupas, supermercados, farmácias, bancas de
revistas, restaurantes, xerox, material para construção, loja de acessórios de
decoração, ponto de táxi e, principalmente, pensionatos e pensões.
Essas
pensões, geralmente adaptadas em casas residenciais, sempre acompanharam a
história do Centrinho, abrigando pacientes e seus parentes sem condições
financeiras para arcar com despesas de hotéis. Muitas oferecem café da manhã,
banheiro coletivo, tanque, ferro de passar roupa e, em alguns casos, até
cozinha para o preparo de mamadeiras e outros alimentos desses pacientes. Em
muitas os varais nos quintais estão constantemente lotados de fraldas dos
pequeninos pacientes do Centrinho. São pessoas que chegam todos os dias de todas
as regiões do país e até do Exterior. Muitos começam a frequentar essas pensões
com 15 dias de vida no colo da mãe, vindo ao Centrinho para a primeira
consulta. Continuam voltando para as cirurgias durante anos e, sempre se
hospedando na mesma pensão, permitem aos seus proprietários acompanharem o
crescimento dessas crianças, admirando o trabalho dos profissionais do Hospital
que conseguem recuperar os pacientes da lesão.
E
dentro desta grande família que Jorge começará a conviver!
* * *
A
vida de Regina, devido ao seu trabalho e projeto no Centrinho e suas tarefas
como esposa e mãe está cada vez mais agitada. Ainda mais pela tensão que
envolve o processo de adoção de Carlos Augusto. Só que a jovem senhora encontra
em Adriano, um típico marido moderno, dando-lhe um total apoio para o seu
sucesso profissional. Toda a dedicação do casal é fundamental na construção de
projetos comuns, visando repartir compromissos em casa, uma necessidade cada
vez mais real no mundo moderno.
Com
relação ao Carlos Augusto, Adriano cada vez mais passa a fazer parte de uma
geração de jovens pais que estão assumindo responsabilidades em casa e junto
aos filhos para favorecer a atuação profissional de suas mulheres. Uma vez no
qual o seu horário é mais flexível que de Regina, o bancário passa a buscar o
filho do casal na creche e ficar com ele até a chegada da esposa. Feliz por
isto, prepara mamadeiras, troca fraldas, dá banho, ouve música, inventa
brincadeiras para distrair o garoto e lhe faz dormir.
-
Sabe filho, sua mãe está se esforçando muito para progredir profissionalmente -
diz Adriano que às vezes gosta de conversar com o filho como se ele já fosse
crescido e o entendesse: - Nós dois como homens, temos que dar uma força para
ela, pois vivemos atualmente num mercado competitivo e se nós não assumir a
nossa parte, fica muito inviável para ela.
Ele
aprendeu tudo, observando com atenção quando Regina cuida do pequeno. Embora
toda a sua dedicação, reconhece que a sua esposa tem mais facilidade e
afinidade para lidar com o bebê, devido a sua sensibilidade feminina.
-
Sabe filho... O pai lhe promete que quando você crescer mais um pouco, vou lhe
levar para passear em parques, shoppings e em todos os lugares que vocês
crianças gostam.
* * *
Andréa,
visando contribuir cada vez mais para a integração social de seu amigo, passa à
noite na pensão onde Jorge está hospedado e convida-o para dar um passeio até
shopping center, outra novidade e fascinação na vida do rapaz. Ainda mais nas
noites onde tudo está iluminado e muitas pessoas transitam. Caminham por várias
lojas e corredores, chegando à praça de alimentação para tomarem um lanche.
-
Você está gostando de ficar aqui em Bauru, Jorge?
-
Estou Andréa. Apesar que eu preferia estar lá com meus pais, naquela
tranquilidade. Mas aqui também é legal. Já estou aprendendo a me virar sozinho
e já sei tomar coletivo sozinho. - E morde o seu lanche.
-
Fico contente por isto. Só que tem um probleminha que você precisa perceber.
-
O que foi, Andréa?
-
Se eu falar, você não vai ficar chateado?
-
Não, pode falar...
-
O seu modo de se vestir. Ele está meio ultrapassado para a cidade grande. Você
precisa se vestir mais esportivo e moderno.
-
Como assim, Andréa?
-
Tive uma ideia. Acabe de comer e venha comigo.
Em
uma grande iniciativa, sua amiga começa a dar um verdadeiro banho de loja nele,
comprando calças, camisas, sapatos, tênis e muito mais. Jorge, apenas carrega
os pacotes, enquanto ela vai apenas assinando os cheques. Também passam por um
salão para Jorge fazer um moderno corte de cabelo.
Ao
parar o carro em frente a pensão, ele declara:
-
Nem sei como vou lhe pagar tudo isso.
-
Você não vai pagar nada. É tudo presente meu.
-
Mas não é justo, Andréa.
-
Lógico que é Jorge. Você é um amigo muito importante para mim - declara a moça,
passando a mão em seu rosto e completando: - Tudo que eu poder fazer para lhe
ajudar, pode ter certeza que farei...
* * *
Numa
noite, Adriano e Regina estão na sala assistindo a televisão, quando toca a
campainha. O rapaz vai atender no portão. Minutos depois ele volta perplexo com
um papel na mão, acompanhado por dois homens, deixando a porta aberta.
-
Que foi, Adriano? - Indaga sua esposa, já temendo por sua aparência.
-
São agentes do Fórum. Eles têm um mandato expedito pelo juiz da Vara de Menores
para levar com eles o Carlos Augusto e entregá-lo à sua mãe biológica.
-
Não, eu não vou entregar o meu filho - declara Regina desesperada.
-
A senhora não pode reagir assim, Dona Regina. É uma determinação da lei e
precisa ser cumprida - acentua um dos agentes.
-
Pelo menos posso consultar o meu advogado? - Pode o rapaz.
-
É um direito dos senhores - autoriza o agente.
Adriano
corre até o orelhão público, mas não encontra Mário nem em seu escritório, nem
em sua residência. E o seu celular está temporariamente fora do ar. Volta
desanimado.
-
Regina, infelizmente teremos que entregar o nosso filho.
Chorando,
ela vai até o quarto de Carlos Augusto, o qual dorme tranquilo. Arruma uma
sacola com algumas de suas coisas. Pega-o no berço com cuidado, agasalha-o e
leva para sala. Adriano despede-se de seu filho, entregando-o a um dos agentes.
-
Um momento senhores - pede Mário entrando pela porta da sala: - Tenho aqui
comigo uma liminar anulando essa determinação do juiz. A criança fica.
O
advogado entrega o papel ao agente sem a criança. Esse analisa o documento,
declarando:
-
A liminar é legítima. Desculpe-nos senhores. Boa noite.
Os
agentes entregam o bebê à Regina e retiram-se. Adriano vai abraçar o amigo.
-
Que bom você ter aparecido na hora certa, Mário.
-
Foi um golpe da sorte, meu amigo. Hoje tive a curiosidade de tomar maior
ciência do caso. Fui até o Fórum ver o processo e me deparei com a ordem
expedida pelo juiz para retirar a criança deste lar hoje. Então tive que ser
rápido. Fui até o Centrinho e consegui um atestado que o garoto está em
tratamento e vocês são os responsáveis diretos pela reabilitação dele.
Considerando que o prazo da guarda ainda não venceu, levei essas duas alegações
ao juiz de plantão e ele me concedeu a liminar. Vencemos a primeira batalha,
mas ainda há uma guerra pela frente.
-
Não foi golpe de sorte não, Doutor Mário - observa Regina: - Foi a bênção de
Deus mesmo!!!
* * *
Progredir
é preciso. Numa tarde nas tradicionais reuniões realizadas no Centro de Saúde,
Dona Cidinha lança a sua grande ideia:
-
Pessoal, estive pensando muito esta semana, e acho que já estamos na época de
criarmos a nossa própria Associação.
-
Como assim, Dona Cidinha? - Pergunta uma das mães.
-
Já formamos aqui um grupo consciente de nossos objetivos. Temos pais, pacientes
adultos, muitos profissionais unidos à nossa causa. Principalmente
profissionais da área de saúde, o que aumenta a nossa credibilidade,
proporcionando apoio dentro da comunidade profissional de outros segmentos. Com
nossos objetivos traçados, temos compartilhados de problemas sociais comuns.
Cada vez mais a nossa união tem crescido, tornando-se uma organização solida.
Procuramos transmitir informações sobre tratamento e recursos comunitários e
temos pressionado as nossas autoridades para a concessão de fundos sociais.
Graças a Deus, estamos conseguindo apoiar pais de recém-nascidos com fissuras
labiopalatais e muito mais. A gente nem imagina o poder que temos nas mãos.
-
Isto é verdade! - Concorda um dentista que participa de todas as reuniões e
presta serviço voluntário ao grupo.
-
E é por isto que precisamos nos organizar melhor - acrescenta a líder do grupo.
-
Tudo bem - comenta outro pai de paciente: - Mas também temos que ter os pés no
chão. Fundar uma Associação não é tão simples assim. Isto custa dinheiro e
material. Onde, por exemplo, vamos conseguir recursos para comprar ou alugar um
local para ser a nossa sede fixa?
Um
pai mais bem financeiramente toma a palavra:
-
Eu tenho uma casa de aluguel que no momento está desocupada e nem é do meu
interesse alugá-la mais, pois inquilino só tem me dado dor-de-cabeça. Posso
gentilmente cedê-la para uso e fruto do nosso grupo. Só o fato de ver meu filho
cada vez mais reabilitado para mim é o grande pagamento.
-
E essas Associações de apoio as pessoas com fissuras labiopalatais estão
crescendo cada vez mais no mundo inteiro - comenta o clínico-geral, o qual
acompanha o grupo. Só para se ter uma ideia, ainda ontem eu estava lendo em um
jornal internacional de medicina que existem
centenas e centenas de equipes de profissionais da área. Eles estão
espalhados em países como Estados Unidos da América, Canadá, Dinamarca, França,
Japão, México, Holanda, África do Sul, Suíça, Taiwan e muitos outros.
-
Aqui mesmo no Brasil já temos várias dessas Associações - comenta Dona Cidinha.
-
E se conseguirmos fundar a nossa, isto vai até facilitar e centralizar o
trabalho de nós, profissionais voluntários - observa o dentista.
A
presença daqueles profissionais de saúde ali, já representa uma grande conquista
para Dona Cidinha. Por sua luta honesta e idealista, ela foi conseguindo
envolver não só os pais e pessoas envolvidas com o problema da fissura
labiopalatal, mas também esses profissionais, encorajando a todos a
compartilhar suas ideias nas reuniões do grupo.
* * *
Dia
após dia, na limpeza do banco, Jorge sempre percebe muitos rapazes, finos
clientes quererem se aproximar de Andréa, a qual nunca corresponde. Isto lhe
desperta um ciúmes inconsciente. Sempre se controla, não demonstrando.
Até
que certa tarde, quase no final do expediente, a moça resolve ir à cozinha
tomar um café. Está sozinha quando o gerente entra.
-
Ora, que bom encontrá-la aqui - diz num sorriso malicioso.
-
O que você quer de mim, afinal?
-
Tomar um chopinho e depois, qual sabe, algo mais - confessa ele aproximando-se
cada vez mais.
- Em pensar...
Ele
a agarra com força, tentando beijá-la.
-
Que foi, vai me dizer que você é moça ainda...
-
Me solta, seu rato - tenta resistir.
Jorge,
que por coincidência passa por ali junto com Adriano indo ambos por vestiário,
ouvem tudo e entram na cozinha. Ao ver sua amiga sendo agarrada, puxa o gerente
por trás e, num soco, joga-o ao chão.
-
Se levantar vai tomar outro - grita Adriano, revoltado com a cena.
O
gerente olha todos espantado. Andréa, com sua roupa meia rasgada e descabelada,
pega na mão de Jorge, dizendo:
-
Venha, vamos sair daqui...
* * *
Ao
chegar àquela noite ao Centro Cultural, Adriano vai direto à sala de música.
Uma surpresa lhe aguarda. O professor Geraldo, chamando-lhe em particular,
pergunta:
-
E aí, Adriano, preparado para fazer o teste de oficialização?
-
O senhor disse teste de oficialização!?
-
Sim, para mim você já está preparado. E além do mais, vou lhe indicar para um
teste para uma vaga em nossa orquestra municipal.
-
O senhor está brincando!!! - Exclama num sorriso.
-
Não, não estou. Por isto, é bom você se dedicar como nunca nesta reta final.
Foi sugerir o teste para o próximo mês.
* * *
Andréa,
já de roupa trocada e Jorge sentam-se no banco de uma praça. Ela nitidamente
ainda nervosa, desabafa:
-
Droga, aquele cretino não podia ter chegado até esse ponto!
-
Calma, Andréa. Agora já está tudo bem...
-
Já sei o que vou fazer. Amanhã mesmo vou telefonar para o nosso superior e
denunciar todo o caso. Se não adiantar nada, ponho a boca no mundo por assédio
sexual. Não tenho medo de perder o meu emprego mesmo.
-
Você não. Mas eu tenho. E acho que o
Adriano também.
-
É, além de tudo ainda envolvi vocês dois.
Por falar nisto, ainda nem agradeci você por ter me ajudado, meu amigo.
-
Agora é você que não tem nada para me agradecer.
-
Pode ficar tranquilo que nada irá acontecer com vocês. Vou fazer de tudo para
limpar suas barras. Graças a Deus que vocês apareceram naquele momento.
-
Engraçado, vocês mulheres acham-se tão modernas, mas estão sempre precisando da
proteção de nós homens.
-
Deixa de ser machista, Jorge! - Fica brava.
-
Estou apenas brincando.
-
Desculpa...
-
Sou seu amigo Andréa, mas confesso que tenho uma curiosidade com relação a
você.
-
O que foi?
-
Não, deixa prá lá. Esquece.
-
Agora que você começou, continue. Quero saber qual a sua dúvida.
-
Está bom. Eu não consigo entender como uma moça linda e do seu nível não tem um
namorado.
-
Não quero falar sobre isto.
-
É por isto que eu queria deixar prá lá.
-
Tudo bem. Você é meu amigo e vou lhe contar o meu segredo. - Vira-se para ele e
confessa: - Jorge, eu já fui noiva...
-
Noiva!? - Espanta-se o rapaz.
E
a moça começa a relatar num tão nostálgico:
-
É, noiva. Na época da minha faculdade conheci um moço da alta sociedade, sendo
que o pai dele tinha negócios com o meu. Nossas famílias começaram a querer nos
ajuntar para um casamento de conveniência. Como era um rapaz muito bonito e
charmoso disputado por muitas moças da nossa roda, eu boba na época, entrei no
jogo. Pior. Me apaixonei por ele pra valer. Mas ele nunca me respeitava; ao
mesmo tempo em que me enchia de presentes e me levava nos melhores lugares,
saia com outras moças e até com algumas de minhas amigas descaradamente. Mas eu
tinha que aguentar tudo para não estragar os negócios que iam bem entre nossas
famílias. Eu chorava muito no meu quarto, sem deixar ninguém perceber. Nesses
momentos pensava na minha mãe. Ela se casou por conveniência com meu pai. Ele
nunca respeitou ela, sempre deixando-a sozinha em casa e saindo para a farra;
sempre voltava cansado e nunca teve um gesto de carinho com minha mãe; quando
não estava envolvido com o trabalho, saia para suas urgias. Acho que eu só
nasci por um acidente de percurso. Nosso casamento foi marcado com tudo muito
luxuoso e convidados da elite. O sofrimento de minha mãe estava cada vez mais
presente em mim. Não queria ter o mesmo destino do que ela. Então, no dia da
minha cerimônia resolvi por um fim em tudo e, no momento do sim, disse não e
sair correndo da igreja vestida de noiva.
-
Você fugiu da igreja!? - Jorge espanta-se mais ainda.
-
Fugi e nunca me arrependi por isso. Não queria viver de um amor por
conveniência, o amor previsível, o amor por favor. Aquele amor onde o coração
não bate mais forte quando o outro entra na sala inesperadamente; quando não se
tem vontade de escutar a voz da outra pessoa no meio do dia; quando não se
lembra da pessoa no amanhecer ou quando o sol de põem; os dias chuvosos só
servem para se dormir mais, nem se tira o pijama e o sol atrapalha; quando a
música lenta não nos lembra nada, apenas dá sono. O amor externo é convivência,
o carinho forçado naquela frase, como se a obrigação lhe fizesse repetir: “Eu
te amo. Já te disse isso hoje?” Bom seria se esse tal de amor por conveniência
viesse sempre acompanhado de um companheirismo, de uma cumplicidade, de
carinho, de afeto, de consideração, de respeito e principalmente de amizade.
-
Admiro muito a sua coragem, Andréa. Do fundo do coração.
-
É, mas isso já passou. - Vira-se para o amigo. E você Jorge, por que não tem
uma namorada?
-
Isso é comum de entender. A minha fissura não permitia que elas se aproximasse
de mim.
-
É, mas agora sua fissura não existe mais. Pelo menos uma paixão você deve ter.
-
Acho melhor nós mudarmos de assunto.
-
Qual é? Vai fugir da raia? Tem ou não tem?
-
É, tenho - confessa sem graça: - Já algum tempo estou gostando muito de uma
pessoa. É alguém muito especial, com uma cabeça sensacional, delicada e nem sei
mais como defini-la. O que sinto por ela é algo que nunca senti antes. Um
sentimento maior que a minha própria razão.
-
Nossa, que lindo. Por que você não se abre com essa pessoa?
-
Não, ela é alguém muito além de mim.
-
Para com esse complexo de inferioridade, Jorge.
-
Não é complexo de inferioridade não, Andréa.
É a realidade.
-
Então posso saber quem é essa candidata à “deusa”?
-
Melhor não.
-
Poxa, confiei o meu segredo para você. Confia em mim.
-
Já que você que saber lá vai. Essa pessoa é você, Andréa?
A
moça toma um grande choque, ficando por alguns instantes sem ação. Se
refazendo, toma coragem, perguntando:
-
Faz tempo isto?
-
Desde as primeiras vezes que lhe via lá no clube de dança - confessa o rapaz,
relatando tudo desde o começo.
Permanecem
por alguns instantes calados. Andréa rompe o silêncio, confessando:
-
Sabe Jorge... Eu sempre quis viver um amor interno, verdadeiro e, muitas vezes,
inaceitável até por quem ama. Um amor inconcebível, irresponsável e ao mesmo
tempo tão profundo que se torna inconsolável. Sentimentos acima da razão,
contra a vontade, fora de controle. Amor que nos sufoca e que não queremos, ao
mesmo tempo, é o amor que nos faz acordar, viver, sonhar, buscar o Sol durante
o dia e agradecer às noites por nos trazer a Lua. Aquilo que nos faz amar o
calor e curtir o frio. Que nos faz rir e chorar sem motivos, ou sempre pelo
mesmo. O ser humano não é completo se não tiver esse amor; não dá para aceitar
que uma pessoa nasça, cresça e morra sem sentir isso ao menos uma vez. É o
sentimento que acreditamos que vai durar por toda a vida, ou melhor, pela
eternidade... Muitas vezes, quando não correspondido esse amor interno,
sentimos que a qualquer motivo nosso corpo vai para de respirar, nosso coração
vai parar de bater e o pior, é que quando isso acontece, não nos importamos se
tudo parar, não nos importamos se nosso fim for morrer. Seria morrer por amor,
por um amor interno. E quando o tempo passa lavando essa ferocidade, fica um
amor mais tranquilo, mas não menos intenso. Um amor mais simples e mais
sincero!
-
Muito lindo, Andréa. Mas por que você disse tudo isso agora?
-
Tenho uma coisa para lhe confessar, Jorge. Na noite anterior a sua cirurgia,
enquanto você dormia, eu lhe roubei um beijo. Mas só agora entendo esse ato.
Acho que já existia dentro de mim, mesmo que inconsciente, esse amor interno
por você.
-
Quer dizer então que tenho uma chance? - Anima-se.
-
Ai Jorge, isto é tão difícil. Ao mesmo que quero, tenho medo de me arrepender
no meio do caminho e fazer você sofrer!
-
Por favor, Andréa, vamos tentar. Se existe dentro de você esse tal de amor
interno por mim, temos tudo para sermos felizes juntos vivendo o agora. E se eu
tiver que sofrer no meio do caminho, isto faz parte da vida.
-
Você está bem consciente disto, Jorge?
-
Sim, estou...
Andréa
toma a iniciativa de dar o primeiro beijo da vida do rapaz. Depois, num lindo
sorriso, declara:
-
Que dia. Primeiro um assédio sexual. Depois uma confissão e por fim ganho um
namorado!
* * *
No
Sul, mais uma reunião é realizada pelo grupo de Dona Cidinha. Desta vez,
reuniram-se para escolher o nome na Associação. Após várias ideias apresentadas
e discursões, o nome escolhido foi: Associação Social Gaúcha de Apoio ao
Fissurado.
Mesmo
se antecipando, mas aproveitando que todos estão presentes num quórum total,
realizam uma eleição - uma realidade e necessidade de todas as associações, uma
forma de legitimação do processo democrático de participação. Sugerem e elegem
secretários e toda a diretoria, esclarecendo e apontando as responsabilidades
de cada um. Dona Cidinha é eleita presidente por aclamação, uma vez que já a
tempo vem desenvolvendo um esse trabalho com coragem e garra. Também é
discutidos meios para obter recursos. Falam sobre normas e discutem os
estatutos da entidade.
-
Acho podemos deixar para conversar na próxima reunião sobre a formalização
estrutural oficial de nossa Associação - sugere uma das mães.
-
Posso sugerir uma ideia? - Pergunta um jornalista da cidade, o qual acompanha a
reunião.
-
Sim, toda ideia é bem-vinda.
-
Porque vocês não criam um jornalzinho da sua entidade.
-
Um jornalzinho? - Surpreende Dona Cidinha.
-
É, um jornalzinho informativo. Através dele, vocês vão divulgar a existência da
Associação na nossa cidade e todo o trabalho oferecido. Pode ser uma forma de
mostrar a realidade e as necessidades das pessoas fissuradas labiopalatais,
como uma forma de combater o preconceito. Essa publicação pode ser uma forma de
relações públicas com outras Associações do país e exterior. Além do mais, pode
ser de fundamental importância, encorajando os pacientes e pais a se
inscreverem nesta Associação e se ajuntando na luta. Tomando parte, esses pais
e demais membros da sociedade se mobilizarão, tendo consciência da importância
do associativismo e da força do poder coletivo.
-
Mas isso também gera custos produzir um jornalzinho - observa o mesmo pai
pessimista.
E
o jovem jornalista propõem:
-
Eu posso conseguir uma gentileza da gráfica do jornal onde trabalho para
imprimi-lo. E quanto ao trabalho de redação e montagem, proponho-me a também a
fazer voluntariamente.
Quando
se quer, há vontade e união, tudo é possível. E assim, de ideia em ideia, apoio
em apoio, colaboração em colaboração, as coisas vão surgindo naturalmente,
dando forma a nova Associação!
* * *
De
braços dados, Jorge e Andréa entram ao banco. O gerente vem de encontro,
perguntando cinicamente:
-
Ora, ora, está de braço dado com o seu protegido, Andréa?
-
Não, estou de braço dado com o meu namorado. E seu eu fosse você não ficava tão
tranquilo assim. Hoje logo pela manhã telefonei para o nosso
supervisor-regional e contei todo o ocorrido. Ele já está se dirigindo para cá.
Antes
mesmo que o gerente pudesse esboçar uma reação, um homem muito bem-vestido com
terno e pasta na mão, muito educado, entra no banco, indo até eles.
-
Bom dia a todos...
Responderam
todos gentilmente.
-
O senhor pode me acompanhar à sala de reunião - pede o supervisor-regional ao
gerente.
Ambos
entram e começam a conversar com portas fechadas. Andréa assumi a gerência do
banco e tudo corre normal. Após uma hora, o gerente sai desconsolado, passa
pela moça dizendo sem jeito:
-
Agora ele quer conversar com você.
Ela
se dirige até à sala de reunião. Enquanto isso, o gerente vai recolhendo suas
coisas em sua mesa.
-
Dá licença - pede a moça, entrado.
-
Pode entrar, senhorita Andréa. Por favor, sente-se, fique a vontade - diz ele
simpaticamente.
-
Obrigada...
-
Primeiramente, em nome de toda a diretoria do banco, eu quero lhe pedir
desculpas pelo o que aconteceu ontem.
-
Não foi nada. Já passou.
-
Não é a primeira vez que temos esse tipo de problema com esse senhor. Então,
antes de acontecer coisa pior, resolvi demiti-lo. Se ele não respeita as nossas
funcionárias, daqui algum tempo ele poderia começar a ser importuno para as
nossas clientes. E um escândalo envolvendo o nome do nosso banco não seria nada
bom.
-
Só espero que o nosso próximo gerente seja alguém de muito respeito.
-
Não haverá próximo gerente, senhorita Andréa. Pela sua coragem em denunciar de
imediato o caso e preservar o bom nome do nosso banco, percebemos que a
senhorita é uma pessoa de caráter e decisões rápidas. Por isso, estou tomando a
liberdade de promovê-la à gerente desta agência.
-
O senhor está brincando - diz ela sorrindo.
-
É sério. Só que lhe peço que o incidente de ontem morra por aqui. A senhorita
sabe. Assédio sexual hoje em dia é um prato cheio para a imprensa e isso não...
-
Ficaria nada bem para o bom nome do nosso banco - interrompe Andréa
completando.
-
Isso mesmo. A senhorita realmente é uma pessoa de muita visão. Boa sorte!!!
Ao
assumir a gerência definitiva do banco, Andréa começa a se inteirar de toda a
situação para fazer um bom trabalho. Mexendo nos papeis na gaveta, um lhe
desperta a atenção. Então de sua mesa, ela acena para Adriano, o qual está no
caixa, chamando-o.
-
Me chamou, Andréa? - Pergunta ele se aproximando.
-
Sim, Adriano. Por favor, sente-se. Precisamos conversar um pouco.
-
Obrigado - agradece ele, sentando-se.
-
Eu ainda não tive tempo de agradecer você a ajuda de ontem.
-
Imagina, não foi nada.
-
Foi sim, Adriano. Você e o Jorge me salvaram daquele crápula. Bem, mas isso já
passou. O assunto de hoje é outro. Acabo de ser promovida à gerente desta
agência.
-
Poxa, parabéns minha amiga.
-
Obrigada. Eu estava mexendo aqui nas gavetas do nosso ex-gerente e descobri que
você já a algum tempo está esperando uma promoção. Como o nosso supervisor-regional
me deu carta branca, o meu primeiro ato será assinar esta promoção para que
você seja o meu assessor direto.
-
Está brincando, Andréa! - Exclama ele emocionado.
-
Não estou não, Adriano. Bem-vindo ao cargo.
* * *
Adriano
chega radiante em casa.
-
Posso saber o motivo de toda essa alegria? - Pergunta Regina percebendo logo de
início.
-
A Andréa foi promovida à gerente do banco e me promoveu a seu assessor direto.
-
Verdade!? - Exclama ela, num abraço de felicidade.
-
Agora as coisas vão começar a melhorar para nós.
-
Inclusive, já podemos fazer uma festa para o Carlos Augusto.
-
É, uma festa de um ano. Já é semana que vem e temos que ser rápidos.
-
Mulheres... Vocês são todas iguais. Nós homens acabamos de ter aumento e vocês
já estão inventando moda! - Brinca Adriano.
-
Não fala assim. O nosso baby merece! Aliás, nem sei se ele continuará sendo
nosso - comenta ela desanimando.
-
Deixa de ser boba, Regina. Claro que o Carlos Augusto vai continuar sendo nosso
sim.
Atendendo
a vontade de Regina, eles organizam uma festinha de aniversário de um ano de
Carlos Augusto. Em sua própria residência, na tarde de domingo, escolhem como
decoração os personagens Mickey e Minie. Encomendam um grande bolo,
refrigerantes, docinhos, salgadinhos e muito mais.
Entre
os convidados estão alguns parentes do casal, crianças, o professor Geraldo, o
advogado Mário, colegas do banco, como Andréa e Jorge, e do Centrinho, dentre
eles a psicóloga Silvana, da qual Regina está cada vez mais amiga devido ao seu
projeto. Carlos Augusto, sem entender o verdadeiro motivo de toda aquela
agitação, se diverte muito, querendo passar a maior parte do tempo no colo da
“tia” Silvana.
-
Ele continua sendo um paquerador precoce - brinca Andréa ao vê-lo no colo da
psicóloga.
Tudo
corre tranquilo e animado, quando acontece uma surpresa. Uma senhora entra na
casa com um presente nas mãos.
-
Dona Ana, que bom que a senhora pode vir - declara Regina num sorriso, indo
abraçá-la.
-
Mãe!!! - Exclama Adriano com brilho nos olhos.
-
Eu não poderia perder o primeiro aniversário do meu neto - diz Dona Ana: - Por
falar nisto, onde está ele?
-
Já vou pegá-lo - fala Regina, indo buscar o seu filho: - Vem filho. Dá um tempo
pra sua tia Silvana e vem conhecer a sua vovó.
Mário
se aproxima dela, dizendo:
-
Acho que já lhe conheço de algum lugar.
-
É possível - concorda a psicóloga num sorriso, começando um diálogo.
Enquanto
isto, Adriano conversa com sua mãe.
-
Seu pai teve um compromisso de última hora e não pode vir - justifica-se Dona
Ana: - Mesmo assim, ele mandou um grande abraço para todos.
-
Tudo bem, mãe. O importante é que a senhora pode vir.
Regina
chega com Carlos Augusto.
-
Nossa, que garotão lindo! - Admira Dona Ana, entregando o presente a Adriano
para poder pegar o neto: - Vem no colo da vovó, vem...
E
ele vai sem estranhar. Aquela tarde corre com muita alegria. Um momento muito
importante e marcante para todos, principalmente para Adriano e Regina. O
garoto ganha muitos presentes. Após cantarem “parabéns a você” e cortarem o
bolo, distribuem lembrancinhas aos convidados.
* * *
Em
um restaurante de classe média, Jorge e Andréa jantam felizes. Depois, pelo
convite dela, eles vão namorar no apartamento da moça. No sofá, Andréa,
sentindo a necessidade de tomar a iniciativa, começa com algumas carícias mais
íntimas. Jorge, rejeita, saindo do sofá.
-
O que foi, Jorge? Fiz alguma coisa de errado?
-
Eu não quero adiantar as coisas.
-
O que tem, Jorge? Nós não somos namorados?
-
Somos, mas não podemos adiantar as coisas. Aprendi com meus pais e meus avós e
sempre ouvi eles dizerem que temos que respeitar a nossa namorada até após o
casamento.
-
Mas isto é coisa do passado. Hoje os tempos são outros.
-
Só que gosto de cumprir o que prometi aos meus pais e avós.
-
Jorge, você às vezes é tão puro e sincero que até me surpreende - confessa ela,
levantando-se e indo até o namorado num abraço: - Sinceramente, apesar do pouco
tempo que estamos juntos, lhe amo cada vez mais. Não estou aguentando mais
ficar longe de você.
-
Engraçado. Tudo isto parece um conto de fadas. A gerente do banco apaixonada
pelo faxineiro - comenta Jorge de maneira inocente.
-
Só que esse conto pode ficar ainda melhor.
-
Como assim, Andréa?
-
Casa comigo, Jorge.
-
Mas eu não tenho condições para isso...
-
Eu tenho. Agora que sou uma gerente, já posso comprar um apartamento, deixando
este apart-hotel. Traga para dentro do meu lar este seu jeito simples de ser e
me faça feliz sendo o meu marido. Demorei tanto para encontrar a felicidade,
que não quero mais perdê-la. Só de você estar por perto, pra mim já será todo.
-
Só que eu tenho um sonho.
-
Qual?
-
Eu gostaria de casar lá na nossa cidade, perto de nossos parentes.
-
Por mim está tudo bem. O importante é você está feliz. Eu amo você, sabe?
* * *
As
coisas continuam acontecendo dia após dia. A Associação Social Gaúcha de Apoio
ao Fissurado continua tomando forma e, após o sonho e confiança que um grupo
tem em si mesmo, vai tornando-se algo concreto. Ela passará a fazer parte de
uma lista de associações de pais e pessoas com lesões labiopalatais, formadas
nas mais diferentes regiões brasileiras. Entidades as quais lutam para terem
respaldo e espaço assegurados para a prestação de serviços de forma direta, ou
através de parcerias com outros serviços de saúde e reabilitação. Só que todas
essas entidades contam com a retaguarda do Centrinho na formação de recursos
humanos, propiciando a descentralização dos serviços do Hospital, uma política
definida e direcionada pelo mesmo, tendo o apoio e parcerias das associações.
Deste elo de valorização e solidariedade constituída no país, gera-se o acesso
de muitas pessoas com fissura labiopalatais ao tratamento, tanto no Centrinho,
como em suas próprias regiões através dessas associações.
Dando
uma pequena palestra no Fundo Social de Solidariedade de sua cidade, Dona
Cidinha, tentando convencer o poder público a apoiar a criação da Associação,
diz a certa altura:
-
A nossa Associação permitirá dentre outras coisas, a divulgação e projetos
desenvolvidos pelo Centrinho. Criaremos manuais específicos, visando orientar
pais e pessoas com lesões labiopalatais nas diferentes fases do tratamento;
desde o nascimento, a passagem pela escola, a fase da adolescência até a
maturidade. Estaremos também identificando, buscando e divulgando todos os
recursos para o tratamento dessas pessoas no Brasil, além de procurarmos
realizar os primeiros tratamentos pré-operatórios aqui mesmo em nossa cidade,
indo o paciente para Bauru somente para a cirurgia. Nossa equipe será um
recurso imprescindível na reabilitação. Alguns profissionais já se ajuntaram a
nós, mas pretendemos conquistar outros, formando uma equipe com médicos,
dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e pessoal
de auxiliar. A partir daí, poderemos oferecer aos nossos fissurados tratamentos
de serviços ambulatoriais, uma maior preocupação com o atendimento
fonoaudiológico, médico, social e odontológico. Com o tempo também pretendemos
oferecer um apoio pedagógico à essas pessoas. Estes, meus senhores, serão os
desafios com a criação da nossa Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado.
Só que não queremos enfrentá-los sozinho; queremos sim, o apoio dos senhores.
Mais
alguns apoios são conseguidos naquela palestra.
* * *
Dia
de irem ao Fórum. Por ordem do juiz, Carlos Augusto também tem que ir.
Na
sala de espera, o casal, acompanhado pelo advogado, aguarda. De repente, Marta
chega sozinha. Dirige-se à Regina.
-
Posso vê-lo?
Mário
acena com a cabeça, autorizando.
-
Nossa, como ele está lindo!
Todos
são chamados perante o juiz. Um medo inevitável toma conta do casal.
-
A senhora, Dona Marta, não está acompanhada por seu advogado?
-
Não, senhor juiz. Estou sozinha.
-
Perante a lei a senhora não pode se apresentar perante esta corte sem o auxílio
de um profissional. Por isso, vou nomear um advogado público para acompanhá-la.
O
tempo que leva para esse profissional chegar até a sala, aumenta ainda mais a
ansiedade de todos. Enfim, o juiz inicia a sessão, analisando os laudos do
processo e ouvindo todas as partes. Após quase duas horas, o magistrado emite o
seu parecer:
-
Concordo plenamente que o menor foi até agora muito bem assistido pelo casal
aqui presente. Mas não podemos passar por cima da lei, sendo que a mesma diz
que os pais biológicos mantém direitos soberanos de seus filhos. Por este
motivo, determino que a guarda do menor Carlos Augusto seja imediatamente
reintegre à Dona Marta.
-
Mas doutor... - tenta argumentar Mário.
-
Esta é a minha sentença final. Caso encerrado.
Na
porta do Fórum, Regina despede-se em lágrimas de seu filho, entregando à Marta.
-
Por favor, cuide bem dele... E não interrompa seu o tratamento no Centrinho.
-
Cuidarei, Dona Regina.
-
Se precisar de alguma coisa, nos procure Marta.
-
Pode deixar, Seu Adriano...
Ela
começa a se afastar, mas todos percebem nitidamente o garoto chorando por não
querer ir com aquela mulher estranha.
-
Acabamos de comemorar o primeiro aniversário dele. E agora ele se vai...
-
Calma. Nós ainda temos direito a recorrer - revela a advogado batendo as costas
do amigo, o qual também chora.
* * *
Andréa
e Jorge viajam de volta para sua cidade. Ao irem na casa onde ele morava, uma
surpresa. Sua família não está mais lá. São informados que, depois que foram
mandados embora da beneficiadora, conseguiram serviço em uma fazenda da região,
transferindo-se para lá.
-
Vamos Jorge. Vamos até a minha casa descansar da viagem. Depois nós descobrimos
para onde seus pais e irmãos foram - sugere Andréa.
-
E sua família?
-
Não se preocupe. Eu dou um jeito nisto.
Eles
chegam à mansão de seus pais. Ao entrarem, sua mãe que está lendo na sala, fica
feliz.
-
Filha, que bom lhe ver - indo abraçá-la.
-
Também é muito bom revê-la, mãe.
-
Ora, ora, a filha rebelde volta ao seu ninho - diz cinicamente seu pai,
entrando.
-
Como vai pai? - Pergunta ela num tom de obrigação.
-
Posso saber o que este rapaz está fazendo em minha sala?
A
moça, abraçando Jorge, responde com firmeza:
-
Este rapaz nada mais é do que o meu noivo. E nós estamos aqui de volta para nos
casarmos.
-
Você ficou louca de vez? Isto nunca vai acontecer - declara seu pai
autoritário.
-
Será? - Indaga Andréa sem se importar com o seu pai. Vem Jorge... Vamos
descansar no meu quarto.
Mas
tarde, o casal sai pela cidade procurando informações com relação à família de
Jorge. Seguindo as dicas, chegam à colônia de uma fazenda, descobrindo a casa.
Ao bater palma, sua mãe vem atender.
-
Jorge, como você está diferente - confessa ela percebendo a ausência da fissura
e seu novo modo de se vestir.
Corre
para abraçar o filho com lágrimas.
-
Mãe, quero lhe apresentar a minha noiva.
-
Mas essa moça é filha do nosso ex-patrão! - Espanta-se.
-
Não importa. Amo o seu filho e irei fazê-lo feliz! - Exclama Andréa contente
por notar que, diferente de sua família, a dele fica muito contente ao revê-lo.
-
Por favor, entrem. Fiquem à vontade - pede a mãe do rapaz.
-
Sabe, mãe... Eu e Andréa estamos aqui em nossa cidade para nos casarmos.
O
pai e irmãos de Jorge vão chegando aos poucos e a alegria contagia a todos.
Dentro daquela simples e modesta a alegria é muito grande. A paz e união
daquela humilde família fala fundo no coração de Andréa, que cada vez mais
chega a conclusão que não é necessário ter dinheiro, aparências e posições
sociais para se ter felicidade.
Ao
irem à igreja matriz marcarem o casamento, uma surpresa ouvida da boca do
padre:
-
Bem filhos. Eu gostaria muito de poder celebrar a união matrimonial de vocês.
Mas por motivo de forçar maiores, estou impedido. Por favor, compreendam.
-
Tudo bem, seu padre - diz Andréa já imaginando o motivo.
Dirigem-se
ao cartório, onde o juiz de paz também se nega a realizar o matrimônio.
Dentro
do carro, o casal conversa.
-
O que será que está acontecendo? - Pergunta o rapaz ingênuo como sempre.
-
Com certeza, aí tem o dedo do meu pai. O senhor todo poderoso coronel já
distribuiu suas ordens para todos contra nós - revela ela, desanimada: - É
Jorge. Acho que o seu sonho de nos casarmos aqui nesta cidade terá que ser
transferido para outro canto.
Passam
aquela noite na casa da família do rapaz e na manhã seguinte regressam à Bauru.
* * *
Uma
semana depois.
-
Acho que hoje não vou à aula, Regina. Vou ficar com você.
-
Se for só por mim, não precisa se preocupar. Vou ficar legal. Afinal, nossa
vida tem que continuar. Infelizmente, sem o nosso filho. Mas tem que continuar.
-
Você está legal mesmo?
-
Estou, meu bem. Vai, não desanima não. Agora que você está quase na reta final.
Vou aproveitar para estudar um pouco.
Adriano
vai para sua aula no Centro Cultural. Regina vai até o ex-quarto de Carlos
Augusto. Encosta a cabeça no batente da porta, observando a tudo. Pensa consigo
com um grande aperto no coração: “A meu filho... Como eu era tão feliz com
você. Nem sei onde está agora...”
A
campanhia toca. Enxugando as lágrimas, vai atender. É a sua amiga Adriana.
-
Vim saber como você está passando? - Pergunta a psicóloga, entrando.
-
Vou caminhando. Por favor, sente-se.
-
Obrigada.
Regina,
confiante em sua amiga, não esconde o seu sofrimento, pondo toda a sua aflição
para fora.
-
Eu sei que não é fácil, Regina. Mas você precisa começar a se conformar. Dentro
de você existe uma mulher muito forte, que sempre lutou para conquistar seus
ideais. E refazer a sua vida, dar a volta por cima, deve ser o seu ideal
principal no momento. Pense em seu projeto no Centrinho, o qual está ajudando e
conscientizando muita gente; pense em seu marido e pense em você mesmo.
-
Sei Silvana que preciso começar a reagir. Só que o sentimento de derrota ainda
é muito grande. Peguei tanto amor por aquele garoto; fiz tantos planos para ele
e, de repente, ele me é arrancado de forma brusca. Foi uma tremenda injustiça
tirar uma criança de um lar seguro e colocá-lo num destino incerto. Nem ao
menos sei por onde anda agora.
-
Você só será realmente uma derrotada se desistir de lutar.
-
Mas não há mais o que fazer - desabafa Regina quase num desespero.
-
Hoje almocei com o Mário e ele me disse que está entrando com um novo recuso
para reaver a guarda do garoto.
-
É quase impossível, Silvana. A lei brasileira é bem clara; os pais biológicos
tem total direito de guarda de seus filhos em qualquer circunstância.
-
Regina, uma guerra é composta por inúmeras batalhas. Quando chega ao fim, e
achamos que estamos derrotados, aparece uma espécie de milagre e obtemos a
vitória. Pense nisso...
* * *
Sábado
à tarde. Animados com as conquistas que estão surgindo naturalmente, o grupo
gaúcho se reúne para mais uma discussão preparatória da fundação da Associação
Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado.
-
Bem, acredito que hoje precisamos terminar de definir as finalidades de nossa
Associação.
Sugere
o clínico-geral. O dentista, o qual ficou com o cargo de secretário-geral, fala
com a ata em mãos:
-
Segundo as pré-definições de nossas reuniões passadas, teremos como metas
principais a preocupação com a prestação dos serviços de reabilitação e com a
assistência social de nossos pacientes. Viabilizaremos tratamentos, dividindo
responsabilidades com o Centrinho. Buscaremos ainda a inclusão das pessoas com
fissuras labiopalatais na sociedade enquanto cidadãos.
-
É, basicamente são essas as metas deste tipo de associação. Se os senhores
concordarem, poderemos colocar em votação - sugere Dona Cidinha.
Tendo
o apoio de todos, inicia-se a votação e a aprovação das metas é unânime.
Emocionada,
Dona Cidinha confessa aos demais:
-
Saibam companheiros e este será apenas o começo de nossa luta. Com o tempo
ampliaremos os canais de participação de nossa Associação Social Gaúcha de
Apoio ao Fissurado. Com isto, ampliaremos os canais de participação, permitindo
a entrada de outros membros para o nosso grupo, atingindo cada vez mais nossos
objetivos, nos aperfeiçoando através do nosso trabalho coletivo!
* * *
O
casal acorda com a insistência da campanhia. Adriano de pijama vai atender.
-
Mário, o que houve? Por que tanta pressa?
-
Bom dia, Adriano. Você e sua esposa precisão me acompanhar até o Fórum agora
pela manhã. Consegui através da promotoria uma audiência extra com o juiz da
Vara do Menor e da Juventude.
-
Mas o que vai adiantar isto agora?
-
Deixe de pergunta. Vem comigo que vocês vão entender.
Na
sala do juiz, acompanhado por um promotor, o advogado começa a sua exposição,
visando convencer a autoridade máxima a devolver a guarda da criança para o
casal. A certa altura, ele diz:
-
Concordo que, estando cumprindo a lei, o senhor juiz determinou que a guarda do
menor Carlos Augusto ficasse com a sua mãe biológica. Mas eu lhe pergunto,
meritíssimo. O senhor sabe por onde anda Dona Marta e a criança? Ou pelo menos,
onde residem?
-
Não, caro doutor. Mas o endereço deles consta anexado ao processo.
-
Desculpe senhor juiz desapontá-lo. Esse endereço é falso e inexistente. Eu sei
muito bem por onde andam. Se o senhor me der licença...
O
advogado retira uma fita de vídeo de sua pasta, indo em direção a um aparelho
de televisão acoplado a um vídeo cassete em um canto da sala. Ao ligá-los,
começa a exibir um filme com cenas fortes. Marta, mal vestida, lenço na cabeça
e sacola, está caminhando pelas ruas com o filho, também maltrapilho, chorando
alto. Às vezes ela lhe dar tapas, incentivando o choro. Passando por várias
pessoas, ela pede ajuda financeira alegando não ter como alimentar a criança e
nem ter onde morar. Em seguida, ela entra no banheiro de uma praça pública.
Minutos após, sai já melhor vestida, indo até um ponto de ônibus, toma um
coletivo e parte.
-
Meu Deus, que horror!!! - Exclama Regina, encostando a cabeça no peito de seu
marido, também chocado.
-
Como vimos, essa senhora está agindo de má fé - expõe o advogado: - Ela explora
o menor para despertar a caridade alheia com fins lucrativos. Certamente, essa
criança está sendo mal alimentada para chorar mais, além dos visíveis tapas.
Desculpe a minha indignação. É inadmissível que uma corte como esta, que tem
por princípio zelar pelo bem-estar de crianças e jovens, retirou esse menor de
um casal adotante, onde ele tinha todo o conforto de um lar e assistência da
melhor qualidade, entregando a essa senhora, perante a lei sua mãe biológica,
porém com tanta má intenção, expondo o filho a tanta indignidade. Por este
motivo, peço que o senhor juiz reveja a sua decisão com relação à posse de
guarda do menor Carlos Augusto.
-
Realmente, é algo de causar indignação - confessa o juiz: - O senhor advogado
tem como me explicar como conseguiu tais imagens?
-
Sim senhor. Por acaso, ou melhor, como diz aqui a Dona Regina, por permissão de
Deus, eu estava passando no local, quando reconheci a criança. Não deixei Dona
Marta me reconhecer. Fui atrás de um cinegrafista amador amigo meu e no dia
seguinte fizemos todo o fragrante. Chequei o seu endereço e descobri que ele
era falso, sendo que Dona Marta é amasiada com um certo indivíduo, o qual a
obriga a praticar tal ato. Investigando, encontre-o embriagado num bar de
periferia e fui puxando conversa. Foi quando tomei ciência que esse senhor ao
saber que ela tinha um filho ainda pequeno, há incentivou a pedir de volta a
guarda do filho para usarem o garoto. O diálogo também foi gravado por um pequeno
aparelho que eu tinha no bolso. Então, por meio da promotoria, solicitei esta
audiência para expor-lhe as provas.
“Esse
é o tal milagre que a Silvana falou que sempre aparece na batalha final de uma
guerra”! - Pensa Regina, reanimando-se.
-
Então o senhor advogado poderá indicar com segurança o local da cidade onde
Dona Marta está agindo?
-
Sim, indicarei...
-
Vou agora mesmo pedir para que agentes do Fórum o acompanhe e traga essa
senhora o mais rápido à minha presença.
Mário
sai com os agentes. Regina e Adriano são orientados a aguardar na sala ao lado.
-
Não posso acreditar que o nosso garoto foi exposto a uma situação dessa...
-
O importante Regina é que agora tudo vai ficar bem. Tenho certeza e muita fé em
Deus que vamos ter justiça em nossa causa.
Meia
hora depois eles voltam com Marta mal vestida e com o Carlos Augusto dormindo
em seu colo.
-
Como você teve coragem de fazer isso com meu filho? - Pergunta Regina
aproximando-se com raiva.
-
Calma, Regina. Não podemos perder a cabeça agora.
Voltam
à presença do juiz.
-
Coisa feia que a senhora estava fazendo, Dona Marta - observa o juiz: - Saiba
que irei indiciá-la em inquérito e terá que responder por isto na justiça.
Quanto ao futuro do menor, considerando os bons relatórios que tenho em mãos,
entrego de volta ao casal e, em reconhecimento ao seu bom tratamento e
dedicação, assino a adoção definitiva. Caso encerrado.
Adriano
abraça fortemente o seu amigo advogado como uma forma de agradecimento. Regina
vai pegar o seu filho do colo de Marta. Carlos Augusto acorda, dando um grito
de felicidade ao revê-la.
-
Também estou muito feliz por revê-lo filho - declara Regina com lágrimas nos
olhos: - Agora ninguém nunca mais vai tirá-lo de mim.
* * *
Fim
de semana. Jorge e Andréa vão procurar o casal de amigos. Ao relatar todo o
ocorrido lá na cidade deles, a moça revela:
-
O Jorge e eu resolvemos nos casar em uma cerimônia simples, apenas no cartório.
Por isto estamos aqui hoje. Gostaríamos que você Adriano e a Regina fossem os
nossos padrinhos de casamento. Vocês são os únicos amigos que temos em Bauru.
-
Mas que honra - brinca Regina: - Claro que aceitamos.
O
casamento deles é oficializado na manhã do próximo sábado. Tudo muito simples,
com a ausência dos parentes e amigos. Acompanhados dos padrinhos, vão almoçar
em uma churrascaria. Depois partem para a lua de mel em um hotel estância.
À
noite, Andréa, levemente provocante, prepara-se para as núpcias. Percebendo
certo nervosismo em Jorge, ela o toca de leve, falando:
-
Eu sei que você é inexperiente. Mas pode ficar calmo. Eu lhe ajudo a descobrir
outro tipo de felicidade que você ainda desconhece.
Muitas
pessoas com fissuras labiopalatais encontram grandes barreiras nos
relacionamentos amorosos. Isto porque, em nossa sociedade conservadora e
cultivadora de padrões de beleza dentro da normalidade, exige-se certos “dotes
físicos” para que uma atração amorosa - ou mesmo sexual -, passa se manifestar
e se concretizar. Só que Jorge, assim como os demais, é um ser humano nem menos
e nem mais que qualquer pessoa. Há em seu coração muito amor e carinho para
serem compartilhados, sentimentos a serem transmitidos à quem se propuser a
entender sua mensagem, como Andréa faz com muita sensibilidade feminina. Sua
esposa lhe dá um longo beijo apaixonada. E, entre outros tipos de carícias,
eles apagam a noite!!!
* * *
Um
sonho começa a ser concretizado. Com apoios brotando de todos os lados, a
Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado começa a tomar forma. Seu
estatuto e metas definidas já estão prontos e a reforma da casa onde será
abrigada a futura sede também.
Dona
Cidinha, acreditando em si e na força da união, consegue envolver na questão
tanto os sujeitos da sociedade civil, quanto algumas esferas públicas. Uma
parceria cidadã de relação. horizontal, permitindo uma independência
fortalecida pela solidariedade e descentralização visando o bem-estar de
pessoas com necessidades especiais. A associação assumirá o compromisso
descentralizador do processo de reabilitação e integração desses pacientes. A
preocupação com o próximo será constante, evidenciando esse mesmo sentimento de
solidariedade, o pilar que garantirá o pleno exercício da cidadania.
A
Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado está nascendo de uma ação
conjunta e voluntária; mas certamente exigirá certo grau de profissionalismo,
garantindo a formação permanente tanto dos voluntários, quantos dos
profissionais. Nasce, juntamente com essa parceria, uma grande parceria entre a
Associação, o Centrinho e outros recursos locais, onde todos compartilharão
desse compromisso reciclador através de assossorias, cursos, palestras,
visitas, institucionais, entre outros.
Se
chegaram até aqui, com segurança podemos dizer que terão capacidade de
crescerem muito mais. Poderão buscar apoio não só de órgãos das esferas
públicas e da sociedade civil, especialmente as diferentes associações de
deficiências e outras entidades diversas, articulando-se mais recentemente com
os Conselhos Municipais, tanto da saúde, como da criança e do adolescente,
assistência social, pessoas com deficiência, entre os outros muitos Conselhos
hoje existentes.
A
Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado passará a ser mais uma na lista
de muitas já existentes no Brasil; porém, muitas outras surgirão, dando assim,
continuidade ao processo de descentralização do Centrinho!!!
* * *
Adriano
sai de casa rumo ao Centro Cultural para prestar o exame de oficialização.
Regina e seu filho brincam no tapete da sala. Uma grande chuva começa a cai
sobre a cidade. De repente a campanhia toca e ela vai atender, tendo uma
surpresa.
-
Seu Luiz!!!
-
Eu estava passando por aqui e a chuva engrossou demais. Estacionei o carro e
como fiquei com medo de permanecer dentro dele, resolvi pedi abrigo para vocês
- relata ele todo molhado.
-
Por favor, entre. Vou buscar uma toalha para o senhor se enxugar - diz Regina
fechando a porta.
Ela
vai até o banheiro. Carlos Augusto, olha para seu Luiz, engatinhando e
agarrando a barra de sua calça.
-
Não menino. Eu estou todo molhado, você está sequinho, pode ficar resfriado.
Regina
volta, entregando a toalha ao sogro e pegando o seu filho no colo. Após seu
Luiz se enxugar, Carlos Augusto continua apontando para dele.
-
Acho que ele quer que o senhor o pegue no colo - revela Regina sem jeito.
-
Então vem - diz ele esticando os braços num sorriso.
O
menino demonstra feliz no colo dele. Seu Luiz começa a acariciá-lo,
perguntando:
-
Que foi? Gostou do colo do vovô?
-
Com certeza - afirma ela emocionada com a cena: - Passamos um grande susto,
quase o perdemos, mas graças a Deus, tudo acabou bem...
Seu
Luiz senta-se no tapete e começa a brincar com o seu neto.
-
Cadê o Adriano, Regina?
-
Ele teve que ir ao Centro Cultural. Hoje é dia de exame de oficialização dele.
-
É, o meu filho desde pequeno mantém o firme propósito de ser um violinista...
No
Centro Cultural, Adriano é examinado pelo professor Geraldo e outras pessoas
ligadas à música, dentre as quais o maestro da Orquestra Municipal. O candidato
a músico oficial, toca melodias e clássicos, escalas de notas musicais e
responde várias perguntas teóricas. Após quase duas horas de exames, a bancada
se reúne para uma conversa particular, enquanto ele aguarda no outro canto da
sala. Minutos depois, o professor Geraldo vem até ele dizendo:
-
Sinto em lhe informar meu rapaz, mas você foi aprovado.
-
O senhor está brincando! - Exclama Adriano num sorriso de felicidade.
-
Você realmente é muito bom e dedicado rapaz - confessa o maestro também se
aproximando e estendendo a mão direita: - Parabéns. Por favor, procure-me em um
dos ensaios da nossa Orquestra Municipal. Quero lhe dar uma chance...
Adriano
nem está acreditando no que acabara de ouvir. De repente, ele ouve um dos
gritos de contentamento do seu filho. Ao olhar para o lado da porta, uma cena
mais emocionante ainda. Carlos Augusto está no colo de seu Luiz e Regina ao
lado deles. Vai até lá.
-
Pai, o senhor aqui!? - Surpreso.
-
Passei em sua casa durante a chuva para brincar com meu neto. Como o tempo está
indefinido, resolvemos vir buscá-lo de carro. Foi quando descobri que o seu
filho ama uma rua. Agora vou pegá-lo para passear todos os dias com o vovô.
-
Como foi o seu exame? - Pergunta Regina.
-
Foi muito bem. Fui aprovado e convidado para fazer um teste na Orquestra Municipal.
-
Eu sempre soube que você conseguiria, meu filho. Estou muito orgulhoso de você!
E
sem mais palavras, todos se abraçam em uma só emoção!!!
* * *
Continuando
sua pesquisa para escrever a monografia, Regina continua procurando livros,
artigos e vários materiais para reforçar seu ponto de vista. Em certo ponto,
ela reflete:
“Talvez
isso possa parecer uma utopia, mas precisamos construir uma sociedade melhor
para todos. Onde estaríamos conscientes das diversidades humanas; uma realidade
social pronta para atender todas necessidades de cada cidadão; onde mais
maiorias e minorias sejam igualitárias, sem qualquer tipo de privilégio ou
marginalização. Uma sociedade onde idosos, mulheres, crianças, negros, índios,
pessoas com deficiências e outros segmentos discriminados tendo os mesmos
valores, sejam naturalmente incorporados em uma sociedade inclusiva. Onde todos
pudessem dar as mãos e, mesmo com papéis diferenciados, dividisse igualmente
todas as responsabilidades por mudanças desejadas para atingir o bem comum!
Onde seriam garantido os espaços de todas as pessoas, sem prejudicar aquelas
que conseguem ocupá-los só por mérito próprios, fortalecendo as atitudes de
aceitação de todas as diferenças individuais, valorizando a convivência e a
cooperação e a contribuição que todas as pessoas poderiam oferecer, construindo
vidas mais comunitárias e justas, mais saudáveis e satisfatórias para todos.
Uma sociedade inclusiva. Será ela possível de ser conquistada?”
* * *
Estando
novamente no Centrinho com outro grupo, Dona Cidinha vai até o Setor de Serviço
Social procurar Ana Lú. Essa por sua vez está em reunião com Regina, mas com a
porta aberta.
-
Dá licença...
-
Olá, Dona Cidinha. Pode entrar - autoriza Ana Lú.
-
Foi bom mesmo encontrar vocês duas aqui juntas - observa entrando.
-
Por favor, sente-se ao lado de Regina. Mais me diga, como vai o preparo para a
inauguração da Associação de vocês?
-
Ótima. E é sobre esse mesmo assunto que vim conversar. Gostaria que você Ana
Lú, fossem fazer uma palestra na inauguração e a Regina também tomasse parte da
nossa festa.
-
Eu!? - Surpreende.
-
Sim, você Regina. Gosto tanto do seu trabalho e ideais que, certamente, a sua
presença irá enriquecer a nossa inauguração.
-
Nossa, que honra... - Brinca a moça.
-
É, sim Regina - Concorda Ana Lú: - E além do mais, será uma grande experiência
profissional para a sua pesquisa.
-
Mais o que faço para deixar o meu filho e marido?
-
Será um fim de semana, dar-se um jeito. Eu sempre dei umas escapadinhas
profissionais na minha carreira e meu marido nunca implicou. Pelo contrário,
ele sempre me incentivou.
-
Bem, Dona Cidinha. Vou fazer o possível para ir. De qualquer forma, agradeço o
convite de coração.
* * *
Cansada
de mais um dia de trabalho, Regina chega em casa, reencontrando o seu marido em
um beijo.
-
Cadê o Carlos Augusto?
-
Ele saiu com o meu pai. Daqui a pouco eles devem estar por aí.
-
Adriano, tenho uma coisa para lhe falar. Vou ter que fazer uma viagem até o Rio
Grande do Sul a trabalho. Será só um fim de semana.
-
E eu vou ficar sozinho, sem a minha esposa e o Carlos Augusto sem a mãe?
-
Por favor. É uma grande chance profissional para mim. Será a inauguração de uma
nova Associação. E depois, quando você começar a viajar nas apresentações da
Orquestra Municipal, eu também vou ficar sem o meu maridinho e o Carlos Augusta
sem o papai dele.
-
Chantagista - brinca o rapaz: - Tudo bem, pode ir. Vou pedir para os meus pais
ajudar a olhar o nosso garoto.
-
Eu te amo - agradece ela em um abraço e beijo.
* * *
Tudo
preparado para a inauguração da Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado,
numa festa preparada bem à gaúcha! A alegria é geral em todos os envolvidos,
pais e pacientes, profissionais, voluntários algumas autoridades e Ana Lú e
Regina representando o Centrinho. Dona Regina, radiante, preside a cerimônia,
realizada na sala de reunião da entidade, onde estão todos sentados.
Inicialmente, dada a palavra às autoridades, o prefeito, o qual antes se negou
a apoiar essas pessoas, agora, politicamente, é o primeiro a falar:
-
Este é um grande acontecimento para a nossa cidade. A inauguração da Associação
Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado, representa uma nova página em nossa
história. Todos os senhores e pessoas com essa tal de fissura labiopalatais são
pessoas corajosas e com muito dinamismo. Pessoas que enfrentam todos os
desafios sociais, preconceitos e rejeição decorrentes da própria lesão. Hoje,
através desta inauguração, estão constituindo uma nova forma de expressão do
grupo com muita força. Quero dizer que é um grande orgulho para a nossa cidade
e a Prefeitura a partir de agora estará à disposição dos senhores para o que
for preciso. Muito obrigado.
Aplausos.
Dona Cidinha continua como mestre de cerimônia.
-
Agora, representando o nosso querido Centrinho, convidamos a assistente social
Ana Lú, uma grande incentivadora do nosso trabalho, para fazer uma pequena
palestra.
Ana
Lú, aplaudida, vai até a frente e começa a sua fala:
-
Primeiramente, quero parabenizá-los por mais esta conquista e também agradecer
o convite para estar palestrando hoje aqui com os senhores. Todos os pais de
pessoais com fissuras labiopalatais, profissionais afins e outros membros desta
comunidade, os quais impulsionados pelo espírito da solidariedade, estão
criando a Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado, tendo a preocupação
em garantir acesso e continuidade de tratamento a um número de pessoas. Por
isto, mesmo sendo um momento de festa, peço a licença aos senhores para traçar
algumas reflexões sobre o que representa este ato. Pela minha longa experiência
nesta área, alegremente, tenho visto e vivido muitos momentos felizes como
este. Momentos de decisões e garra, quando milhares de pessoas pelo nosso país,
envolvidas pela questão da fissura labiopalatal, criam associações como esta.
Estas associações na busca de igualdade de direitos, mobilizam-se em busca do
mesmo ideal, pressionando os poderes públicos para a definição de políticas de
saúde e reabilitação para aqueles que representam. Com objetivos comuns na
procura de soluções para seus problemas, são espaços para troca de ideias e
experiências, mantendo relações de intercâmbio com o nosso querido Centrinho. O
fato dos senhores, pais e mães de pessoas com fissuras participarem de
associações como esta, representa, além de preocupação com o outro, um processo
de aprendizado, crescimento e exercício da cidadania. Suas lutas podem ser
fortalecidas através de diálogos e apoios nas dificuldades que envolvem a
fissura e a realidade de quem as têm. Se colocarmos acima de tudo a questão da
responsabilidade social para com o outro, a partir da solidariedade e união de
todas as associações e pessoas envolvidas nesta área, estaremos criando forças
para o enfrentamento coletivo do problema, sem contudo, desresponsabilizar o
Estado. Começando uma nova etapa na luta, a Associação Social Gaúcha de Apoio
ao Fissurado terá uma diversidade de serviços e atividades permitindo não só o
acesso à reabilitação de nossos pacientes, mas também um nível fundamental de
relações sociais. Dentre os trabalhos a serem realizados, estarão as visitas às
maternidades e hospitais, quando do nascimento de novas crianças com fissuras
labiopalatais, apoiando e orientando seus pais; terão que encaminhar esses e
outros pacientes aos recursos da própria comunidade, ou ao Centrinho; em outros
casos, terão que garantir e incentivar o seguimento dos casos nas diferentes
fases do tratamento. Tudo isso movidos por um só sentimento de solidariedade.
Vocês não estarão sozinhos nesta nova empreitada. Nós do Serviço Social do
Centrinho estaremos lhes assessorando, numa maneira de cooperação e orientação
de fundamental importância. Auxiliaremos tecnicamente esta diretoria, pois, sem
falsas modéstias, temos um conhecimento fundamentado tanto em teorias, como em
nossa vivência cotidiana. Lá no Centrinho, já superamos muitas dificuldades nas
realizações de nossos projetos; trabalhamos sempre no sentido de incentivar e
fortalecer novas lutas. Resultado disto, é o grande projeto de descentralização
do Centrinho, o qual se torna cada vez mais real, como por exemplo, através de
surgimentos de associações como esta. Por outro lado, nem tudo serão apenas
flores. Haverão aqueles momentos onde os senhores enfrentarão algumas
dificuldades tais como, os problemas financeiros e burocráticos, exigidos para
a busca de recursos, que se têm apresentado com barreiras para as associações.
Talvez uma das saídas para isto, será conseguir convênios com órgãos públicos
nas áreas de saúde, educação e/ou assistência social. Será importante também,
ampliar cada vez mais a participação dos a associados, mobilizando-os e diminuindo
a acomodação, num processo de conscientização, organização e capacitação,
desafiando os limites desse tipo de organização. Mas se já foi vencido grandes
dificuldades, as quais uma vez vencidas permitiram a concretização da
Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado, certamente, vocês estão
preparados para enfrentar e vencer as pedras ao longo do caminho. Mais uma vez
meus parabéns e muito obrigada pelo convite.
Ana
Lú, muito aplaudida, vai se sentar ao lado de Regina. Dona Cidinha chega perto
delas, pedindo:
-
Regina, fala também algumas coisas.
-
Eu!? - Se surpreende.
-
Ë, aquele dia você falou tão bem naquele encontro lá em Bauru.
-
Foi mesmo - concorda Ana Lú: - Vai Regina, você fala muito bem em público.
-
Mas eu não preparei nada.
-
Fale sobre seus conceitos criados através de sua pesquisa. Esta é mais uma
oportunidade de divulgar seus pontos de vistas...
-
Você confia em mim, Ana Lú?
-
Se não confiasse não estaria lhe incentivando...
-
Eu vou lhe anunciar - decide Dona Cidinha, dirigindo-se à plateia: - Pessoal,
também está entre nós a Regina, assistente social do Centrinho, a qual nos dirá
algumas palavras.
Todos
aplaudem. Regina, tomando coragem se levanta e se coloca em pé perante todos.
-
Bem pessoal. Também estou muito feliz por poder estar participando deste
momento histórico. Momento onde um grupo de pessoas que, através da fundação da
Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado, está fortalecendo o seu poder
de reabilitação e reivindicação perante a sociedade. Se buscarmos resolver os
problemas das pessoas com fissuras labiopalatais de maneira individual e contar
com nossas próprias forças, tais problemas poderão ser insolúveis. Mas numa
iniciativa como esta, onde pessoas com problemas incomuns criam uma associação,
tudo se torna mais fácil, ultrapassando a simples solidariedade para uma ação
mais ampla e concreta. Porém, já que algo novo estão começando, nada melhor do
que também se começar com conceitos novos. Por isto, peço licença aos senhores
para falar um pouco sobre inclusão social, um tema já explorado em várias
partes do mundo e que começa a chamar a atenção aqui no Brasil. Poderá até
parecer uma utopia, mas inclusão social consiste no processo pela qual a
sociedade se adapta para poder incluir em seu contexto as pessoas com
necessidades especiais. Por outro lado, essas mesmas pessoas precisam ser
preparada para assumir seus papéis na sociedade. Será uma forma de parceria
entre ambas, sociedade e pessoas especiais, visando equacionar problemas,
decidindo sobre soluções, efetuando equiparações para todos.
Os
presentes ficam todos admirados com a exposição da jovem assistente social.
Empolgada, Regina continua defendendo sua nova tese:
-
Se pegarmos na prática, a inclusão social tem como princípios básicos incomuns,
sendo; a aceitação das diferenças individuais, a valorização de cada pessoa, a
convivências dentro da diversidade humana, a aprendizagem através da
cooperação. O que talvez possa parecer uma utopia, poderá ser na realidade a
construção de um novo tipo de sociedade, mediante a transformações pequenas ou
grandes, dos meios físicos, através de adaptações, ou das mentalidades, através
de conscientização da população. Pense um pouco da possibilidade de estudarem
mais a fundo este novo conceito. Muito obrigada e meus parabéns por mais esta
conquista.
Terminada
a cerimônia de inauguração, passam para um simples coquetel, onde a alegria
está presente no rosto de todos. Ana Lú, com um copo e salgadinho nas mãos,
aproxima-se de Regina, comentando:
-
Não conhecia ainda esse conceito de inclusão social...
-
É, comecei a estudá-lo esta semana.
-
Precisamos conversar mais sobre este tema, Regina.
-
Mais do que conversa Ana Lú, precisamos é colocá-lo em prática!!!
E
assim a Associação Social Gaúcha de Apoio ao Fissurado passa a funcionar
oficialmente, numa região do país marcada, historicamente, por grandes
conquistas. Onde o folclore do Rio Grande do Sul está presente em qualquer
manifestação dos gaúchos, que dedicam-se ao culto do tradicionalismo em todos
os rincões do Estado. Nas tropeadas, na lida, nos rodeios, nas rodas de
chimarrão e nas churrascadas, na hora da música e da dança, vestidos à caráter
e desfraldando bandeiras de querências campeiras por todo o Brasil, os gaúchos
carregam com orgulho um passado repleto de glórias e conquistas. E esse mesmo
dinamismo em busca de novos ideais continua a se manifestar nos dias atuais!!!
* * *
Assistindo
a televisão à noite, Andréa e Jorge estão abraçados no sofá. De repente, ela
sente vontade de perguntar:
-
Jorge, você nunca teve vontade de ter uma profissão?
-
Sei lá. Já tive sim. Mas não dá mais tempo...
-
Por que não? Nunca é tarde pra estudar.
-
O que você está tentando dizer, Andréa?
-
Eu acho que você poderia voltar à estudar. Fazer um supletivo, por exemplo.
Depois um colégio técnico.
-
Mas hoje sou um homem casado. Tenho obrigações.
-
Eu sei disto. Só que estou ganhando bem, você pode se dedicar à estudar.
Responsabilizo-me pela casa.
-
Acho que isto não é muito justo.
-
Eu sei que você tem os seus princípios. Mas já é hora de você ser menos
machista.
-
Não sou machista.
-
É sim. Olha, vamos fazer um acordo. Enquanto você estuda, eu vou trabalhando.
Depois quando você se formar e começar a trabalhar, nossos filhos já estarão
crescendo e eu paro de trabalhar para cuidar deles - sugeri Andréa para
incentivá-lo.
-
Você quer realmente que eu estude?
-
Quero, Jorge. Quando amamos alguém de verdade, sempre queremos ver o progresso
dela.
-
Tudo bem. Vou lhe dar essa alegria.
* * *
Os
dias vão passando. Regina conclui sua pesquisa e apresenta sua monografia.
Durante a sua apresentação, ela acentua em certos trechos:
-
Nós profissionais que trabalhamos com as pessoas com deficiências das más
formações congênitas, precisamos continuar a lutar e incentivar a integração e
inclusão social deles. Isso significa acima de tudo, oferecer oportunidades
iguais, eliminando as diferenças. Oportunidade que lhes permitem ter acesso a
todos os segmentos sociais, ao mundo que lhes rodeia; o mundo físico e o mundo
das relações sociais; o mundo escolar; o mundo do trabalho; o mundo da cultura,
do esporte e do lazer.
Em
outra parte, Regina entra na questão do preconceito:
-
É bem verdade que os nossos pacientes são vítimas frequentes de estereótipos,
cuja origem são os preconceitos, ou seja, conceitos pré-existentes derivados do
desconhecimento. Geralmente as pessoas formam esses preconceitos pelo simples
fato de não terem tido antes um contato ou uma convivência com esses portadores
dessas más formações, o que pode desencadear uma série de emoções; há aquelas
que podem gerar movimentos de afastamento por medo e repulsa; mas há também
aquelas que geram movimentos de aproximação, sejam eles por pena ou fascínio.
Porém, independente de quais sejam essas emoções, insistimos na importância que
continuarmos lutando e promovendo atividades de integração/inclusão de nossos
pacientes na sociedade. E, sobretudo, continuemos a despertar as consciências
de seus familiares com relação a suas fundamentais participações na reabilitação
e sociabilização dessas pessoas!
E
Regina conclui sua exposição, fazendo uma reflexão sobre a própria profissão:
-
Cabe também a nós assistentes sociais estar-nos autoanalisando constantemente
nossas atuações para averiguar se estamos agindo corretamente dentro dos
princípios e técnicas de nossa profissão e da realidade que encontramos em
nosso dia-a-dia. Com isso, estaremos contribuindo com o aperfeiçoamento do
tratamento dos pacientes assistidos por nós e para um melhor padrão de nossa
entidade...
Aprovada,
ela recebe o certificado de especialização na causa pela qual tem lutado e
defendido os seus pontos de vista. Naquele mesmo dia, Ana Lú a chama para uma
conversa particular.
-
Fico superfeliz que você foi aprovada, Regina. Mas por outro lado tenho que lhe
dar uma notícia triste. As bolsas do Hospital terminaram e não teremos mais
bolsistas, sendo todas dispensadas.
-
Você está brincando - diz Regina tomando um choque: - Depois de toda a minha
pesquisa o meu esforço para ajudar a melhorar a condições de vida das pessoas
com fissuras labiopalatais, vai tudo acabar em nada?
-
Pois é - diz a chefe começando a sorrir: - Mas graças a sua pesquisa, o seu
esforço para ajudar a melhorar a condições de vida das pessoas com fissuras
labiopalatais, sugeri à superintendência do Hospital a sua contratação, sendo
aprovada. Seja bem-vinda como funcionária do nosso Centrinho. Parabéns por mais
uma vitória em sua vida.
* * *
Em
casa, Regina espera seu marido ansiosa para lhe contar a novidade. Ao chegar,
ela vai ao seu encontro, dando-lhe um grande beijo.
-
Posso saber o motivo de tanto amor? - Indaga Adriano surpreso.
Ao
saber da contratação de Regina, ele declara emocionado:
-
Poxa amor, você merece. O seu esforço foi reconhecido.
-
Devo isso muito a você, meu bem, que me incentivou desde o começo.
-
Imagina Regina. Só que esta sua notícia veio confirmar algo que estou com
vontade de fazer.
-
O que você está planejando, Adriano?
-
Terminei o meu curso de violino, fui promovido no banco, você contratada pelo
Centrinho, o Carlos Augusto já é nosso definitivamente, nossa vida, graças a
Deus, está melhorando cada dia mais. Decidi que, aproveitando a boa fase, vou
prestar vestibular para economia, um antigo sonho. O que você acha?
-
Não tenho nada para achar. Só tenho a dizer que estou muito orgulhosa de você e
farei de tudo para que você realize este sonho. Ainda quero vê-lo gerente de um
banco! Eu amo muito você.
* * *
Um
ano depois. Adriano já está cursando a faculdade e se apresentando aos finais
de semanas com a Orquestra Municipal. Regina cada vez mais feliz, realizando o
seu trabalho com idealismo no Centrinho. O filho do casal, Carlos Augusto,
passa por uma revisão cirúrgica para corrigir o resto de sua fissura e também a
ponta de seu nariz. Continuará com retornos subsequentes a critério das
reavaliações executadas aos 6 anos de idade, concentrando esforços no
tratamento dos problemas ligados à fissura.
Certo
dia, Regina chega mais tarde, encontrando o seu marido nervoso.
-
Você se esqueceu que eu tenho que ir para a faculdade?
-
Calma, Adriano. Tive que passar no médico.
-
Você está com algum problema? - Indaga o rapaz, mudando o tem para preocupação.
-
Não, num um problema. Só que o Carlos Augusto vai ganhar um irmãozinho.
Sem
mais nenhuma palavra, ele abraça sua esposa com muita felicidade...
* * *
Meses
depois, o Centrinho realiza uma festa no dia das crianças para os pequenos
pacientes. Pais e profissionais animados e muitas crianças correndo feliz.
Entre eles, Regina, um pouco mais amadurecida, barriga crescendo e feliz.
Carlos Augusto, com quase três anos, corre brincando com seus amiguinhos.
Enquanto
observa a alegria de seu filho, Regina pergunta a sua amiga Silvana, também
gravida:
- Você deve está muito feliz com o seu primeiro
filho?
-
Sim, muito Regina. O Mário e eu sempre quisermos ter filhos. E é interessante
que conheci o meu marido no primeiro aniversário do Carlos Augusto.
-
Foi mesmo. De lá prá cá tanta coisa aconteceu. Adriano e eu adotamos o Carlos
Augusto. A luta foi grande. Paralelo ao tratamento cirúrgico, o nosso esforço
de integração tem sido fundamental a realização de uma série de atividades
esportivas, recreativas que estimularam a socialização e a desinibição de nosso
filho, fazendo emergir suas potencialidades.
-
Percebe-se, Regina. Ele está crescendo como uma criança muito feliz e confiante
- observa a psicóloga: - Quisera eu que todas as pessoas se comportassem assim
positivamente. Que existissem mais Centrinhos pelo mundo onde, além da
reabilitação global, exista o trabalho de promoção do potencial humano de cada
paciente. Precisamos sonhar e acreditar em uma nova sociedade que saiba
respeitar todas as pessoas que tenha deficiência ou não. Onde todos sejam
vistos como pessoas com capacidades já existentes que precisam ser incentivadas
em seus desenvolvimentos. Todas as pessoas que, mesmo tendo algumas
dificuldades no desempenho de certas atividades, por ter algum tipo de
deficiência por exemplo, não deixam de seres humanos com mais potencialidades
mais desenvolvidas que outras.
Neste
momento, Carlos Augusto se aproxima de Regina, com uma rosa na mão para
oferecê-la, esticando o bracinho:
-
Pra você, mamãe...
Regina
pega Carlos Augusto no colo e, ao beijá-lo, completa, dizendo a amiga:
- A guerra foi muito grande. Mas na batalha final, apareceu um milagre vindo da parte de Deus e tivemos a vitória. Valeu a pena...!
FIM