Segunda Parte: A ROTINA DO CENTRINHO

HOMENAGEM AO CENTRINHO – Emílio Figueira / Nov. de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela - Med. 1,00 x 1,20

Seis horas da manhã. O despertador doca e Regina levanta-se correndo, indo até o quarto de Carlos Augusto.

- Acorda filho, temos que sair. - E enquanto troca-o e dar-lhe mamadeira, vai conversando com ele. Não adianta você fazer essa carinha de preguiça. Hoje o meu bebê vai fazer vários exames pré-operatórios no Centrinho. Amanhã você vai passar pela primeira cirurgia de sua vida. Se Deus quiser, tudo vai dar certo.

                Neste momento, Adriano aparece de pijama bocejando na porta do quarto.

                - Já levantou amor? Volta a dormir, ainda é cedo.

                - Não Regina. Hoje entro às 10 horas no banco. Vou acompanhá-los, pois é muita coisa você carregar o bebê e a sacola no ônibus. Além do mais, ainda é muito cedo para os dois andarem por aí sozinhos.

                Regina olha para Carlos Augusto:

                - Está vendo, o seu pai está preocupado com a nossa segurança.

                E o pequeno sorri, como se achasse graça daquilo.

 

                Chegam às 7, hora marcada para começar os exames. Na grande recepção de paciente, muita gente também aguada a vez de serem chamadas. Pessoas de todas as idades e localidades do país. Casos diferentes, mas todas com o mesmo objetivo final; a reabilitação total de seu problema!

                Logo começam a serem chamados pelo som ambiente das vozes dos recepcionistas. Ao se apresentarem, são encaminhados cada um para um lugar de exame. Regina é encaminhada para o corredor da Saúde Pública.

                Para não tumultuar o ambiente, cada paciente só pode entrar com um acompanhante. Motivo pelo qual, Adriano continua sentado na recepção. Uma senhora com duas crianças senta-se ao seu lado. A maior tem uma média de uns cinco anos e a outra dois. A mais nova tem uma fissura lábiopalatal, enquanto a outra possui apenas um sinal. A pequena resolve mexer com Adriano que corresponde brincando com ela.

                - Não incomoda o moço, filho - pede a mãe.

                - Pode deixar, minha senhora. Gosto muito de brincar com crianças.  - Pede ele, que continua com a brincadeira.

                - Você pede porque não conhecer ele. É pequeno assim, mas tem uma pilha inacabável.

                - São seus filhos?

                - Sim, ambos estão em tratamento aqui no Centrinho. Esse maior já passou por duas cirurgias e sua fissura quase não aparece mais. O outro será operado amanhã se tudo der certo com os exames de hoje.

                - Desculpe a curiosidade, mas os dois filhos da senhora nasceram com o mesmo problema.

                - Não moço. Só o maior é meu filho mesmo. Quando começamos o tratamento dele, fiquei sabendo que havia um bebê com fissura aqui no hospital a disposição para adoção. Interessei-me e fui conhecê-lo. Ao chegar no berçário, foi uma sensação indescritível; olhando para o bebê, que até então tinha sete meses, ele estendeu os bracinhos e sorriu para mim, como se pedisse: ”Fica comigo”. Apaixonei-me e resolvi adotá-lo. Já tinha experiência em cuidar de uma criança com fissura, então poderia cuidar de mais uma.

                - E a senhora está contente com o que fez?

                Pergunta Adriano, se interessando pela história.

                - Sem sombra de dúvidas... Ele foi um grande presente que ganhei. É uma criança maravilhosa, comportada e muito carinhosa. É a grande companheiro da mãe - e abraça o garoto, dando um beijo.

                - Muito lindo o gesto da senhora...

                Adriano se emociona.

                - É, mas um dos grandes motivos que me animou em adotá-lo, foi a existência do Centrinho. Sabe moço, segundo nossa Constituição Federal, a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Por isto, todo cidadão com fissura lábiopalatal, independente de qualquer condição, deveria ter direito a informação e acesso ao tratamento especializado, cabendo aos poderes públicos municipais, estaduais e federal, garantir os meios necessários para isto.

                - E a senhora quer dizer que só o Centrinho faz isto realmente funcionar.

                - Exato. Aqui todos têm o melhor tratamento de igual para igual e com uma tecnologia que inveja até o primeiro mundo. Sem se falar nos inúmeros casos que já vi sair daqui totalmente reabilitado, com cada rosto lindo e praticamente perfeito. O Centrinho realmente é “uma fábrica de sorriso”...

                - Acredito nisto. - Concorda Adriano num sorriso. - O meu filho talvez também irá operar amanhã.

                Neste momento, a mulher é chamada pelo microfone. Despede-se dele e levanta-se para sair. Adriano não se contém e faz um comentário.

                - Senhora, gostaria que soubesse que meu filho que irá operar também é adotivo. E acho que fiz a coisa certa.

                - Pois é, rapaz. Pode esperar que o tempo vai trocar este seu “acho” por uma certeza absoluta. E essa criança ainda vai trazer muitas alegrias para sua vida!

                Ela lhe sorrir e se vai.

 

                Enquanto Adriano conversa, Regina passa a criança pelos exames. Medem-lhe a pressão, temperatura, peso, medida. Carlos Augusto passa pelo pediatra. Uma enfermeira colhi o seu sangue, fazendo-o chorar pela agulhada, provocando muita dó em Regina que lhe acalma balançando-o.

                Após, passa pelo berçário para trocar a fralda e alimentá-lo, voltando para a recepção para esperar a próxima chamada. Encontra seu marido bastante pensativo, sentando ao seu lado.

                - Posso saber o que meu gato está pensando?

                - Nada de importante - responde ele, não querendo mencionar a conversa que teve com aquela senhora. Mas, sorrindo, pega Carlos Augusto no colo, dizendo - Vem cá, garotão do pai...

                Regina reage com surpresa:

                - Adriano, você nunca falou assim com ele.

                - Mas falei agora - e beija o garoto.

                Eles são chamados para passar por uma enfermeira. No consultório a mesma reconhece Regina.

                - Você trabalha aqui com a gente, não é?

                - Trabalhar propriamente não. Sou bolsista do Setor de Serviço Social, onde estou fazendo aperfeiçoamento. E agora mãe deste lindo garoto...

                - Fico contente por vocês. Bem, vou fazer algumas perguntas para saber se o estado de saúde dele estará bom para ser operado amanhã.

                A enfermeira lhe faz várias perguntas sobre o seu estado de saúde dele nos últimos dias e também desde o seu nascimento. Regina, que acompanha o caso de Carlos Augusto desde o começo, não tem dificuldade em responder.

                Adriano, ainda na recepção, ao ver todas aquelas pessoas animadas em busca de uma vida melhor, fica emocionado, através de sua sensibilidade, percebendo a dimensão e importância do Centrinho. Onde os pais de crianças e jovens fissurados são tratados com muito carinho e atenção e nunca a mercê dos conhecimentos técnicos dos profissionais, os quais não se consideram “donos dos pacientes, mas sim, pessoas preparadas para ajudá-los. Um mesmo carinho distribuído a todos os pacientes. Um lugar onde incentivam as mães a criar um íntimo vínculo afetivo com os filhos, uma interação mútua, o que permite aos pais estarem em dia com as necessidades especiais de suas crianças. Despertando algo em seu coração, fica feliz por poder também participar desse universo onde sua esposa trabalha e seu recente filho passará por um tratamento da melhor qualidade mundial.

                Regina volta com o bebê no colo.

                - Pronto. Agora à tarde vamos passar por uma reunião com a enfermeira que irá dar algumas orientações e depois com o anestesista e estamos liberados.

                - Só que vou ter que ir, amor. Está quase na hora de eu entrar no banco.

                - Tudo bem. Pode ir que a gente se vira. Como alguma coisa aqui mesmo no hospital.

                - Você tem dinheiro?

                - Sim, tenho... Não se preocupe.

                Adriano dá um beijo em cada um e se vai.

 

                Logo após almoçar, Regina volta a se sentar na recepção para esperar a chamada para reunião. Começa a observar Carlos Augusto que dorme em seu colo. Lembra de seu marido que mesmo limitado, está se esforçando para ser um verdadeiro pai. De repente, lembra-se de um trabalho que escreveu durante a época da faculdade sobre a família. E várias reflexões vieram à sua mente.

                A família é o primeiro e mais importante passo de socialização de um indivíduo, onde seus ensinamentos e condicionamentos exercem influências duradouras em sua vida, modelando o seu destino. Considerada como invenção social que auxilia parcialmente a transformação de um organismo biológico em um ser humano, a família transmite, em grande parte, as primeiras noções de linguagem, normas, valores sociais e estruturas institucionais que vão capacitar a transformação do indivíduo, sendo a  matéria-prima biológica num ser de dimensão social.  Será através da família que a criança terá modelado o desenvolvimento de sua personalidade. Podemos até comparar o ambiente familiar com “um campo de treinamento”, permitindo a pessoa a adquirir práticas cada vez maiores, além de ter desterras para desempenhar a mais ampla variedade de papeis sociais.

                Diante de daquelas pessoas, cada uma com um tipo de problema, mas todas ali com o mesmo objetivo de reabilitação, Regina começa a ampliar suas reflexões. Ela passa acreditar que o primeiro passo para a reabilitação global de uma criança com fissura lábiopalatal, será a sua própria família acreditar em suas condições totais de aprendizagem; acreditar que ela apresenta capacidade de atuação como qualquer outro ser humano. Sendo os pais irmãos e outros parentes mais ligados e frequentes na vida dessa criança, eles têm por dever serem os primeiros a acreditar, aceitar e investir em sua potencialidade. Assim a criança se sentirá querida e capaz de enfrentar as diversas situações que a vida lhe apresentará pela frente. E, diante desse raciocínio, Regina olha para o seu bebê e diz mentalmente:

                “Eu nunca vou duvidar de sua capacidade, meu filho. Estarei sempre ao seu lado nos momentos mais difíceis da vida...”

 

                Regina com as demais famílias e pacientes são todos encaminhados ao anfiteatro do hospital, onde é realizado a reunião com o Serviço Social a uma enfermeira. Essa por sua vez, exibe um vídeo sobre o Centrinho e noções gerais sobre a operação e tratamento. Depois dá várias explicações sobre regras do hospital, sobre transporte, visitas, cuidados pós-operatórios, respondo perguntas que lhe são feitas. Por fim, a enfermeira diz:

                - Por favor, não vejam o tratamento aqui do Centrinho como um favor. Ele é um direito de vocês e um dever do Estado. Nós aqui funcionários e equipe médica estamos aqui para servi-los da melhor forma possível e lhes auxiliar no que for necessário. Contem sempre com a gente...

                A enfermeira chama cada um que vai recebendo uma folha com o nome do médico que realizará a operação, data, horário e outros dados. Também passam por uma nutricionista que questiona o habito alimentar de cada paciente, para que tudo seja controlado durante o seu período de internação.

                Regina vai esperar em outra recepção a vez de passar pelo anestesista para que o mesmo a oriente o horário da última mamada de Carlos Augusto antes da operação.

 

* *  *

 

                E várias histórias e situações envolvendo pessoas com fissuras labiopalatais continuam a brotar pelo Brasil e no mundo inteiro. Assim, vamos encontrar mais uma próxima personagem em uma cidade da zona do agreste do Nordeste - a qual não precisa ser identificada pelo nome, mesmo porque o caso que iremos narrar semelhante a muitos que ocorrem em qualquer cidade brasileira: A da menina Iraides.

                Filha de família muito pobre, Iraides é uma criança de quase sete anos de idade, mas aparenta ter a estrutura de quatro devido a dificuldade e a desnutrição daquela região nordestina; franzina, tem a pele queimada do forte sol, cabelos crespos e no rosto sofrido a grande marca que a distingui das outras crianças: uma fissura labiopalatal e, conhecida naquela região como “lábio-leporino” ou “goela de lobo”. Além do comprometimento estético da menina, ela tem outros distúrbios como a mastigação devido a sua anomalia dentária; a articulação das palavras é outro aspectos funcional, motivo pelo qual ela encontra grandes barreiras de comunicação interpessoal pois, como consequência, a voz anasalada, tendo a ininteligibilidade das maiorias das palavras. Iraides usa um único e surrado vestido de alça e anda sempre descalças.

                Moradora de uma região de um povo de cultura muito simples, onde cultivam muitos mitos e superstições, a menina enfrenta alguns problemas devido ao seu defeito estético. Quando começam a desabrochar as tendências de sociabilidade, processo mais que normal na vida de qualquer pessoa, Iraides e seus pais começam a sentir o peso do preconceito social. Ela deseja ter amizades, necessidade de conviver com outras crianças - também tendência natural e irresistível de participar de agrupamentos infantis. Só que as demais crianças são impedidas pelos pais de brincar com aquela criança com algo “estranho” em seu lábio. Ou as poucas que brincam com Iraides, fazem-lhe perguntas constrangedoras - pois no mundo infantil sempre surgem as curiosidades das outras crianças que observam e indagam ao portador as razões da malformação. Sentindo tudo isto devido a sua sensibilidade de criança, lamentavelmente, a consequência primária disso foi o isolamento espontâneo de Iraides, preferindo ficando apenas em casa cuidando e brincando com seus irmãos mais novos enquanto seus pais trabalham, abstendo-se do convívio em grupos numa segregação voluntária.

                Iraides mora numa região de muita pobreza e miséria, onde de tempo em tempo a seca assola todo o Nordeste. Nessas épocas as paisagens são desoladas, onde só se vê caatingas, açudes secos, esqueletos de bois, cactos, poeira cinzenta e o mais triste de tudo: pessoas esquálidos e doentes, procurando e tentando com as autoridades alguma coisa para comer. Uma área que convive com uma vegetação bastante heterogênea composta de árvores como o juazeiro e imbuzeiro, ás cactáceas como o xiquexique e mandacaru e a família de ervas ou plantas rasteiras, as bromeliáceas, como por exemplo, o caroá e a gravata. Na região os solos normalmente rasos e arenosos e com clima de baixa pluviosidade.

                Certa noite, enquanto em um dos cômodos da casa sua mãe - uma mulher de uns trinta anos, mas envelhecida por sua difícil rotina, com um vestido sem manga e lenço na cabeça, de rosto sofrido mas com muita garra para continuar lutando para criar seus filhos -, prepara o jantar com as pouca comida que ainda resta em estoque. Iraides brinca com seus mais quatro irmãos no outro compartimento da casa. Seu pai - um homem magro e alto, barba por fazer, roupa simples chapéu e sapato de couro, o qual sempre trabalhou no sertão como tocador de gado e hoje é servente de pedreiro -, chega, pega água na moringa com uma caneca de alumínio, senta à mesa e, pensativo, fica observando  a sua mulher. Minutos depois ele revela:

                - Sabe mulher, estive pensando. Nossa filha já está com quase sete anos e vou matricular ela na escola.

                - Prá que isso agora, Tonho? - Pergunta continuando o serviço.

                - A menina precisa estudar.

                - Ela precisa é aprender todo a serviço de casa para que depois arranje um bom casamento. Função de mulher e cuidar de casa, fazer os caprichos de seu marido, gerar filhos pra ele e suportar tudo calada. Isso sim... - Declara a simples mulher de acordo com a concepção a qual foi criada.

                - Não fala besteira, Joana - fica bravo. - Vamos preparar a nossa filha pra tudo isso e ela vai acabar apenas sendo uma dona-de-casa e tendo uma vida miserável como a nossa. - E seu Tonho volta a sonhar: - Não, nossa filha tem que estudar. Quem sabe ela ainda vai ser uma professorinha.

                -  Bobeira sua - continua contra.

                - Está decidido. Amanhã vou lá na escola falar com a diretora e matricular a Iraides.

                A família de Iraides se assemelha a muitas outras que fugindo das localidades nordestinas afetadas pela seca, incharam as periferias das grandes cidades e capitais daquela região. Viveram a época quando o pessoal com fome, saqueavam e depredavam as feiras e simples casas de comércio das pequenas cidadezinhas. Visando atenuar parte do desespero e o êxodo, o Governo Federal organizava frentes de trabalho, atendendo a mais de dois milhões de pessoas espalhadas por todos os Estados nordestinos. Nessas frentes - onde se quebrava pedras, construindo ou reparando pequenos açudes e poços em propriedade particulares de fazendeiros da região -, os flagelados recebiam um terço do salário mínimo por tal serviço.  Devido ao baixíssimo nível de vida e de remuneração para esses pobres trabalhadores, uma classe dominante aproveitou-se da má situação, passando a concentrar em suas mãos parte considerável das riquezas. Desesperados - sendo que a fome e subnutrição atingiu em larga camada essa população menos favorecida -, esses migraram para o Centro-Sul ou para a Amazônas em busca de melhores condições de vida. Assim, em busca principalmente de melhores alimentações e água, grande parte deles foram residir em bairros afastados nas periferias, submetendo-se a subempregos, como no caso de Seu Tonho...

 

* * *

 

                Na manhã seguinte, às sete horas eles se apresentam novamente no hospital. Adriano consegue no banco onde trabalha, uma autorização para ficar o dia com sua esposa para acompanhar a operação de Carlos Augusto.

                Na recepção, Regina recebe um avental e um crachá de acompanhante, entrando com o seu bebê o Centro Cirúrgico. Lá ela troca o filho com as roupas padrão do hospital e uma enfermeira lhe aplica uma pequena injeção para fazê-lo dormir, o que já faz Regina sentir uma apontada em seu coração. Em seguida, Carlos Augusto é levado de maca para a sala de cirurgia e sua mãe é orientada ir para o Setor de Recreação do hospital.

                Nesse Setor, são encaminhados todos os acompanhantes dos pacientes que estão na sala de cirurgia. Lá, as recrecionistas dão várias atividades como pintura de guardanapo, bordado, crochê, dentre outras, visando controlar a ansiedade e o nervosismo dos mesmos.

                Mas Regina prefere ficar na recepção com seu marido. Chegando, ao vê-lo, o abraça forte, colocando a cabeça em seu peito e começando a chorar. Adriano passa a mão em sua cabeça para acalmá-la.

                - Fique tranquila amor. Vai das tudo certo...

                - Eu sei, Adriano. Mas ele é tão pequenino que dá dó...

                - Mas não é melhor assim?

                - Sim, é. Em bebês começam à partir dos três meses de idade as diversas intervenções cirúrgicas de fechamento do lábio e recomposição do palato.

                - No caso do Carlos Augusto, quanto tempo esse tratamento pode levar?

                Pergunta Adriano, percebendo que o diálogo diminui o nervosismo de Regina. Ela lhe responde enquanto vão se sentar na poltrona.

                - Ainda não podemos saber ao certo. De modo geral, um tratamento lento e intenso de reconstrução orgânica e psíquica para remover as barreiras físicas e sociais que podem atrapalhar o desenvolvimento do paciente. Pode levar de 12 a 18 anos, mas quanto mais cedo iniciar, melhores serão os resultados como é o caso do Carlos Augusto. Ele também necessita de cuidados especiais que significam nutrição, higiene e condições clínicas perfeitas.

                - Esses cuidados que, mesmo com nossas limitações, já estamos oferecendo a ele.

                - Com certeza, Adriano. E vamos ter forças para lhe oferecer muito mais.

                - Sem dúvida, Regina. Deus está do nosso lado e nos dará muita sabedoria para isso.

                - Foi Ele quem pôs o Carlos Augusto em nosso caminho. E certamente está gostando da nossa dedicação nesta missão.

                As horas vão passando. Adriano convida a esposa para comer ou beber algo, mas ela prefere não sair dali. Percebendo que aquele diálogo está fazendo bem à Regina, uma vez em que desvia parte de sua atenção da cirurgia, ele resolve continuar perguntando:

                - Regina, você sendo uma assistente social que já convive algum tempo com a realidade daqui do Centrinho, fale-me mais sobre o tratamento das pessoas com fissuras...

                - É Adriano. As cirurgias são vitais, mas resolvem apenas parte das dificuldades enfrentadas por essas pessoas, principalmente quando a criança está na fase de crescimento. Por este motivo, as intervenções cirúrgicas podem ser consideradas apenas correções estéticas provisórias. Com o passar do tempo, essas cirurgias vão sendo retocadas e complementadas com outras formas de tratamentos especializados.

                - Que tipo de tratamentos especializados são esses?

                - Essas pessoas passarão ao longo de seu tratamento pela mão de outros especialistas, tais como: o pediatra que consulta de maneira geral os pequenos pacientes aqui do Centrinho; o otorrino também será imprescindível devido os problemas das vias aéreas (ouvido, nariz e garganta), o que é comum nos fissuras, uma vez em que provocam cansaço, deficiência respiratória e infecções; a recuperação e restauração dos dentes ficaram a cargo do tratamento odontológico, responsável também em auxiliar pela boa higiene bucal de forma de prevenir cáries e infecções; na ortodontia será cuidado do planejamento da arcada dentária e maxilar, visando garantir uma reabilitação conjugada da estética bucal e da fala; a fonoaudiologia busca corrigir as distorções e ressonâncias da fala, bem como dificuldades fonéticas e de articulação das palavras; já a psicologia completará o tratamento, dando suporte para que a pessoa com fissura aceite bem o período de internação, além de adquirir uma melhor experiência para uma melhor adaptação ao melo social, dando aconselhamento psicológico; o setor de enfermagem, responde pelos cuidados pré e pró-operatório, orientando pacientes e familiares sobre cuidados de higiene, alimentação e saúde; o setor de recreação pedagógica estimulará o paciente às várias atividades durante o período de internação no hospital tirando-os assim do clima hospitalar, além de permitir aos estudantes o acompanhamento do currículo escolar; por fim, temos o setor de assistência social onde atuo, cuidando para que os pacientes aprendam normas de convivência em grupo, adquirindo a autoconfiança necessária para a vida em sociedade. Também no setor de Serviço Social, realizamos entrevistas pessoais, encaminhamento de pacientes para cada especialidade de acordo com a sua necessidade, contatos telefônicos para agendamento ou a procura de pacientes faltosos, orientação e esclarecimentos aos pais e encaminhamento a albergues para pacientes vindo de outras cidades ou estados. Basicamente, esse é um pequeno resumo do Centrinho.

                - Nossa, que aula...! - Brinca Adriano.

                - É bem, depois que me apaixonei pelo Carlos Augusto, comecei a me informar ler muito sobre o assunto. O tratamento poderá ser demorado, mas ele será uma criança saudável, reabilitada e linda.

                - Assim como o pai.

                Regina lhe dá um tapinha, brincando:

                - Convencido...

                Uma enfermeira entra na recepção e vai até eles, anunciando:

                - Regina, a operação de seu bebê terminou e foi um sucesso.

                - Graças a Deus!!! - Exclama Regina, abraçando o seu marido.

                - Ele já está no pós-operatório e logo voltará da anestesia. Você pode ir ficar com ele - conclui a enfermeira.

                Regina se despede de seu marido com um beijo e entra na unidade de internação para passar a noite com seu filho. O berçário tem um ambiente acolhedor, onde a decoração diferente da habitual, criando clima positivo. Assemelhando a um quarto de bebê há papeis de paredes com desenhos e cores para atenuar a parafernária de tubos e fios, ruídos eletrônicos, odores hospitalares. A descontração do ambiente permite diminuir o trabalho tenso e cuidadoso, dos que lá trabalham sempre sorrindo e atenciosos! 

 

* * *

 

                Na manhã seguinte, seu Tonho vai despertar Iraides.

                - Acorda filha. Nós temos que ir até a escola.

                A menina levanta meia sonolenta, enquanto os demais membros da família ainda dormem. Coloca um vestido melhorzinho e um par de chinelos. Ambos tomam um ralo café e se atiram pelas ruas rumo a escola municipal mais próxima...

                Ao chegar ao portão do colégio, param por alguns instantes e seu pai contempla o prédio, pensando: “Um dia a minha filha ainda vai ser professora aqui...” E entram rumo à secretária.

                - Pois não?  - Pergunta uma moça com um sorriso simpático.

                Seu Tonho tira o chapéu de couro apoiando-o no peito, respondendo:

                - Eu gostaria de matricular a minha filha nesta escola.

                A moça olha para o rosto de Iraides, achando estranho aquela fissura. Sem jeito, ela diz:

                - As matrículas agora são diretamente com a diretora. Se o senhor me der licença, vou chamá-la.

                E se retira rapidamente. Araides e seu pai ficam parados no mesmo lugar. Minutos depois a moça volta acompanhada de uma senhora de meia-idade, óculos e cabelos começando a clarear, a qual se apresenta como a diretora da escola. Seu Tonho manifesta a ela a grande vontade de matricular a filha. Mas recebe uma resposta a qual não espera.

                - Sabe o que é meu senhor, gostaria muito de lhe ajudar, mas é tarde demais. Todas as vagas já foram preenchidas e o ano letivo já está para se iniciar. Espero que compreenda.

                - Tudo bem. Mesmo assim sou grato a senhora. Passar bem - agradece e deseja Seu Tonho se retirando com a menina.

 

                Frustrado o pai de Iraides caminha de mão dada a ela pela rua. Àquela desculpa da falta de vaga realmente lhe foi convincente. Terá que esperar até o próximo ano para matricular a filha em uma escola.

                A certa altura os dois encontram Manuel, um antigo companheiro seu da época que tocavam gado juntos, que venceu na vida e hoje é vereador na cidade.  Porém, a amizade de ambos continua como nos velhos tempos. Motivo pelo qual o vereador cumprimenta o amigo, mas já de início percebe que algo aborrece o amigo, perguntando:

                - O que aconteceu homem?

                Tonho lhe conta o acontecido, demonstrando a sua frustração.

                - Mais como pode ser isto se ainda ontem li no jornal que está sobrando vagas em quase todas as escolas do município devida a evasão dos retirantes. - O vereador indignado, comenta. Algum tempo pensativo, olha para o rosto da jovem, entendendo o real problema: - Já sei o que houve. Venham comigo.

                Os três voltam à escola, indo direto à secretária, onde Manuel pede para que chamem a diretora. Minutos após ela chega dizendo num forçado sorriso:

                - Vereador Manuel, que prazer tê-lo em nossa escola. - Mas ao ver Seu Tonho e Iraides junto a ele, surpreende-se.

                - Minha estada aqui não é nada oficial, senhora diretora. Vim apenas matar uma curiosidade. Esse pai acaba de me informar que tentou matricular sua filha nesta escola, mas não há vagas disponíveis. Só que, como eu disse a ele, ainda ontem li no jornal que está sobrando vagas em quase todas as escolas do município devido a evasão dos retirantes. Então eu gostaria de saber quem realmente está falando a verdade.

                - É, realmente o nosso quadro de alunos já está completo para a primeira série, senhor vereador - declara a diretora que começa a soar.

                - Então, se não for impertinência de minha parte, posso dar uma olhadinha no seu livro de matricula, senhora diretora. Mesmo porque em tempo de crise como este, onde muitos alunos estão deixando a escola para atuarem nas frentes de trabalho, o simples fato da senhora ter conseguido preencher tal quadro é digno que eu faça uma moção de aplausos na Câmara Municipal em sua homenagem. Por isto, eu gostaria de atestar tal proeza! - Pede o vereador com ginga política.

                Experiente, Manuel nota logo de início qual a verdadeira intenção da diretora. Fatos como esses são corriqueiros em que toda sociedade sem exceção - embora muitas vezes o discurso oficial se diz muito aberto à integração de todos, sem qualquer atitude preconceituosas -, isso quase nunca funciona na prática. Atitudes explícitas de discriminação existem em todos os segmentos sociais. Só que, infelizmente, suas consequências mais lamentáveis são as situações de marginalidade social.

                A diretora sem saída e tremula, confessa:

                - Por favor, tente intender senhor vereador...

                Manuel a interrompe, dizendo com voz firme:

                - A única coisa que eu entendo senhora diretora, é que estudar à partir dos sete anos de idade é um direito constitucional aqui neste país, independente de cor, raça, situação econômica, seja a criança portadora de alguma deficiência ou não. E fatos como esse não cairá nada bem ao ouvido da Delegada de Ensino, em um pronunciamento em nossa Câmara ou se preciso for, tornar-se manchete de jornal.

                A diretora sem qualquer outro argumento, vira-se para o Seu Tonho pedindo:

                - O senhor tem algum documento da menina para me emprestar.

                - Tenho sim, dona.

                Ele, mesmo sem ter entendido as entrelinhas daquela conversa, retira do bolso da camisa o registro de nascimento de Iraides, entregando alegre à diretora.

                - Por favor, senhores. Aguardem aqui, que vou lá dentro pegar as folhas para serem preenchidas.

                E assim a matrícula da menina é efetuada...

 

* * *

 

                No berçário, Regina vê que há suturas no lábio de seu filho. Há também esparadrapos em suas bochechas para diminuir a tenção nas suturas. Carlos Augusto está com tubos plásticos em seus bracinhos para evitar que dobrem e arranque os curativos.

                Uma enfermeira vem oferecer água ao bebê, pois Regina foi instruída a voltar à alimentação própria para a idade dele de maneira líquida batida no liquidificador, frutas batidas com leite e suco - evitando mamadeiras e chupetas durante o período determinado. Essa alimentação deve-se usar uma colher, observando sempre para não ferir a cirurgia, sendo sempre o bebê mantido sentado, alimentado vagarosa e cuidadosamente, deixando tempo suficiente para que ele arrote. Após cada alimentação deve ser ministrado água suficiente para limpar sua boca.

                No outro dia, Carlos Augusto tem alta e Regina telefona para Adriano, que vêm buscá-los no Centrinho para levá-los para casa.

                Mais tarde, enquanto observam o bebê dormindo no berço, o casal conversa baixinho.

                - Me dá uma tremenda dó vê-lo nesse estado - confessa Adriano.

                - Realmente, coitadinho. Eu trouxe um manual do hospital com algumas instruções para facilitar a recuperação dele.

                Regina vai até sua bolsa, pega o manual e trás para o marido que, começa a folheá-lo, exclamando:

                - Interessante...!

                - É, muito. Por exemplo. Para facilitar a cura e prevenir cicatriz indevida, a sutura deve ser limpa, retirado as cascas as quais poderão ser formadas. Poderemos utilizar cotonetes ou gazes suturados em água oxigenada, seguido com óleo mineral ou unguento especial para manter a área lubrificada.

                - Aqui no manual também diz Regina, que deve-se tomar cuidado para que a criança não esfregue as suturas no travesseiro ou no lado do berço.

                Carlos Augusto começa a acordar de vagarinho e a chorar pelo aquele curativo em sua boca e seus braços presos. Sua mãe paga-o e começa a tentar a acalmá-lo sem sucesso. Sem saber o que fazer embalando, ela reclama:

                - Droga, ele não pode chorar tanto assim, pois o choro pode forçar os pontos. Acho que vamos ter que sedá-lo novamente.

                - Calma meu bem, tive uma ideia.

                Adriano sai com pressa e volta com seu violino. Chegando perto de seu filho, começa a tocar, misturando o som com o choro. A melodia começa a entrar nos ouvidos de Carlos Augusto, o qual vai acalmando, diminuindo o choro e lentamente volta a dormir. Regina coloca-o de volta no berço e o casal sai do quarto.

                - Pelo menos o meu violino já serve para alguma coisa. Já tenho um admirador; meu filho - brinca o rapaz.

                - Dois. A sua esposa também lhe admira e lhe ama cada vez mais - declara Regina abraçando-o.

 

                Cinco dias se passaram sob aqueles cuidados especiais e eles voltaram ao Centrinho, onde os pontos são removidos. Regina volta a ser instruída para alguns cuidados extraordinários durante as três primeiras semanas, tais como a limpar o lábio e evitar que a criança coloque as mãos na operação. A enfermeira enumera claramente o que deve ser feito, com um esquema de eventos que poderão acontecer, esclarecendo-lhe:

                - A cicatriz permanecerá vermelha por mais ou menos um ano. Apenas depois desse período, é que saberemos se o seu filho terá a necessidade ou não de outras cirurgia. Há casos em que aparentemente apresenta um resultado prefeito na época da cirurgia. Mas depois será necessário dispensar alguma revisão antes que a criança vá para escola. Agora, aquelas que apresentam um resultado imperfeito na época da primeira intervenção cirúrgica, poderá melhorar com o crescimento e se tornar prefeita mais tarde. Com relação ao seu filho, vamos esperar um pouco para um diagnóstico mais exato.

 

* * *

 

                Primeiro dia de aula. Iraides levanta-se feliz e ansiosa para ir à escola, sentindo uma necessidade interna de aprender. Parece que inconscientemente ela já sabe que a escola será um importante meio de socialização para si; será onde aprenderá a nossa cultura e nossa herança intelectual; aprenderá a manter o respeito pelas autoridades, pelos conhecimentos e pelas realizações; é a escola que nos encoraja a polidez, a correlação e a linguagem adequada, preparando a pessoa para uma ocupação ou profissão. No caso de Iraides - que tem uma malformação congênita e isolada do convívio social -, a escola, teoricamente, poderá ter um significado especial, ajudando-a a desenvolver-se pessoal e socialmente através da extensão de seu campo de contatos.

                 Seu Tonho, antes de ir para o seu trabalho, faz questão de levá-la até o portão. Lá, outras crianças também estão chegando feliz acompanhadas de suas mães...  Muita alegria e descontração.  O simples homem aguaicha-se diante da filha, recomendando:

                - Agora Iraides, você vai ficar aqui para aprender a ler e escrever para ser alguém na vida. Se comporte direito, respeite os seus coleguinhas e obedeça a professora, conforme eu lhe ensinei lá em casa...

                Iraides, agora sozinha e com seu vestido simples, caminha pelo pátio, sentando-se em um banco e observando a tudo. A menina que viverá até ali um isolamento voluntário, está agora no meio de todas aquelas crianças. Inconscientemente, ela começa a tentar vencer o constrangimento de se apresentar entre as outras pessoas.

                Algumas crianças começam a passar por ela, observando-a sem qualquer manifestação. Muitas vezes a curiosidade voluntária do outras crianças pode até criar um ambiente desagradável; só que antes disso começar a acontecer, a professora - uma moça baixa, rosto redondo de óculos, cabelo cumprido e clareado, calça jeans e avental  -, chega ao pátio, chamando:

                - Crianças, está na hora de entrar...

                Todos começar a entrar em fila. A professora vai até a menina que continua sentada sozinha num banco de cimento, abaixa e pergunta num sorriso:

                - Posso saber o seu nome, amor?

                - Iraides...

                - Então você também é minha aluna. Vem comigo...

                A professora a leva pela mão com carinho. Dentro da classe, cada aluno vai assumindo a sua carteira. Tentando evitar alguma coisa ou para poder auxiliá-la melhor, a professora coloca Iraides sentada perto de sua mesa.

                - Atenção meninada. Eu sou a tia Jane e serei a professoras de vocês durante este ano. Estou muito contente por isto e podem esperar que terei muitas boas para ensinar para vocês.

                Após se apresentar, Jane começa a dar atividades para classe. Chega até Iraides com uma folha em branco, colocando em cima da carteira e perguntando:

                - Você quer fazer um desenho?

                - Eu não sei desenhar, professora - declara a menina, num gesto tímido.

                - Mas tenta, que você vai aprendendo - incentiva a professora.

                Hora do recreio. Todos correm para o pátio alegres com sua lancheira. Menos Iraides que de família humilde, não tem condições de levar merenda para escola. Prevendo isto, sua professora também sai ao pátio e ensina a menina a entrar na fila para pegar a merenda que é oferecida pela escola; comida esta a qual a menina come com muito gosto, saciando a sua fome. Feliz por poder ter ajudado, Jane a deixa ali na mesa do refeitório e volta para a sala dos professores para também tomar o seu café.

                De repente, um grupo de meninas passa por ali, quando uma observa, apontando com a mão:

                - Olha, ela tem boca de lobo...

                 As demais riem. Iraides sente uma pontada em seu coração, porém devido a sua timidez, não reage e nem responde nada.

                Geralmente, o espírito de crítica, que começa a desabrochar com sua forma mais contundente, que é apelido. Haverão algumas reações distintas ou desencadeia-se um sentimento de revolta, ou um alheamento e indiferença pelos atrativos do meio. Isto ocorre devido a atitudes, receios, estigmas, comportamentos, preconceitos e também o mais grave de todos, ou seja, a discriminação, por serem reações mantidas conscientes ou inconscientes com relação às pessoas que apresentam essas limitações. E as crianças não deixam de ser diferentes que os adultos, mesmo sendo as suas reações mais espontâneas!

                O sinal para voltarem para classe toca e aquela manifestação não passa disto.

 

* * *

 

                - Falei com o patrão hoje. A coisa não está nada boa aqui na fazenda e vários colonos, assim como nós, serão dispensados Só que, em consideração a todos esses anos que trabalhamos aqui, ele nos reempregará em sua beneficiadora de alimentos na cidade. É, infelizmente teremos que mudar para lá...

                Essas palavras são do senhor José, pai de Jorge, um rapaz paranaense de 23 anos que nasceu com fissura labiopalatal. Nem alto, nem baixa, franzino, pele queimada pelo Sol da roça, cabelo curto com um corte simples, rosto magro, olhar tímido, nariz fino e boca média. Veste-se diariamente a roupa de trabalho. Sempre tímido, relacionando-se apenas com aquelas pessoas que vivem a sua volta e tem muita aptidão para as coisas do campo.

                Seus pais, seus irmãos e Jorge são pessoas simples do campo, onde sempre trabalharam e moraram na pequena cidade de Jundiaí do Sul. Pela ingenuidade e falta de informação, nunca procuraram tratamento para o filho. O rapaz cresceu no meio daqueles colonos, pessoas também simples, as quais nunca lhes discriminam pelo seu problema. A não ser alguns imprevistos na pequena escola ali mesmo na fazenda com relação a outras crianças, o que lhe fez logo deixar os estudos apenas se alfabetizando - além do que tinha também que ajudar o seu pai na roça.

                Viveu até aquela data um praticamente isolamento social, sem conhecer o impacto de valores culturais e sociais em relação a sua malformação congênita. Evitou um contato maior e direto com sua comunidade, onde normas culturais de beleza afetam percepções da face, determinando as imperfeições, limitando-se as oportunidades. Tal isolamento também lhe impediu de participar de grupos de companheiros, sendo que esses grupos poderiam ter várias funções importantes em sua integração social, proporcionando-lhe experiências em tipos igualitários de relações, de aprender a cultura popular e demais coisas que, mutualmente, poderiam ter lhe ajudado tornar-se independente dos pais e de outras figuras de autoridade. Mas a mudança para a cidade, significará uma nova fase na vida de Jorge...

 

* * *

 

Os dias vão passando e tudo corre bem com Carlos Augusto, graças a grande dedicação e o profundo amor que Regina desenvolve por ele. Mas a liberação a que a moça ganhou de sua supervisora no hospital está terminando e a assistente social tem que voltar às suas atividades no Centrinho. Com relação ao seu filho, não haverá grandes problemas, pois ele poderá ficar no berçário dos filhos dos funcionários durante a jornada de trabalho.

                De volta, vai se reapresentar a Ana Lú, a qual lhe recebe com a simpatia de sempre.

                - E aí, Regina, preparada para voltar para nossas atividades?

                - Preparada e animada como nunca, Ana Lú. Essa criança trouxe outro sentido para a minha vida e para o Adriano.

                - É, percebe-se. Acredito que você irá até desempenhar melhor o seu papel como assistente social?

                - Realmente. Sabe, nesse período que fiquei parada cuidando do Carlos Augusto, refleti muito com relação a nossa profissão. Aqui mesmo no Centrinho, cabe à nossa equipe a responsabilidade de proporcionar aos usuários, o acesso e a continuidade do tratamento das malformações crânio faciais. Além de atuarmos nas diferentes unidades, tais como, ambulatorial, internação e projetos comunitários.

                - Felizmente Regina, a atuação de nós assistente social torna-se cada vez mais ampla. Nossas práticas, desenvolvidas junto à clientela, podem ser diretas e indiretas. Na primeira e principal que desenvolvemos aqui no hospital, trabalhamos com o cunho sócio-comunitário, prestamos serviços junto à família, grupos e comunidades, sendo a veiculação de informações, a prática social voltada ao desenvolvimento da convivência, educação popular e assistência social.

                - A segunda é mais acadêmica, Ana Lú?

                - Mais ou menos. Nas práticas indiretas estão a administração do Serviço Social, o planejamento em programas institucionais e comunitários, realização de pesquisas e assessorias, além do ensino onde, no meu caso, realizo supervisões e atividades de treinamento, tanto de estagiários, como de profissionais aqui de Setor.

                Regina dá uma risadinha e observa:

                - Quando nossa profissão começou há algumas décadas atrás, existia o mito que a assistente social era uma moça boazinha que o governo pagava para ter dó do pobre. Mas nossas atividades cresceram e desenvolveram abrindo um leque de atividades e possibilidades. Aqui mesmo no Centrinho, percebo que o Serviço Social tem mostrado competência em sua ação profissional.

                - Graças a Deus, Regina. Vale dizer também, de acordo com minha experiência, que a competência não significa tão-somente saber fazer bem, mas significa ser apaixonado, gerar paixões, caminhar na utopia e na esperança. Significa também partilhar competência estimulando e alimentando a competência de seus companheiros de equipe, dos usuários que atende e da instituição em que atua, dos grupos com os quais convive, germinando esperanças e utopia, que instiga novos sujeitos competentes. Lembro até de um vídeo o qual fizemos aqui do Setor, dizia que um profissional competente é com certeza um formador de novos sujeitos competentes e esse tem sido um constante desafio do Serviço Social.

                - Sabe Ana Lú, é pensando justamente nessa última coisa que você disse, que eu gostaria de lhe fazer um pedido. Gostaria de à partir de agora conviver mais direto com os pais dos fissurados labiopalatais.

                - E por que essa decisão, Regina?

                - É que agora também sou mãe de um bebê com fissura e acredito que tenho muito a aprender com essas pessoas. Além do mais, eu gostaria de iniciar uma pesquisa com relação a esse tema.

                - Você está consciente que poderá se deparar com as mais variadas realidades?

                - Sim, estou, Ana Lú...

                - Bem, por mim, tudo bem. Seja bem-vinda de volta à nossa equipe - e lhe sorri a chefe.

 

* * *

 

                Sexta-feira à tarde, enquanto trabalham, Marcos pergunta:

                - O que você vai fazer amanhã à noite, Jorge?

                - Dormir...

                - Vou sair com o meu pessoal. Se você quiser, pode vir comigo.

                - Agradeço o convite Marcos, mas não estou acostumado a sair.

                - Deixa disso cara. Você é jovem assim como eu, tem que se divertir.

                - Não estou afim. Fica pra próxima vez.

                - Nada disso. Pode ficar preparado que passarei amanhã à noite em sua casa.

                - Mais...

                - Amanhã, já disse...

 

                Marcos cumpri o que diz. Só que encontra Jorge desarrumado, não querendo sair. Mas de tanta insistência do amigo, acaba se rendendo. Devido a sua ingenuidade, se arruma de forma simples: calça e camisa social abotoada nos pulsos e colarinho e sapato preto, roupa que ele usava para ir à missa na capela da fazenda. Penteia o cabelo de lado e lá se vão.

                A turma de Marcos são vários rapazes do mesmo nível, sendo todos trabalhadores braçais, que se reúnem em uma mesa de um simples bar de esquina. Ao chegar lá, Jorge tem certo receio, porém Marcos toma a iniciativa:

                - Pessoal, este aqui é o meu amigo Jorge que acaba de chegar em nossa cidade. À partir de agora será nosso companheiro.

                Todos os cumprimentam com sorriso e o convidam para se sentar à mesa. Jorge que até ali vivera isolado, acreditando ser o “único de sua espécie”, sente sinceridade e passa a se sentir bem no meio daqueles rapazes que lhe recebem com muita simpatia.

                Como não tem o hábito de beber, pede apenas um refrigerante. Não se manifestando, fica apenas ouvindo a conversa dos novos companheiros.

                Como há poucas opções de lazer naquela cidade, as únicas diversões são os bares, dar voltas no jardim municipal, o que quase todos faziam e depois ir ao clube de dança. Vão todos para o jardim. Jorge ao mesmo tempo que fica acanhado, fica admirado de ver muitas pessoas, senhoras e senhores, casais de namorados abraçados e crianças, todos em roupas de passeio dando voltas pela praça. A fonte luminosa, a música, o pipoqueiro e tudo ali é novidade para o rapaz que cresceu isolado na fazenda.

                Surpresa maior foi chegar ao clube de dança. Embora construído de madeira, é o principal ponto de encontro da cidade. Muitos jovens parados e sua frente e muitos entrando. O grupo decide por entrar. Jorge, à primeira vista, fascina-se com as luzes coloridas, música alta e muitos a dançarem, o bar onde as pessoas compram fichas ao lado para adquirir bebidas.

                Como é comum nesses ambientes, as pessoas vão formando rodinhas, tanto na pista como pelos cantos, de acordo com sua classes sociais e de amizades. E naquela noite não foi diferente.

                A noite corre tranquila naquela conversa de roda, enquanto Jorge observa a tudo disfarçadamente. Ele nota que algumas pessoas o olham com curiosidade, talvez pela sua fissura ou talvez por ser um novato na cidade; isso o deixa um pouco sem jeito a ponto de perturbar a sua cabeça e o intimidar, mas depois acaba controlando o constrangimento.

Nesses casos, tanto o olhar de piedade como o olhar de admiração atribuídos a uma pessoa que tenha alguma diferencia mais acentuada considerada fora dos “padrões normais de estética”, parte de um princípio único conhecido por “Preconceito”, sinônimo da falta de conhecimento. No caso de Jorge, por ser um dos poucos fissurados a estar se expondo naquela cidade, a falta de informação de que é aquele rapaz e o problema de seu lábio poderia até gerar o principal fato da discriminação, levando-o a marginalização. Mas seguro e confiante naquela pequena roda de amigos, Jorge, apesar dos olhares curiosos, não sente isto...

                De repente algo desperta a sua atenção. Em uma rodinha só de moças, há uma magra, de cabelos pretos e solto, rosto fino e discreto; usa um vestido curto e meias finas, ambos cinzas, um casaco parecendo pele e um colar de pérola de marfim. O rapaz fixa o olhar durante algum tempo na beleza daquela jovem, sem ao menos disfarçar.

                Uma de suas amigas nota e lhe diz:

                - Tem um rapaz de olho em você?

                - Quem? - pergunta ela pouco interessada.

                - Aquele de boca rachada na rodinha perto da porta - e dá uma risadinha maldosa.

                - Imagina, isso é brincadeira sua - diz a moça sem se dar importância.

                Terminada a noite, todos se vão. Jorge, ao deitar em sua cama, passa um longo tempo pensando naquela moça até adormecer.

 

* * *

 

                Logo após o expediente, Adriano resolve procurar seu pai para uma conversa. Ao chegar em sua casa, foi recebido com frieza.

                - O que você quer aqui, Adriano?

                - Pai, eu vim conversar com o senhor com relação ao Carlos Augusto.

                - Sei...

                - Gostaria que o senhor revisse a sua posição e o aceite como o seu neto.

                - Aquele garoto com aquele defeito na boca. Não posso admitir a loucura que você e aquela assistente social, metida a boazinha, estão cometendo.

                - Mas pai...

                - Não insista, meu filho - interrompe Adriano, completando: - Além do mais, prefiro pensar que isto não está acontecendo.

                - Tudo bem - concorda o moço que abaixa a cabeça e começa a sair, quando vira-se e completa: - Gostaria só que o senhor soubesse que o meu filho foi operado e parte do seu problema já desapareceu quase por completo.

 

* * *

 

                Sexta-feira. Como a professora Jane prometeu, eles terão várias atividades e brincadeiras no pátio. Todos os alunos vão contentes. Tudo corre descontraidamente e com muita alegria e risos. Até que a professora decide:

                - Agora vamos formar uma grande roda todos de mãos dadas e sentar no chão para brincar de passar a bola.

                A grande roda começa a ser formada. Iraides, de maneira inocente, vai dar a mão a uma menina que colhendo o braço, lhe diz:

                - Você não, sua feia...

                Aquilo machuca a menina que sai chorando e vai se sentar sozinha no banco de cimento. Jane levanta-se e vai de encontro a ela.

                - O que aconteceu, Iraides? Alguém lhe fez alguma coisa?

                - Não senhora - esconde o motivo.

                - Vem brincar com a gente - pede a professora com ternura.

                - Não estou com vontade, professora - declara chorando baixinho ressentida.

                - Então fica aqui um pouco sozinha até se acalmar que depois volto para conversarmos, o.k.?

                Jane a deixa ali por alguns instantes. Aquela professora ia cada dia mais se tornando uma pessoa importante na vida de Iraides. Devido à maneira carinhosa e incentivada pela qual é tratada por sua professora, passa a ter confiança e segurança ao seu lado. Só que por outro lado, pelo comportamento negativo de seus coleguinhas - sendo as zombarias e outros que têm medo de ser algo contagioso, vendo-a com uma certa reserva -, a menina passa a sentir o peso e a se questionar por ter uma fissura labiopalatal. Fácil imaginar que assim ocorra, pois a criança, desde que sinta alvo de zombaria ou mesmo de rejeição por parte dos companheiros e adultos, tende a isolar-se, preocupada cada vez mais com o seu problema, que procura disfarçar ocultando-se ou escondendo a parte afetada, que tenta cobrir com a mão ou enfiando o dedo na boca.

 

                Só que o destino prepara algumas surpresas. A Jane adoece, precisando ser substituída. A nova professora não tem o mesmo comportamento que a primeira. Dando mais atenção aos demais alunos, vai deixando Iraides de lado.

                No geral, fatos como esses referente às crianças com malformações ou cicatrizes, são frequentemente encaradas como "defeituosas", o que pode se associar ao conceito de serem intelectualmente inferiores por seus colegas e até pelos seus professores. Os professores subestimam a capacidade intelectual das crianças com fissura labiopalatal e essa expectativa inferior pode ser transmitida à criança, rebaixando seu próprio nível de expectativa e realização.

                Iraides começa a sentir os efeitos desse problema de interrelação, aumentando nela o sentimento de insegurança e hostilidade para com o meio que a cerca.

                Em muitos casos dessa natureza, consequentemente, a criança será tímida, retraída, inibida, insegura, dependente, apresentando dificuldades em participar de atividades sociais e de se relacionar com pessoas estranhas ao seu ambiente, principalmente na escola, onde a competição está sempre presente. Em outros casos, há o problema daquelas crianças que mudam constantemente de escolas, tendo que se ajustar a vários grupos de coleguinhas que podem estranhá-la e/ou criticá-la.

                O peso da rejeição social, tento por parte dos colegas como da professora, é cada vez mais sentida pela menina. Tornando-se insuportável, certo dia, Iraides chega chorando alto em casa, decidida:

                - Não quero mais na escola... Não quero mais na escola... Não quero mais na escola...

                - Mas o que houve filha? - Pergunta Seu Tonho, sem entender nada.

                A menina vai se acalmando e relata tudo o que estava passando nas últimas semanas aos seus pais.

                - Eu sabia que isso não iria dar certo. Já chega o que passamos quando ela nasceu. As pessoas não queriam ver a nossa filha. Tinham medo, achavam que ela não era gente. Davam risadas maldosas e faziam chacotas. Quantas vezes cheguei até me irritar, brigando - comenta sua mãe, pensando alto.

                - Tenta mais um pouco, filha, você vai consegui superar tudo isto - o seu pai tenta a incentivar, não se importando com as palavras da esposa.

                Sua mãe toma a frente, segurando no braço do marido:

                - Melhor não insistir, Tonho. Isso pode trazer prejuízos mais graves.

                Seu Tonho entende o que sua esposa quis insinuar, olha no rosto da esposa e concorda decepcionado:

                - É mulher, você tem razão...     

 

* * *

 

                Regina tem o primeiro contato com um caso delicado. Juntamente com outra assistente social, elas vão visitar o caso de uma criança que nasceu com fissura labiopalatal e que está sendo rejeitada pela família.

                Momentos depois, estão na periferia da cidade. Logo de início, a cena e de chocar. A criança aparenta sem conforto, amedrontada, desvalida, só e um longo tempo faminta. Por não ter a mínima afeição, leva uma vida árdua, pequena, fraca e totalmente limitada.

                - Posso saber por que ela está assim, mãe, tão abandonada? - Indaga a assistente social.

                A menor chora muito. Ignorada pela sua própria mãe, não tem forças para se defender.

                - Não tenho tempo de cuidar dessa menina. Tenho outros filhos que também me dão trabalho. - Responde a mulher que nem se preocupa em disfarçar a rejeição, dizendo. - Além do mais, essa dai, com esse buraco feio na boca nem parece minha filha.

                Sujeita as condições severas da rejeição, percebe-se que a criança chora de medo, de mágoa e, às vezes, seu choro desperta mais protestos que compaixão.

                Regina diz indigna:

                - Sabe que a senhora poderá responder juridicamente por maus-tratos, não é?

                - Por mim, estou pouco preocupada - a mulher continua fria: - Meu marido saiu de casa logo depois que ela nasceu me culpando por ela ter nascido com esse problema. Quer dizer, por causa dela, perdi o meu homem. Se vocês quiserem levar ela embora daqui, é até um favor que me fazem...

                - Não acredito no que estou ouvindo - diz Regina baixinho à colega.

                - Calma, que tudo vai dar certo - fala a assistente social, que revela à mulher: - Nós iremos acionar a Justiça e, infelizmente, vamos ter que retirar a sua filha da sua guarda.

                - Assim os anjos digam amém - retruca a mulher.

 

                No carro, de volta ao hospital, a assistente social revela à Regina:

                - Já é a segunda vez que venho a essa casa e já ficou caracterizado que não há as mínimas condições dessa criança ficar com a mãe.

                - Se ela não morrer, poderá ter consequências futuras maiores, certo?

                - Certo. Se essa criança crescer em um ambiente onde não há um afeto de um adulto ou amigo, ela não será encaminhada para o tratamento que lhe é de direito. Continuará com o seu lábio aberto e, mais tarde, não terá as mínimas condições psicológicas para se livrar das agressões que recebe de colegas maldosos, professores ou outros membros de sua comunidade. Se esconderá atrás de suas próprias defesas, refugiando dentro de si mesma, evitando até as amizades.

                - Por outro lado também uma criança ignorada cujas méritos nunca são notados aos olhos dos outros e, principalmente de seus pais, ela se lamenta constantemente pelo fracasso. Além de não receber e nem ter exemplos de amor, também não aprenderá amar, Isso dificultará que a criança aprenda a confiar em outras pessoas, não terá tolerância e não saberá dedicar amor ao próximo.

                - Exato, Regina. As crianças na situação como dessa menina, por não receberem amor, aprendem a não esperar afeição. Se ninguém a estima, consequentemente não poderão se autoestimar. Nunca esperam nada, ou quando esperam é o pior, e com isso colocam-se em guarda contra tudo o que poderá acontecer. Quanto mais elas se sentirem acuadas, mais essas crianças erguerão suas muralhas entre elas e os outros que poderiam ser seus amigos.

                Regina também faz as suas observações:

                - Infelizmente, esses aspectos negativos contribuem para que o fluxo dos sentimentos de solidariedade, tão importantes nas relações sadias entre as pessoas é interrompido. Será como se houver um abismo entre elas mesmas. Criada de baixo do regime da rejeição e do fracasso, não conseguirão adquirir confiança no próprio valor.

                - Essa é uma realidade de muitas crianças não só no Brasil, mas no mundo todo. Só que no caso dessa menina, Regina, vai ser diferente. Nós iremos denunciá-la ao poder público e ela será retirada dessa triste realidade em que vive e, se Deus quiser, futuramente encaminhada para uma família de verdade, onde terá, pelo menos, as mínimas condições para ser feliz.

 

* * *

 

                A semana vai passando na pequena cidade. Jorge está tranquilo descarregando um caminhão na beneficiadora, quando o vulto de uma pessoa passa rapidamente despercebida por ele, entrando no escritório do chefe. Momentos depois, a mesma pessoa passa por ali, cumprimentando-o:

                - Bom dia...

                - Bom dia - responde ele, que ao levantar a cabeça tem uma surpresa. É a mesma moça do baile, que entra em um carro importado e se vai. O olhar do rapaz fica um tempo fixado no carro que some no final da rua. E durante todo aquele dia a imagem dela perturba sua mente.

                No dia seguinte e no mesmo horário, a moça volta à beneficiadora, fazendo a mesma coisa. Só que ao sair, o pneu de seu carro está furado. Ela volta até Marcos - que está conversando com Jorge, o qual está de costa para a porta, pedindo:

                - O pneu de meu carro furou. Será que você Marcos, pode me ajudar a trocar?

                Jorge ao se virar tem um choque. Está frente a frente com ela. E, pela primeira vez, inconscientemente sente vergonha de sua fissura, colocando a mão na boca.

                - Claro, vamos lá - responde Marcos, saindo com ela, deixando Jorge ali sem ação.

 

* * *

 

                Regina chega em casa com o garoto, encontrando o seu marido triste e pensativo no sofá. Carlos Augusto fica feliz ao ver o pai e pede para ir ao colo dele. Sua mãe a entrega, perguntando:

                - Que foi amor, que você está desse jeito?

                - Meu pai. Fui tentar conversar hoje com ele. Ainda se nega a aceitar o Carlos Augusto como neto.

                Regina senta-se ao seu lado e afaga o seu cabelo.

                - Não esquenta, bem. É assim mesmo. Às vezes a aceitação demora. Eu também tive um dia difícil hoje e, no entanto, estou aqui de pé, pronta para continuar lutando. - Ela tira um envelope de sua bolsa: - Olha, peguei esta correspondência lá na caixinha do portão para você.

                Ele, mesmo com o filho no colo, abre a carta e começa a lê-la, mudando o seu humor.

                - Não acredito. É uma comunicação do Centro Cultural e estão me avisando que ganhei uma bolsa para estudar violino.

                - Verdade? Deixa-me eu ver. - Regina pega e ler, alegrando-se: - Está vendo. Quem luta e acredita em si mesmo, consegue os seus objetivos. Parabéns, amor. - E abraçam-se os três.

 

 

* * *

 

                Os dias vão passando... A imagem daquela linda moça persegue a memória de Jorge. Um sentimento nunca sentido invade o seu coração. Uma vontade muito grande de está ao lado dela; acariciá-la e ser o seu namorado. Só que ao mesmo tempo, a sua realidade social e a sua fissura lhe faz sentir uma espécie de complexo de inferioridade dela. E, nesses momentos, o rapaz se isola e chora sem ao mesmo nada contar para ninguém.

                Chega o próximo fim de semana. Uma enorme vontade de ir ao clube de dança toma Jorge, mesmo sabendo que será novamente o centro das atenções. Mas a vontade de ver a moça novamente era bem maior. E lá vai ele com seus poucos amigos. Realmente, a pretendida está lá. Uma alegria interna invade o rapaz, mesmo só de vê-la de longe; mas ao mesmo tempo, uma tristeza ao ver aquela pessoa tão desejada, alegre com seus amigos e que nunca seria sua.

                Num dado momento, ela se dirige para o bar e, ao passar por eles, cumprimenta Marcos por serem amigos. Ao passar, Jorge se atreve a comentar com o amigo:

                - Simpática essa moça...

                - É, a patroinha e muito educada e atenciosa...

                - Por que você disse patroinha, Marcos? - Jorge fica curioso.

                - Você não sabe quem é ela, não? Chama-se Andréa e é filha do nosso patrão. Ela é formada em administração e é subgerente do banco aqui da cidade. Por isso que todos os dias ela passa lá na beneficiadora para pegar o movimento bancário do pai. Ela já viveu em grandes cidades e até no exterior; mas ninguém sabe o porquê, de repente ela preferiu se isolar aqui nesta cidade e nunca mais quis sair. Sobretudo, é uma pessoa super legal com todos...

                Aquilo cai como um balde de água fria em cima de Jorge. Além de linda é fina, a moça também é rica, filha do patrão. Quem é ele para um dia tê-la em seus braços? - Essa frase negativa começa invadir a sua mente, tomando grandes dimensões. Aquela alegria e música alta do clube torna insuportável para ele, que sai correndo rumo ao jardim municipal.

                Chegando lá, já é madrugada e quase ninguém na praça e nas ruas. Jorge senta-se em um dos bancos, sentindo uma profunda dor em seu coração como nunca. Ao mesmo tempo em que descobre o amor, descobre o medo, a insegurança, a diferença dos valores sociais, o problema de um defeito estético em sua boca e um grande sentimento de derrota, mesmo sem ter lutado. Não hesita em começar a chorar fortemente de cabeça baixa naquele lugar.

                Alguém chega de surpresa e se agacha perto dele, perguntando com carinho:

                - Você está chorando, moço. Posso ajudá-lo em alguma coisa?

                Ao levantar a cabeça, Jorge toma mais um enorme choque. É Andréa, justamente porque ele está chorando. Suas lágrimas aumentam ainda mais. A moça senta-se ao seu lado, tentando ajudá-lo.

                - Calma, agora eu estou aqui para lhe ajudar se você quiser. - Como trata-se de uma pessoa bem esclarecida e conhecedora da realidade, ela associa que talvez o problema seja pela fissura do rapaz, perguntando: - Você é novo aqui na cidade. Será que alguém fez alguma coisa ou disse algo que lhe feriu? Se quiser, pode se abrir comigo.

                - Não, não foi ninguém não senhora, Dona Andréa - reponde ele com sua voz fanhosa, começando a se acalmar, mas não querendo revelar o seu problema.

                - Por favor, tire a senhora e a dona. Eu quero apenas ser sua amiga sem qualquer formalidade.

                - Mas você é a filha do meu padrão... Fui ensinado a ter respeito.

                - Muito bonita a sua educação, mas aqui fora somos iguais um ao outro. Sou eu que estou lhe pedindo para sermos amigos. A menos que você não queira...

                - Sim, quero - responde Jorge misturando sorriso com um resto de lágrimas.

                - Afinal, qual o seu nome?

                - Jorge.

                - Bonito nome.

                - Engraçado, agora mesmo você estava se divertindo lá no clube com seus amigos, Andréa. - Pergunta, esquecendo as lágrimas.

                - É, só que estava chato lá e resolvi vim dar uma volta sozinha na praça. Foi bom, assim o conheci e posso ajudar você...

                - Também foi bom ter conhecido você. Só que já é tarde e preciso ir embora.

                - Se quiser, posso lhe levar de carro.

                - Não se incomode comigo. Vou caminhando mesmo. - Jorge tenta evitar por sentir um pouco de vergonha do lugar onde mora.

                - Você é ou não é meu amigo?

                - Sim, sou.

                - Então deixe de frescura, eu lhe levo. Vamos lá...

                Os dois levantam-se, caminhando pela praça. Num movimento repentino, Jorge colhe uma flor, oferecendo-a a Andréa.

                - Toma, pra você, a minha nova amiga...

                - Obrigada, Jorge - e apanha num sorriso.

                Chegam em um bairro simples da cidade. O rapaz, meio sem jeito, aponta a casa onde mora. Após se despedirem, ele desce do carro, quando Andréa lhe chama na janela, confessando:

                - Jorge, eu já ganhei muitos presentes caros e chiques do mundo todo. Mas poucos me deixaram tão feliz quanto a sua flor. Porque ela foi dada com sinceridade...

 

* * *

 

                A cada momento um caso novo chega ao Centrinho. Diferentes pessoas, famílias com as mais diversas realidades vão passando pelo Setor de Serviço Social, sempre observados por Regina para que ela tenha dados para a sua pesquisa. Após prestar exames, ela começa a cursar especialização em sua área, usando suas observações em para escrever sua monografia.

                Por um lado estão aquelas famílias possuidoras de um nível de consciência mais elevada, conseguindo desmistificar o problema, não o encarando com passividade, mas até com certo inconformismo. Muitas vezes, o fato de se ter uma pessoa com fissura na família, altera a dinâmica da mesma, uma vez em que quanto maior o nível de consciência familiar, maior será o seu entendimento quanto a complexidade da malformação. Estão quase sempre consciente sobre o direito de tratamento, uma vez em que entende a dinâmica da política. Suas expectativas gerais em torno da reabilitação global, chegando ao hospital já informados com relação ao tratamento e a longa caminhada, antes mesmo da primeira consulta. Por possuem um nível de consciência mais próximo da crítica, essas famílias voltam-se para a interpretação profunda dos problemas, onde substituem assim explicações mágicas por princípios casuais, trabalhando suas consciências para evitar na sua apreensão deformações. Baseiam-se mais na razão do que na emoção, através de suas argumentações.

                Mas por outro lado, Regina vai percebendo que aquelas famílias de classes menos favorecidas - as quais quase sempre justificam o problema das fissuras como fatores místicos, tais como “chave no seio”, “olhei para um paralítico”, “Deus quis assim”, dentre outras -, formam a grande parcela da clientela do hospital. Não consideram o nascimento de uma criança com fissura como alteração na dinâmica familiar, são passivos diante dos problemas e de realidade de um modo geral. Sem discernir a complexidade do problema do tratamento que vem pela frente, sempre estão intimidados com a possibilidade de, em outra gravidez, os filhos também nascerem fissurados.

                Na condição de assistente social, Regina não culpa essas famílias por mistificarem a realidade que as cercam. Em um país onde muito pouco se investe em educação, é muito fácil governar um povo que mistifica seus problemas. Com isso, a culpa é retirada dos ombros daqueles que criam tais problemas, transmitindo-os para aqueles que são inatingíveis de defesa. Mistificar ou maquiar uma realidade, serve como uma arma  inconsciente para aliviar as dores do contexto em que vivem. As pessoas humildes, por quase nunca conhecerem ou saberem como valer os seus direitos, aprende a conhecer somente os seus deveres.

                Motivo pelo qual as famílias menos favorecidas, quase não entende o que é reabilitação global. Muitas vezes, sem ao menos saber que existe o Centrinho e o tratamento necessário e gratuito para o problema de seu filho, só toma consciência disso graças ao trabalho dos pais coordenadores do hospital, os quais vão lhes visitar em seus lugares de origem. Essa gente simples vai, geralmente, chegando à primeira consulta sem nenhuma orientação anterior. Ingênuos e de consciência intransitiva, essas famílias tonam-se impermeáveis aos desafios, foca sua limitada capacidade de discernir, o que as impede de captar a causalidade autêntica dos fatos. Por esse motivo, preferem mistificar a realidade, os simplesmente “cruzar os braços diante de seus problemas”. Essa ingenuidade, caracterizada pela simplicidade na interpretação dos problemas, poderá fortalecer transtornos emocionais dos envolvidos.

                Uma vontade de fazer algo mais pelas aquelas família humildes, começa a germinar no inconsciente de Regina.

 

* * *

 

                Mês de junho. Como é comum em cidades pequenas do interior, há muitas festas juninas com fogueira, danças de quadrilha, simulação de um casamento, bombas e fogos de artificio; quentões, batata-doce, pipocas, comidas típicas e leilão de gado. Naquela noite de sábado também há uma no barracão paroquial da igreja matriz. Quase todos vão para lá. Jorge, o qual já está acostumado com a população da cidade, também vai com a sua pequena turma.

                Um conjunto toca ao vivo. Muita gente e muita animação enche o local. Caminhando com certa dificuldade entre as pessoas, Jorge passa por perto do grupo de “patricinhas” onde está Andréa, sem vê-la. Mas ela percebe e lhe segura pelo braço, dizendo:

                - Hei, Jorge, vem cá. Quero lhe apresentar às minhas amigas. - E sorrindo, abraça carinhosamente ele e diz às demais: - Pessoal, este é o meu novo amigo...

                As moças lhe dão um oi com pouco caso. Ele, pelo seu acanhamento pelo gesto da moça e por sua inocência, não percebe, respondendo o mesmo oi.

                - Se não for falta de educação da minha parte, posso saber aonde você vai?       

                - Vou na barraca do churrasco...

                - Mais tarde me procura pra gente conversar um pouco, está bom?

                - Tudo bem, Andréa...

                O rapaz se vai. Uma moça do grupo comenta inconformada:

                - Não acredito que uma moça do seu nível, que conhece os melhores lugares do mundo e viveu aventuras de princesa, envolve-se com pessoas desse tipo.

                - E por que não? - indaga Andréa sem perder calma.

                - Poxa, tem tantos rapazes nesta região, muitos filhos de fazendeiros e correm atrás de você, dão tudo por você que nem lhes dar ao menos um olá. Agora esses pobres da cidade você conhece a um por um! - Exclama outra moça indignada.

                - É que esses pobres têm o que os outros não têm. - Diz Andréa com firmeza: - Caráter!!!

                - Só falta agora você correr atrás daquele pobre fissurado e tirá-lo para dançar...

                - Duvidam? - Pergunta a moça, sem obter a resposta de nenhuma. Começa a sair da rodinha, mas de repente vira-se para elas, completando: - E tem mais: não dou bolas para esses filhinhos de fazendeiros assim como vocês que correm atrás deles, porque não estou à venda e nem acostumada a frequentar a cama de qualquer um!

                Andréa vai à procura de Jorge. Ao encontrá-lo na roda de seus amigos, a moça vai direto ao convite:

                - Jorge, você quer dançar comigo?

                - Eu!? - Surpreende o rapaz: - Nem sei dançar.

                - Vem, eu lhe ensino.

                A moça lhe puxa pelas mãos até a pista, mostrando-lhe como faz os outros casais, passa os braços pelo seu pescoço e começam a dançar. Jorge sem jeito e um pouco duro, tenta todo o possível para fazer a coisa certa. A cena deixa muitos de boca aberta e sem ação. A fina e elegante subgerente do banco da cidade dançando animadamente com aquele pobre e coitado rapaz perante o conceito da sociedade. E continuam por várias músicas.

 

                No fim da noite, os dois sentam em uma lanchonete da cidade para comerem um lanche. Jorge se arrisca a fazer um comentário:

                - Nem acredito que você está aqui comigo comendo um lanche.

                - E por que não? Sou sua amiga. Gosto de sua companhia.

                O rapaz sente-se feliz em ouvi aquelas palavras. Está certo que ele sente algo a mais por ela. Porém, como é um sentimento que nunca sentira antes - amor por uma mulher -, não sabe definir e muito menos falar sobre ele. Por este motivo, Jorge - também temendo a sua reação -, prefere não confessar nada à Andréa, preferindo manter a amizade...

 

* * *

 

                Quase dez horas da noite, Regina está na mesa da cozinha de sua casa checando as suas anotações para a sua futura monografia. Carlos Augusto dorme. Adriano, com o seu violino de baixo do braço, chega, abrindo a porta da sala. Ela larga a caneta e vai correndo de encontro ao marido, abraçando-o.

                - E aí, como foi lá no Centro Cultural?

                - Muito bem, graças a Deus - responde sorrindo: - Passei no teste e o professor Geraldo me aceitou como aluno.

                - Eu sabia que você iria conseguir. Estou muito orgulhosa de você, meu bem.

                Dão um longo beijo. Mais tarde, já deitados e conversando, começam a trocar carícias cada vez mais fortes. Quando a coisa começa a pegar fogo, ouvem o choro que vem do quarto do bebê.

                - Acho que ele deve está com fome - observa Regina sem graça.

                - Esse seu filho é um desmancha prazer - brinca Adriano.

                - Não fala assim do meu filho que eu não gosto - diz ela, dando-lhe um tapinha e se levantando para ir vê-lo, mas ao chegar na porta, vira-se e intima o marido: - Espera aí, porque eu vou, mais volto.

                - Hum, mulher fatal - volta a brincar Adriano.

 

* * *

 

                Naquela noite, ao se deitar, Andréa lembra de Jorge. Como se um peso em sua consciência, pergunta a si mesma se foi justo de sua parte tirar aquele simples rapaz para dançar só para provocar suas amigas. Mas por outro lado ela não se sente totalmente culpada, pois realmente gosta de ser amiga dele. Um rapaz que, segundo o seu conceito, tão puro e ingênuo. Sem maldade que de tão simples, às vezes nem acha assunto ou palavras certas para conversar. Alguém que, devido a uma deficiência estética, foi criado isolado da sociedade e só agora, após os vinte anos, está tendo contato e convivendo em comunidade. E ao mesmo tempo já se deparando com o preconceito social; ainda mais em uma cidade pequena onde, devido a falta de acesso as informações reais em torno de uma pessoa assim, são mais distorcidas. De certa forma, Andréa sente orgulho em poder ajudá-lo através de sua amizade. E o que mais impressiona ela é a pureza de Jorge.

 

                Ao se levantar no dia seguinte, já na hora do almoço, Andréa vai até a copa onde seus pais fazem a refeição.

                - Bom dia - diz a moça de bem com a vida.

                - Andréa, senta aqui que precisamos conversar - ordena o seu pai.

                - Posso saber o que está acontecendo?

                Pergunta se sentando, ouvindo de sua mãe:

                - Algumas de suas amigas nos ligaram para contar a loucura que você fez ontem na quermesse...

                - Eu não fiz nada... - afirma ela calmamente, surpresa e servindo.

                - Como não? Todos a viram se envolvendo e dançando animadamente com um de meus empregados. Além do mais foram vistos juntos depois comendo animadamente numa lanchonete no fim da noite - revela seu pai já perdendo a calma.

                - Jorge é meu amigo e gosto dele - declara ela ainda numa boa.

                - Se pelo menos ele fosse da nossa classe social, por exemplo, filho de um fazendeiro da região - lamenta sua mãe.

                - Bem, quanto a isto a mesma coisa que eu disse ontem as minhas amigas, repito para os senhores: não estou à venda!

                - Já chega o que você nos fez passar no passado...

                Neste momento, Andréa se altera.

                - Já pedi para ninguém mais tocar neste assunto, droga. Ninguém, mas ninguém mesmo tem direito de se meter na minha vida. Ainda mais esse bando de “patricinhas” tudo loucas para arrumar homens só por dinheiro! - Se levanta: - E querem saber de mais coisa; vou continuar sim amiga desse rapaz e ajudá-lo no que for preciso.

                - Se você insistir nesta suposta amizade, vou demiti-lo - ameaça seu pai: - E como você sabe, ele é de família pobre e precisa desse serviço para sobreviver.

                - Muito sentimental de sua parte pai. Mas se o senhor fizer isto, tenho meios e conhecimentos para ajudá-lo a arrumar outro trabalho.

                - Olha aqui menina. Não me desafie, pois você sabe muito bem que tenho influência nesta cidade. Se eu quiser, este rapaz nunca mais arrumará nem se quer uma roça para carpir nem aqui e nem na região. E posso estender isto a toda a sua família - diz num tom seco e forte: - Quanto a você, Dona Andréa, posso também esquecer por alguns instantes que é minha filha e conseguir a sua transferência para uma agência de seu banco bem longe daqui.

                - Sendo assim, está feito o desafio, senhor todo poderoso - declara Andréa sem se intimidar, saindo pisando firme e batendo a porta.

 

* * *

 

                Domingo à tarde. Iraides brinca no quintal se sua casa com seus irmãos. Seu pai, sentado na porta da sala, observa-a. O pensamento dele começa a funcionar: “Droga de vida onde o pobre nunca tem vez. Quando estava no meu Nordeste, cansei de vê o golpe de Indústria da Seca, onde enquanto passávamos fome, quase todos os grandes proprietários conseguiam financiamento do governo. Espertos, aplicavam em outros setores não agrícolas. Depois os grandes jornais e a televisão noticiava a tragédia da seca. Essa lavava a culpa da morte das plantações que nunca existiram. Os proprietários não pagavam suas dívidas, usando a seca como uma espécie de seguro, pois diante de acidentes naturais não há como cobrar dívidas... Agora aqui nesta cidade, nem se quer minha filha pode estudar por ter um defeito na boca. Será que um dia o pobre terá vez neste mundo?”

                - Olha, a professora Jane - grita Iraides apontando para o portão e correndo ao seu encontro.

                Jane também contente, abraça a menina. Seu pai feliz se levanta, indo ao encontro.

                - Professora, é um prazer tê-la aqui em casa - e estende a mão direta.

                - O prazer é todo meu, Senhor Tonho - e aperta a sua mão sorrindo.

                Sentada na humilde sala com a ex-aluna ao seu lado e tomando um café, Jane declara:

                - Sabe o que é. Sexta-feira eu voltei a lecionar e como Iraides não estava lá, vim ver o que aconteceu...

                - Sabe o que foi professora... - E o pai de Iraides narra a ela todas as coisas do jeito que a menina lhe contou.

                - É, eu já imaginava isso. Tentei evitar ao máximo, mas devido a minha doença tive que me afastar. Porém, também é outro o motivo pelo qual estou aqui. Durante o meu tratamento, conversando com meu médico, descobri que o problema estético de Iraides pode ser resolvido. Existe em Bauru, no Estado de São Paulo, um hospital conhecido por Centrinho. Lá eles há mais de quarenta anos só trabalham com casos dessa natureza.

                - Mas não temos condições de pagar um tratamento pra ela, professora - acentua a sua mãe.

                - Também já pensei nisto, minha senhora. O tratamento no Centrinho é totalmente gratuito para os pacientes, mas pago por órgãos públicos. E com relação ao transporte, como o tratamento é um direito do paciente, o Serviço Social da Prefeitura arcará com as dispensas. Fiquei tão feliz com esta possibilidade de cura para Iraides, que eu mesma, tomando a liberdade, liguei para o hospital e já agendei a primeira consulta.

                - Poxa, Dona Jane, nem sei como agradecer - declara Tonho emocionado.

                - A melhor forma de me agradecer, é prometendo que depois que você ficar ainda mais bonita, vai voltar para escola. Você promete? - Pergunta a professora olhando para Iraides.

                - Sim, prometo - responde a menina sorrindo, mesmo sem entender direito o processo pelo qual irá passar em breve.

 

                E assim acontece... Iraides e seu pai vão para o Centrinho. A longa viagem e compensada perlo carinho e acolhimento ali recebido, igualitário a todos, independente de sua classe social.

                Nos próximos dias a menina passa por várias consultas. Faz a primeira cirurgia, permitindo que sua fissura desapareça quase por completo.

                Algum tempo depois, já em sua cidade, Iraides volta à escola. Agora é diferente, já não é mais excluída. Novas amizades vão se formando. Ao mesmo tempo aumentando sua autoestima que se reflete positivamente em seu rendimento escolar e social.

 

* * *

 

                Atendendo junto ao setor Caso Novo, Regina e outra colega recebem alguns pacientes chegando pela primeira vez ao hospital. Entre eles, é a vez de Maria, uma pernambucana que, embora de roupa simples e modos humildes, era bem-informada e consciente da realidade de seu filho, Jonas, um garoto de cinco anos com fissura labiopalatal. As duas assistentes sociais começam a entrevistá-la para preencher o relatório.

                - Como a senhora tomou conhecimento da existência do Centrinho e por que esperou até essa idade para procurar o tratamento?

                - Bem moça, durante esses primeiros anos do Jonas procurei vários locais, médicos, entidades e pessoas em busca de tratamento para ele. Mas tudo que encontrei era paliativo. Foi através de uma mãe-coordenadora que visitou a minha cidade e tomou conhecimento do meu caso. Ela foi me visitar, falou muito do Centrinho e se prontificou em marcar a primeira consulta. Assim que fui chamada, vim de imediato.

                Sendo os pais as pessoas importantes no processo de avaliar, educar e reabilitar seus filhos que nascem ou adquirem alguma deficiência, Regina através das perguntas que vão realizando, percebe que aquela mãe, através de sua luta particular, encontra-se preparada e para o que for preciso para a reintegração de seu filho. Atitudes como essa são comuns em pais bem-informados, aceitam o problema, passam a ter um papel positivo na educação, bem-estar, reabilitação de seu filho. Regina lhe pergunta:

                - A senhora está consciente o longo tempo que poderá levar o tratamento do Jonas e toda a dedicação que vocês pais vão dispensar para ele?

                - Sim Graças a Deus, tenho um grande marido e estamos dispostos fazer qualquer coisa pelo nosso filho. Conversamos muito e já sabemos que, mesmo ao longo prazo, precisaremos ter uma influência muito produtiva e duradoura. Até mesmo mais duradoura que a dos médicos, terapeutas, assistentes sociais, psicólogos ou qualquer das muitas pessoas que poderão auxiliar ao Jonas nos problemas e dificuldades que ele precisará lidar pela vida.

                - Nossa, que consciência exemplar. Continue sempre assim - comenta a outra assistente social.

 

                Regina, durante muitas entrevistas e dia após dia trabalhando com aqueles pais, vai percebendo que nem todos, infelizmente, dispõem da mesma mentalidade de que Maria, com relação à importância da reintegração social de Jonas. Muitos nem se quer têm uma compreensão da realidade que cerca a deficiências de seus filhos. A assistente social toma conhecimento através dos livros que tem lido para sua pesquisa, que a falta de compreensão desses pais muitas vezes podem suscitar sentimentos desalentadores que os recriminarão, impedindo-os de tratar adequada e eficazmente a fissura de seus filhos.

                Em uma conversa reservada com Ana Lú, a qual está orientando a sua pesquisa, Regina chega a comentar:

                - Tenho percebido Ana Lú, que muitos desses pais, pela simplicidade e falta de informação, não conseguem imaginar que exista algo de positivo na deficiência dos filhos. Isso até colabora para que, em alguns casos, eles isolam a criança e não facilitam o processo de reintegração das mesmas.

                - Mas é assim mesmo, Regina. Eu nesses meus muitos anos de hospital já vi muito disso. Tentar mudar isso, não é nada fácil. Mas também não será impossível. Com tempo, compreensão e a reeducação desses pais, poderemos levá-los a entender e que há de positivo e que este fato deve ser procurado não na deficiência, mas no portador dela.

                - Concordo. Quer dizer então que esses pais precisarão ser preparados para se conscientizarem que seus filhos, mesmo tendo uma fissura labiopalatal, são crianças como as outras, com inúmeras possibilidades ilimitadas, as quais poderão fluir naturalmente e ainda mais se puder contar com a participação ativa dos pais em suas vidas. Por isso, o primeiro passo para uma reabilitação satisfatória será a aceitação e a participação por parte dos pais.

                - Muito bem, doutora Regina - brinca Ana Lú: - Acrescentando o que você já disse, só através de informações corretas e sérias, esses pais menos favorecidos poderão libertar-se de sentimentos de culpa e até de rejeição, tendo mais calma e sensibilidade para encarar a realidade. Conhecendo essa realidade que cerca o filho, eles se transformaram nos elementos mais conhecedores e aptos a colaborar da melhor forma possível na reabilitação junto à equipe do Centrinho... Pois mesmo com toda a nossa dedicação, sempre serão os pais que terão com o paciente um contato mais íntimo e de efeito maior e duradouro. Os pais sempre saberão e farão mais do que qualquer outra pessoa pelos seus filhos.

                - O que você acha de criarmos um programa para a conscientização desses pais através aqui do nosso Setor, Ana Lú? Um tipo de orientação familiar que poderá ter como objetivo propiciar uma nova visão do filho. Poderíamos usar isso também para melhor compreendermos quais os mecanismos utilizados pelas famílias durante a construção do relacionamento, para que ambos (filhos com necessidades especiais e seus pais) vivam uma relação centrada na eficiência de ambas as partes.

                - É uma ideia para ser pensada, Regina. Podemos conversar sobre isso outra hora.

 PRÓXIMA PARTE

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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